quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

O DIÁLOGO COMO ATITUDE

SARA MAGALHÃES
Com a iluminação, tudo é da mesma família. Sem a iluminação, tudo está separado de tudo.
(poema chinês séc. XIII)

O encontro e o diálogo inter-religioso implicam, antes de tudo, uma atitude integral de respeito pelo outro.

Como defendeu bem esta causa, Mahatma Gandhi afirmando:

“Não me compete, a mim, criticar as Escrituras das várias religiões, ou assinalar os seus defeitos. Mas o meu privilégio é, e deveria ser, proclamar e praticar as verdades que elas contêm. Não devo criticar ou condenar as questões do Corão ou sobre a vida de Maomé, a qual não posso entender, senão que devo aproveitar todas as oportunidades que me apresentam para expressar a minha admiração pelos aspetos da sua vida que sou capaz de apreciar e compreender. Perante as questões que apresentam dificuldades, tenho de as ver através de olhos de amigos meus muçulmanos e ao mesmo tempo, tento entendê-las com ajuda de especialistas que comentam o Islão. Unicamente, através de tal aproximação reverente a outras crenças diferentes das minhas, posso assim, praticar o princípio da igualdade de todas as religiões. Ao mesmo tempo, é meu direito e dever assinalar os defeitos do Hinduismo para o purificar e mantê-lo puro. Não obstante, quando um não-hindú critica indiscriminadamente, passando uma lista de todos os seus defeitos, não faz mais do que pôr em evidência a sua própria ignorância e a sua incapacidade de se situar sob o ponto de vista hindú. O seu ponto de vista é distorcido e o seu juízo viciado. Assim, a minha experiencia é que todas as críticas de não-hindús sobre o Hinduísmo ajudam-me a descobrir as limitações da minha religião e também me ensinam a ser prudente, antes de me lançar em críticas sobre o Islão ou o Cristianismo e os seus fundadores.”
Esta postura manifestada por Gandhi é de um respeito radical pelo outro, diante do qual não se exclui nem se absorve, mas onde acontece um acolhimento reverencial.

Parto também da convicção de que o outro não é um incómodo, mas sim um benção para mim, porque me complementa. O outro que se manifesta diante de mim é diferente porque tem uma identidade. E para que exista enriquecimento no encontro, cada parte deve aproximar-se a partir do que o outro é em si mesmo. 

O problema da falta de diálogo está na identidade daquele que contém exclusivamente elementos de autoafirmação e narcisismo absoluto. Não basta apenas questioná-lo, mas sim estar constantemente a purificar as questões, tendo como guia a abertura e o acolhimento do outro que é “diferente” de mim mesma.

Mas o respeito pela alteridade não consiste apenas em suportar educadamente a diferença, mas sim chegar a ter a convicção de que toda a diferença é uma bênção para todos e que esta diferença traz consigo um valor teologal, no sentido que me permita aproximar-me mais da humanidade e de Deus. 

Todas as religiões são chamadas a promover em conjunto a paz e a justiça no mundo, não apenas com palavras, mas principalmente pela forma que se relaciona com a humanidade inteira.


“O sofrimento do nosso país tem sido profundo.
Deste sofrimento surge uma grande ternura.
A ternura transmite paz ao coração.
Um coração pacífico transmite paz ao ser humano.
Um ser pacífico coloca paz na sua família.
Uma família pacífica coloca paz numa comunidade.
Uma comunidade pacífica coloca paz numa nação.

Uma nação pacífica põe paz no mundo.” (Monge Budista)

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

A MULTIDÃO É MENTIRA

"A multidão é mentira; a verdade está no Indivíduo"  (S. Kierkegaard, Ponto de vista explicativo da minha obra de escritor)


REGINA SARDOEIRA
Na sequência da crónica da última semana – TUDO AQUILO QUE PERDEMOS – e seguindo uma articulação lógica de ideias, fui literalmente visitada por esta afirmação do filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard. E, numa espécie de compulsão, não deixei mais de refletir sobre o conteúdo de tão sábia sentença.

Percebi que, tal como Kierkegaard, defendo o Individualismo, não na sua forma básica e vulgar, pela qual os homens espezinham os outros homens, pela qual se vai acedendo a uma escalada de egocentrismo e se cultiva o mais extremo dos narcisismos, mas numa perspetiva de acesso profundo à própria subjetividade, que apenas nós, enquanto indivíduos, podemos sondar. Cada um precisa, antes de mais, de definir-se e apresentar-se, perante si mesmo, numa auto observação, tão lúcida quando possível, para descobrir quem é, o que quer da existência, que missão deve escolher para si, que talentos possui e deve incrementar, que fraquezas deteta e deve colmatar.

Não nos iludamos: vivemos individualmente, e é a sós, no segredo inviolável da nossa consciência, que existimos efetivamente; e apenas na mais estrita e profunda individualidade encontraremos o que há de nós, em nós. Curiosamente, Kierkegaard, nas suas obras (chamamos-lhe filósofo, mas não era esse o título que o próprio se atribuiu, decerto escritor ou panfletário, que assim acabou sendo, na sua curta existência) não se referia ao Homem, deste modo maiusculamente grafado, mas ao Indivíduo, única dimensão humana a que, de facto, somos capazes de aceder, enquanto consciência. 

Se pensarmos na multidão, dificilmente conseguiremos defini-la. Trata-se de uma entidade multicéfala, multicorpórea, multicerebral, multiorgânica que, na simbiose, adquire uma personalidade própria? É um monstro acéfalo, incorpóreo, descerebralizado, desorganizado, incapaz de tomar qualquer decisão, enquanto tal? Existe, de facto, como suporte da palavra com que lhe aludimos? 
Poderíamos multiplicar o questionamento; mas seria, provavelmente, muito moroso. E então direi, com Kierkegaard: "A multidão e mentira"! E ainda: "A verdade está no Indivíduo!"

Afinal, a sentença do dinamarquês equivale ao imperativo délfico - Conhece-te a ti próprio! - que (dizem) guiou Sócrates nos caminhos da sabedoria - ou da douta-ignorância, seu preferencial apodo. Foi a linha de pensamento de Sartre, que, negando deus, afirma que "estamos sós e sem desculpas", absolutamente responsáveis pelos nossos atos. Poderia percorrer, por inteiro, a história do pensamento que, invariavelmente, encontraria o mote do reforço do individual, por oposição à turba. Mesmo Marx, o teórico/prático do comunismo – esse mito prodigioso que o Homem, não o Indivíduo, foi incapaz de entender cabalmente – assevera, numa das suas sentenças: "O livre desenvolvimento de cada um é condição para o livre desenvolvimento de todos." Cada um - o Indivíduo - Todos - a possível multidão. 

Individualismo e comunismo, assim, deste modo irmanados, como se fossem expressões de uma mesma doutrina? Exatamente, não tenhamos dúvidas: apenas a ênfase no pleno crescimento individual poderá garantir o sucesso harmonioso do coletivo. Sermos donos e senhores do nosso eu, podermos elevar-nos, enquanto entidades autónomas - e isso é ser racional -, pautarmos toda a nossa acção nas linhas do imperativo categórico que ordena, com Kant, "Age de tal maneira que possas querer que a máxima da tua ação se converta em norma de conduta universal.", seria a salvação disto, que dizemos ser, "A Humanidade" . 
Não estou a ver outro caminho, não sou capaz de justificar, no específico momento que vivemos, nenhuma conduta coletiva que possa restituir-nos tudo aquilo que perdemos. Julgo que nos obstinamos demasiado em esconder a linha dos nossos pensamentos, o vigor das nossas certezas, o questionar das nossas perplexidades, para irmos em busca da receita, aquela, a milagrosa, que nos devolverá o admirável mundo novo, não o do romance de Aldous Huxley, mas o outro, que faria da nossa pobre sociedade - porque somos, socialmente, muito pobres - um verdadeiro lugar e uma verdadeira atitude existencial, moral e ética, capaz de nos devolver a nossa intrínseca e insubstituível individualidade. 

Vejamos alguns exemplos: que valor tem ainda o ato eleitoral massivo, quando está provado, à saciedade, que aqueles em quem se vota não merecem, individual e coletivamente falando, uma réstia de confiança? Todos mentem, acreditem, e até os que falam verdade, estão, afinal, a mentir a si mesmos. E é de tal modo prolixa a informação, que basta escutar - com os ouvidos, e com a inteligência racional que nos define - para não termos desculpa desse ato insensato que, periodicamente, praticamos, a fim de conferirmos a semelhantes enganadores o poder de decidirem os nossos destinos individuais. E, a outro nível, que significado humano podemos ainda atribuir à avalanche "cultural" de que quotidianamente somos alvo e nos bestializa, no uso e abuso do lugar comum, na repetição de chavões e fórmulas de viver que parecem ter os atributos da receita de existir e são, afinal, puros logros? Se quisermos ser honestos, de nós para nós mesmos - ou seja, individualmente, sem consultar o vizinho ou o "google"- veremos o terrível vazio em que nos deixamos, paulatinamente, envolver, por culpa da nossa cedência à multidão e à mentira. 

A propósito: no contexto desta profunda e inquietante alienação e alucinação coletivas, alguém já se deu conta do estado efectivo de guerra em que estamos envolvidos? Guerra, exatamente, guerra. Os aviões ainda não sobrevoam os ares, as bombas não caem sobre as nossas cabeças...mas não sejamos ingénuos: esse era o modelo ultrapassado (ainda que mais honesto, porque visível - se podemos chamar de "honesta" a qualquer guerra) da Segunda Guerra Mundial e das outras, com diferentes armas, mas todas elas tangíveis! No nosso tempo, a guerra está disseminada e alastra de tal modo, nas pequenas e grandes atrocidades, perpetradas aos mais diversos níveis, que se tornou invisível, comum, quotidiana, banal: lidamos com ela como se nada pudéssemos, enquanto indivíduos, opor-lhe. 

A crise, falemos dela, essa sombra fuliginosa a sobrevoar o nosso universo humano, a crise que não é mais do que uma artimanha guerreira daqueles que tomaram as rédeas do mundo (nós fomos consentindo) e agora a brandem, como arma mortífera, a torto e a direito...até à hora (que talvez nem chegue) em que formos capazes de usar o nosso cérebro esvaído e o nosso corpo depauperado e tirar-lhes o poder de decisão com que arruínam o nosso mundo de homens. 

A solução está, pois, no Indivíduo, no discernimento intelectual que cada um possui mas parece que desistiu de usar, quando procura nos outros (homens como nós, mas que decidimos transformar em ícones ou messias) a solução que nunca, por essa via, nos será outorgada. Eles sabem disso e riem-se, à socapa ou escancaradamente, da ingenuidade com que lhes vamos dando vivas. 
Não e possível crer na multidão, seja ela constituída por um milhão, uma centena ou uma dezena de indivíduos: ela, seja lá quem for a "coisa", envolta neste pronome pessoal, é mentira, mente, mesmo quando fala verdade, porque os seus discursos visam um todo, que a nada corresponde, deixando à míngua o Indivíduo – única verdade possível neste mundo de homens a perderem-se, enquanto tal.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

SÁTIRA E TRAGÉDIA

CLARA CORREIA
Mal dado o encerramento da época de “Boas Festas” de tradição cristã, a seis de Janeiro, tem lugar no dia seguinte uma outra “celebração”, alegadamente pelos seus celebrantes de índole igualmente religiosa … uma vingança, assim designada pelos três protagonistas cujo religioso desígnio designara o extermínio de uma dúzia de vidas humanas enquanto produtoras e promotoras da criatividade ao serviço do Humor mais ou menos cáustico, mais ou menos inocente, mais ou menos sarcástico, mais ou menos insipiente ou contundente … aos algozes do Humor não importava o seu pendor, mas apenas o seu clamor enquanto meio de catarse das nossas insalubridades emocionais, irracionais, comportamentais, humanas, em suma. É claro que o uso individual da liberdade, bem entendido, supõe o respeito pelos limites, os mesmos que determinam e disciplinam o direito à mesma por parte de todos; e, bem assim, o exercício da liberdade implica também o da rejeição parcial da liberdade alheia sempre que esteja em causa a colisão de opiniões, argumentos, fações. Entre a dramática frequência da discórdia humana e a trágica sucessão de consequências daí resultantes, a diferença existente é a mesma que paira entre um Drama e uma Tragédia … é a mesma que separa uma acção de protesto minimamente civilizada de uma acção de protesto que ignora por completo a civilidade e a noção de civilização, e é a mesma que, eventualmente com extrema discrição, divide a aceitação total ou parcial da liberdade do outro (e que salvaguarda sempre a sua vida) e a negação e rejeição absoluta dessa liberdade do outro e, portanto, da sua vida … quase sempre a culminar na sua eliminação física. Quaisquer reticências acerca disto serão as mesmas acerca da ilegitimidade de um apedrejamento público de uma mulher alegadamente adúltera e, em suma., acerca dos princípios civilizacionais. “JE SUIS pela vida humana” seria, por isto, mais apropriado e, sem dúvida, mais honesto de ostentar em muitos casos! A sete de Janeiro de 2015, o que esteve sobretudo em causa na redacção do jornal satírico “Charlie Hebdot” não foi um ataque ao Humor, à Imprensa satírica e à Liberdade de Expressão, foi tão só o desrespeito absoluto pelas doze vidas, em particular, e pela Vida, em geral. Nada mais! Este foi o facto que produziu o motivo noticioso mundial. Não foi a ausência inumana da capacidade humorística, não foi a aversão à Sátira nem um inesperado surto psicótico propenso à tragédia … nem tão pouco terá sido assim tão relevante na sua importância a intenção de asfixia da liberdade de expressão. Haja mais conjunturas favoráveis à tentativa de extermínio da Liberdade do outro, senso lato, em Paris ou noutra cidade, e haverá tantos actos bárbaros de extermínio da Vida quantos os que o fanatismo ditar a quem a desvaloriza alegadamente em nome de um Deus, dito Alá, e de uma religião-alibi que, como todas as religiões, nada tem a ver com a violência e certamente tolerará a Sátira e condenará a Tragédia.

domingo, 18 de janeiro de 2015

IMORTAL IDADE

MIGUEL GOMES
Vou combatendo o tempo com a minha ideia de imortalidade. 
Nada como chegar aqui, sem nada para escrever, desfolhar ontem um livro ilustrado, com uma história infantil, com moral para gente grandinha, e deixar-me perder nos desenhos. 

A cabana de madeira, paredes estreitas, um banco onde repousa um livro, uns óculos, uma vela já derretida, pelo fogo ou pelo sonho, uma manta de retalhos sobre uma cama tosca, uma cadeira para dar descanso à roupa da labuta diária, um suporte e uma bacia, terá água para trazer aos olhos um novo dia, uns chinelos e umas meias dentro deles, tudo sobre um tapete com inscrições que mal cabe no quarto do tamanho da cama. 

Há um postigo, mas deverá servir apenas de despertador.
Quem assim se deita, ainda que personagem ilustrada, ainda que imaginada por quem de traços se faz à vida, saberá que a noite é feita de leituras, de letras que se sacodem pelas sombras que a vela atira ao mundo quando respira. 

E antes que a imagem se esfumasse, deixei-me entrar hoje pelo monte dentro. 
Alças da mochila sobre os ombros, mãos fora dos bolsos a tactear um pouco o escuro, os pinheiros ainda que novos e estreitos deixam pender ramos secos, duros, mas não há mão que tudo tateie e lá passa um ramo, a mais escuro que lusco fusco não dá para perceber se é um pinheiro, eucalipto ou até sobreiro, nem pelo cheiro, porque pelo escuro a andar pouco há a cheirar, o olfacto recolhe-se e certamente lamuria-se pela fraca decisão de quem movimento o corpo. 

O tempo encarregou-se de alcatifar o chão com camadas sobrepostas de caruma, erguiço ou chamem-lhe o que quiserem.
As sapatilhas enterram-se, num misto de sujidade e humidade, não lhes chegando isto ainda têm que aguentar os passos tibuteantes que lhes coloco, terreno incerto, passos incautos. 

Era capaz de me deixar perder, caminhar indefinidamente pela natureza do que somos, até descobrir um vulto semi perdido que tenta chegar a casa na véspera de Natal, mas de Garrinchas apenas Torga, nada de Miguel, por isso vou procurando a soleira, os degraus, o alpendre que se encosta a uma árvore (pode ser qualquer uma), o tapete feito de pedra irregular que se amola com o passos sem direcção, a porta e as frinchas nesta que deixam ver um pouco da luz da vela ou lareira, o calor que nos move pelas brasas da nossa vida, o levantar do braço e levar a mão ao ferrolho e ouvir, antes de terminar a pergunta, Entra.
Havemos de fazer do corpo a casa, da casa o templo, dos sonhos a realidade tão palpável quanto um cajado, a vara tosca agreste que nos suporta a ignorância e o fiel amigo, animalito de quantas patas, pelos, escamas e asas quiser, que nos guia enquanto os nossos olhos são fechados por quem planta betão onde antes respirava um chão.

E entramos, sem conhecer a noite ou a casa, semicerrando olhos para ver melhor aquilo que nem sempre perscrutamos. 
Eu vejo uma cabana, onde entro, adormeço e sonho que tudo isto é um sonho, povoado por paisagens e habitado por pessoas que ainda não se descobriram crianças. 
E tu, que vês?
Já tinha tomado o tempo quando se virou a mim a noite.
"É escuro", surgiu a medo.
E eu, tolhido de cansaço, voltei costas à sombra e deixa-a a falar sozinha com o barulho.
"É escuro", continuou.
Mas já lá eu não estava, voltado de costas ao mundo, segurando ao ombro a manta retalhadas de serapilheira com que me cubro, caminhei até deixar para trás o corpo.
"É escuro", murmurou.
"Eu sei"... 
"Abre os olhos"

sábado, 17 de janeiro de 2015

OS DEGRAUS DA FELICIDADE

JORGE NUNO
No segundo dia do ano, bastante cedo, apanho o autocarro – como opção de transporte –, apesar de me desagradar as quase três horas e meia de viagem para percorrer 210 kms. Reparo que em cerca de quinze minutos terei olhado para o relógio umas dez vezes. Mostro-me agastado pelo facto de não haver aquela valência na cidade e ter que me deslocar ao Porto. Porque me estava a sentir menos bem, decido esquecer os aspetos desagradáveis e a fixação no destino e gozar o resto da viagem, apreciando a paisagem, que tanto pode ter de agreste como de bela. Tudo dependerá de como os nossos olhos e a nossa mente a querem ver. Como que por encanto, tudo se torna mais esbatido e suave, depois da segunda paragem, quando entra um passageiro e se senta junto de mim. Este, de imediato, mostrou ser uma pessoa positiva, alegre e boa conversadora e a conversa e o tempo fluíram agradavelmente.

Chegado ao destino, compro um jornal e dirijo-me à conhecida clínica portuense. À entrada da receção, faço o check-in automático, numa máquina, e desloco-me ao balcão, onde transbordava simpatia. Ofereceram-me uma revista e chamaram uma auxiliar para me acompanhar à sala de espera. Já sentado, vejo tratar-se de uma revista que é propriedade do próprio grupo, na área da saúde – embora editada no verão passado –. Apesar de ter um jornal para ler, folheio-a com alguma curiosidade. Logo me deparo com um artigo sobre a “Felicidade” e que me parece muito interessante, já que mostra o perfil de um português feliz, numa altura em que me parece que anda tudo com cara de enterro. Ao folheá-lo, destaco coisas como: “As pessoas felizes são 12% mais produtivas” [dados do Departamento de Economia da Universidade de Warwick (Reino Unido); “(…) a existência de hábitos saudáveis antes dos 50 anos traduz-se no aumento de uma saudável e feliz longevidade. Não ter vícios e fazer exercício é importante mas, a forma como contruímos as relações sociais, é determinante para se viver mais tempo” [“Harvard Study of Adult Development”, estudo efetuado nos últimos 72 anos por investigadores da Universidade de Harvard]; George Vaillant, diretor do anterior estudo nos últimos 40 anos, acredita que “um envelhecimento bem-sucedido não está mais dependente das estrelas ou dos nossos genes do que da nossa vontade”; “O humor é uma forma de lidarmos com os conflitos” [Scott Weems, neurocientista cognitivo americano]; “O humor é um ingrediente fundamental para a felicidade. (…) Tenho uma predisposição para ver o sentido cómico das coisas. Alivia a tragédia e coloca a vida noutra perspetiva. [Francisco Gomes, copy e contador de histórias]; “O ser humano tem a capacidade de alterar a forma como vê o mundo, de maneira a sentir-se melhor com a situação em que se encontra” [estudo apresentado pelo departamento de Psicologia de Harvard].

Faço uma pausa para refletir. – Espera lá… mas foi isso que eu fiz, quando vinha no autocarro. Senti que tinha que infletir a tendência de má-disposição, de neura…, e ainda por cima no início do novo ano. A verdade é que consegui e passei a sentir-me melhor. Aquela relação ocasional, de pouco mais duas horas, com uma pessoa bem-disposta, ajudou muito. 

Retomo a leitura e vejo alguns dados apresentados, que decorriam de um estudo intitulado “A Avaliação Subjetiva da Felicidade dos Portugueses" - estudo de 2010, realizado por dois membros da Comissão Científica da Associação Portuguesa de Estudos e Intervenções em Psicologia Positiva, com entrevistas feitas a 1033 portugueses de ambos os sexos, a residir em Portugal Continental, com idades entre 16 e 55 anos. Neste estudo estiveram também envolvidos a Alemanha, França, Reino Unido, Itália e Espanha. Pode ler-se: “Mostram-nos os estudos que os que constroem diariamente a felicidade tendem a ser altruístas e não egoístas, atentos ao bem-comum, cooperativos, pacifistas, confiantes nos outros, mais tolerantes e democráticos e companhias agradáveis”. A minha primeira reação é – Está mal! Deviam ter introduzido mais dois escalões etários: dos 55 aos 65 anos e mais de 65 anos, porque seria interessante auscultar este grupo populacional, até mesmo esquecido para efeitos de estudo –. Sinto alguma irritação e, de imediato, foco-me nos aspetos positivos do estudo, até ser chamado, e dirijo-me ao gabinete médico, onde fui atendido com eficácia e cortesia.

No regresso, já de noite, sem companhia ao lado e sem poder apreciar a paisagem, revi mentalmente o artigo sobre a “Felicidade” e dos degraus que têm que se subir para a alcançar, ou melhor, construir. – Se calhar até nem é preciso muito esforço, para ir subindo uns degraus – penso. Vêm à mente os interesses das multinacionais e do neoliberalismo de garras afiadas, entranhados nos atos de governação e de gestão – como forma de pressão –, em campanhas bem oleadas de Marketing, que fazem crer que a felicidade advém do “ter”, bem ao jeito de quem se deixa enrolar facilmente pela ilusão e pela ambição descontrolada, mesmo com cortes nos salários e pensões. Em vez do PIB, porque não se adota, no ocidente, o conceito de FIB - “Felicidade Interna Bruta”, criada pelo rei do Butão, baseada no princípio de que “o verdadeiro desenvolvimento de uma sociedade humana surge quando o desenvolvimento espiritual e o desenvolvimento material são simultâneos, assim se complementando e reforçando mutuamente”?

Com pouca luz e trepidação do autocarro, abro finalmente o jornal e, enquanto vou virando páginas, deparo-me com notícias como: “Passagem de Ano na Madeira – 1, 046 milhões de euros em fogo de artifício, gasto em 8 minutos”; “Acidentes nas estradas portuguesas provocam 480 mortos em 2014”; Evaporou-se o BES e metade da PT. Bolsa portuguesa perdeu 27%”; “Segurança Social publica lista de funcionários que serão colocados na requalificação”; “Falta de pagamento do Estado deixa alunos da educação especial sem aulas e pais desesperados”. Era inevitável: fico fulo, ainda mais por me sentir impotente perante estes factos, o que me faz descer novamente os degraus da felicidade, num dia que estava, claramente, a subi-los! 

Para corrigir este estado anímico, lembro-me da oração de São Francisco de Assis: “Senhor, dai-me força para mudar o que pode ser mudado, resignação para aceitar o que não pode ser mudado e sabedoria para distinguir uma coisa da outra.” Logo de seguida, lembro-me do outro Francisco, o Papa – que conhece seguramente esta oração –, que parece tudo querer fazer para mudar o que está mal, começando pelo Vaticano, e consegue manter um desconcertante sentido de humor, confiança no caminho da mudança e um otimismo galvanizador, que pode ajudar a chegar a essa mudança. Por uma rápida sucessão de ideias, chego ao falecido psiquiatra norte-americano – Milton Erickson –, que era muito espirituoso e usava contos e anedotas para provocar mudanças substanciais nos seus pacientes. Enquanto o autocarro rola a boa marcha na A4, reflito: “Se calhar é por isso que há tanta anedota no Governo, no Banco de Portugal, na Comissão Europeia, no Banco Central Europeu e no Fundo Monetário Internacional!”. E não é que em vez de continuar zangado… sorri, subindo mais um degrau!? 

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

A ÚLTIMA CONSULTA

Susana Dias
A última consulta no IPO ou O elogio da Vida
Quando saí do IPO, depois de receber a notícia da alta, o vento frio e a chuva fizeram-me apressar mas não resisti a voltar-me para um último olhar para aqueles edifícios que conhecia agora de modo tão familiar mas que em tempos me pareceram labirínticos. Nos meus olhos cabiam todas as memórias que guardo ciosa e silenciosamente daquele hospital onde vivenciei a ténue linha que separa a vida da morte. Uma linha demasiado frágil porque o cancro não brinca em serviço e as lutas que se travam entre o corpo doente e os tratamentos não têm um desfecho consensualmente previsível. A medicina é uma ciência em franco progresso mas cada corpo individual é um campo de batalha de características muito particulares o que faz com que o sucesso ou fracasso dependa de inúmeros factores. Por isso, o lema nas enfermarias tem uma linha pragmática, “viver 1 dia de cada vez”. Nesta luta, coube-me a sorte de ser sobrevivente. Não há maior fortuna. Por isso, quando saí da consulta em que a minha médica me deu alta, olhei a montra da papelaria do IPO, no auge da minha exultação, quase me deixei entrar para comprar uma raspadinha. Mas estanquei à entrada e, claramente, disse a mim própria que tinha ganho novamente o direito a sonhar com 2 dias de cada vez e que isso haveria de me bastar para completar o sentido da minha existência, sem lhe querer acrescentar algo mais.

Estou, ainda, um pouco anestesiada com esta ideia de deixar o estado de doente oncológica. Foram 6 anos e meio a viver com uma doença estigmante e esta vivência deixa marcas profundas na pessoa que se reconstrói a partir da sentença da doença. 

A fama medonha do cancro, que exalava o cheiro a morte, chegava sempre antes de mim, por isso, lutar contra o estigma da “coitadinha” que conseguia vislumbrar em tantos olhares, no início da doença, exigiu que quisesse continuar igual a mim mesma, com o direito à normalidade que eu queria manter mesmo sabendo que um sacana qualquer se alojara dentro de mim e se entretinha a sugar-me a vida no sentido mais biológico. E se o meu corpo perdia o vigor com a quimioterapia e com exames invasivos, se o cabelo me caía, se o medo rondava à minha volta, na minha alma aumentava o desejo de viver e de sobreviver. Ao longo desta luta que se travou em muitas frentes, tive o privilégio de contar com os melhores reforços, a família e as minhas amigas ( e os ex alunos, claro!) Foi graças a este eixo aliado, imprescindível sempre em todos os momentos, que estou hoje aqui a cantar vitória sobre o gajo que entrou em mim sem licença, em 2008. Ah, houve momentos verdadeiramente inesquecíveis como aquele em que as grandes amigas me acompanharam no corte de cabelo, simbolicamente cortando parte do seu... Momento único de cumplicidade da amizade! 

Nesta narrativa de percurso de doente de uma doença maldita, reforcei a convicção muito minha de que o sentido da existência de qualquer homem tem origem nos vínculos que estabelece com as pessoas próximas. Na bonança dos dias soalheiros ( sim, gosto do sentido desta afirmação. ) em que a alma exulta de satisfação ou na penumbra dos dias de desespero, a presença do Outro é o que nos lança na esperança do futuro porque ao vivenciar um ou outro estado acompanhados criamos laços de profunda cumplicidade que reforçam a nossa vontade de viver. Ivan Ilich, personagem mártir da novela de Tolstoi com o mesmo nome, agoniza moribundo, na mais solitária dor existencial porque em nada nem ninguém encontra consolo e sentido para o seu sofrimento, concluindo, no final da sua existência, que todo o investimento da sua vida tinha sido um erro, incluindo a sua profissão e família. Esta é a mais extrema solidão humana, a constatação derradeira da negação do sentido. 

Sucumbirmos à vivência de uma fachada, encurralados pelas exigências extenuantes e alienantes da profissão e do dia a dia, sem tempo para a boa cavaqueira com os amigos, para partilha dos risos, dos sorrisos, dos gestos de dádiva com aqueles que amamos, afastados da contemplação e fruição da natureza, mais empenhados em viver a vida dos outros que a nossa, é a mais séria hipoteca do sentido na nossa existência. Como hoje já as pessoas que eu amo me ouviram dizer, se ganhei alguma coisa com esta doença foi o compromisso de viver profundamente, sem deixar a vida passar-me ao lado, saboreando intensa e apaixonadamente todos os pequenos momentos com aqueles que amo.

Se tenho medo que ele volte? Esse é um assunto que não me preocupa porque tenho uma vida para viver. E talvez uma raspadinha para comprar amanhã.

PROFISSÕES DE RISCO

Gabriel Vilas Boas
Nos tempos que correm, cada vez menos somos nós a escolher a profissão a seguir, normalmente é ela que nos escolhe ou as circunstâncias fazem cruzar os nossos caminhos. Serve isto para dizer que há profissões que nenhum pai gostaria de recomendar ao seu filho, pois o perigo faz parte do seu ADN. Pensei nisto ao recordar a morte dos polícias no ataque ao Charlie Hebdo e no naufrágio dos pescadores de Caxinas, ao largo da praia das Maçãs, em Sintra. 

É recorrente queixarmo-nos das difíceis condições dos nossos empregos, mas esquecemos que há profissões que fizeram um contrato de alto risco com a morte e muitas vezes há acidentes de trabalho. 

O caso dos pescadores é paradigmático. É uma profissão mal paga, agreste, física e psicologicamente desgastante, altamente perigosa e brutalmente desconsiderada. Para muitas comunidades piscatórias, o mar há muito deixou de ser uma sedução irresistível e tornou-se, desgraçadamente, num destino negro. 

Os miseráveis salários pagos aos pescadores empurram os seus filhos para um futuro longe da escola e perto do mar, onde ano após ano a história se repete: naufrágio, perda, morte, luto… recomeço. Ficam as cicatrizes na alma e no coração da gente que aprendeu a viver com a dor desde tenra idade.

Se formos até Caxinas, veremos que quase não há casa onde não exista um livro de condolências, mas nos sonhos daquelas gentes há o desejo que os filhos escrevam uma história em terra firme. 

Sophia de Mello Breyner, no conto “A Saga” conta que Sören nunca perdoou ao filho ter-se tornado marinheiro, porque esse sedutor enganador lhe tinha roubado dois irmãos. Há três dias, o mar cravou mais um punhal no coração dos caxineiros. Entre eles e o mar há muito que só existe mágoa, dor e ressentimento. 

E nós? Nós olhamos com triste indiferença para o rodapé dos telejornais e declaramos, pesarosos, para a nossa irritante consciência: “Que queres? É a vida…”. Pois… uma vida que decepa vidas todos os anos, a quem hoje decretam proibições de captura de sardinha e amanhã de carapau e te dizem com arrogância tecnocrata “vai apanhar dourada para o meio das maçãs”. E eles vão e não voltam mais. 

Pescam a matéria-prima com que os restaurantes chiques fazem essas refeições gourmet que nos custam meio salário daquela gente. Mas isso nunca nos importou nada, pois nunca exigimos aos impostures dos beijinhos de quatro em quatro anos que nos tratem como gente que somos, que acabem com esta lógica mercantilista da globalização que nos empurra para profissões miseravelmente pagas como se de uma doença genética se tratasse.

Os pescadores, como os polícias, precisam também de ser remunerados de acordo com o risco que correm. 

Gosto muito de comer bom peixe! Se for preparado por um qualquer chef, ainda melhor, mas saber-me-ia ainda melhor se soubesse que tinha sido pescado por um qualquer chef pescador, que tinha escolhido ser marinheiro porque o mar o seduzia irresistivelmente, apesar de ter tão boas ou melhores opções em terra. Quando é que sai uma diretiva comunitária que proíba a captura obscena do trabalho e do risco alheios?

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

A MULHER QUE QUERIA SER CARIDOSA

ANABELA BORGES
Fez o curto percurso do local de trabalho à pastelaria.
Era próximo e gostava de fazê-lo a pé. Apreciava a aragem, qualquer que fosse o tempo que fizesse (que fosse talvez um pequeno luxo de quem trabalhasse em lugares fechados – apreciar a paisagem por uns escassos quatro ou cinco minutos por dia); deitava o olho às variações da folhagem das árvores que ladeavam o caminho; contornava os poucos obstáculos que já conhecia de cor; trocava olhares com o cão dócil que sempre assomava ao portão de uma das moradias. Um enlevo no rodar das estações, e, quase a direito, lá estava, à porta da pastelaria.

Estava um dia frio de Inverno com sol e temperaturas baixas. O abrir da porta, o entrar na pastelaria constituía sempre um pequeno prazer, qualquer que fosse o tempo que fizesse, que era sempre o contraste com o tempo lá fora. Naquele dia, a mulher já sabia, mesmo antes de abrir a porta, que a esperaria um ambiente quente e aconchegado, com o característico cheiro a pão acabado de cozer.

Antes de abrir a porta, porém, deparou-se com um homem que a interpelou. Abordou-a com alguma parcimónia e circunspecção, parecendo à mulher que tinha estado à sua espera, como se a soubesse ali àquela hora. Não era um homem que intimidasse à primeira vista, que causasse medo, que fizesse com que a mulher sentisse de imediato alguma espécie de ameaça. O homem vestia-se de modo apresentável, parecia educado nos modos e parecia até um pouco acanhado na abordagem que lhe fazia. Mas havia detalhes que, observados de perto, expunham a sua frágil condição social. Reparando-se bem, o homem denotava alguma falta de cuidados de higiene (as mãos – sempre a mulher fora boa observadora de mãos). E, breve, outro elemento se juntaria a este para atemorizar a mulher, assim que se introduziu a linguagem na abordagem: o homem era estrangeiro. Imigrante, talvez; de Leste, talvez. A língua, e ainda mais aquela língua que lhe era desconhecida, a criar uma barreira de incertezas e preconceitos.

A mulher mostrava-se um tanto receosa enquanto agarrava o puxador para empurrar a porta da pastelaria, sabendo, muito embora, que não corria perigo de maior, na rua movimentada àquela hora e com a pastelaria cheia de gente. Ainda assim, sentindo-se intimada, receou.

O homem lá foi arrevesando um português que soava a lamúria. Pediu-lhe dinheiro, uma esmola. A mulher abanou a cabeça, que não. O homem fez um gesto a levar a mão em punho à boca, o cotovelo ligeiramente apontado para cima, e pediu-lhe uma sopa. A mulher acenou-lhe que sim. Empurrou a porta e entrou. O homem entrou atrás dela. A mulher sentou-se a uma mesa junto da vitrina – era ali que gostava de ficar, à claridade. O homem arrastou uma cadeira para se sentar junto dela. Rapidamente, ela fez que não com a cabeça e apontou-lhe outra mesa. Ele foi sentar-se à outra mesa.

Estranho momento, esse. Ela sabia que era hábito, em vários lugares do mundo, pessoas desconhecidas partilharem mesas em espaços públicos. Ali, nem por sombras se punha o caso.
O dono da pastelaria veio, ela fez o seu pedido diário, acrescentando “e uma sopa para aquele senhor”. Para evitar algum tipo de constrangimento para qualquer das partes, pagou logo a sopa que o homem havia de comer.

A sopa foi servida. O homem pôs as mãos em oração e, com muitas vénias, agradeceu à mulher. Pediu azeite e sal ao dono da pastelaria e encharcou a sopa desses néctares de que devia sentir falta no dia-a-dia. Pediu pão. O dono da pastelaria serviu-lhe duas fatias de pão. O homem comia tudo com a sofreguidão da fome.

A mulher comia a sua refeição já praticamente tranquila, já quase como se tratando de um dia normal, quando o homem disse qualquer coisa, lamuriou, apontando para o refrigerante que ela bebia. Atrapalhada, a mulher fez que não com a cabeça. Logo o dono da pastelaria encheu um copo com água e deu-o ao homem. Bebeu-a de um trago. Deviam faltar umas duas colheres de sopa para terminar, quando voltou a falar para a mulher. Era sempre bastante assustador quando falava, pois era desajeitado na língua e levantava a voz em lamúria e como se estivesse a ralhar. Pediu um Euro à mulher. Ela fez que não com a cabeça. Ele insistiu, ela fez que não. O homem rapou o resto da sopa da tigela e lambeu a colher pelos dois lados. Antes de se levantar, voltou a agradecer à mulher com muitas vénias.
Estranha forma de caridade, aquela. Estranha forma de se relacionarem as pessoas, os necessitados com os que prestam ajuda – uma forma enodada de medos e preconceitos, de dúvidas e desconfianças. Uma forma quase ausente de comunicação.  

Lembrava-se da caridade que aprendera na casa onde nascera. Lembrava-se da partilha clara e aberta, sua mãe dizendo “vai levar este prato de sopa àquele pobre, espera e traz o prato, o copo e a colher de volta.

Para outra vez”. E os filhos iam, e não sentiam nenhum tipo de medo ou anseio, os pobres abrigados da chuva ou do frio da geada ou do calor debaixo do alçado da varanda. Eram “os pobres”, que não se usava o termo “mendigo” ou “sem-abrigo”. E havia também os pobres que tinham nome, que entravam e sentavam-se à mesa para comer, a casa de seus pais pequenina, e o pai a dizer “vai chamar o Sr, Fulano, que coma a sopa connosco”, e muitas vezes aquele rodado de pobres, a quem se dava a sopa e o pão e um copo de vinho, encostados aos cantos da casa: um no banco da cozinha, outros dois na beira da cama do quarto de costurar, outro na soleira da porta, dois ou três debaixo da varanda. Agora que pensava nisso, ela não sabia como conseguia a mãe multiplicar os comeres daquela maneira, pois que eram uma família numerosa na casa de pequenina. 

E não era vergonha ser-se pobre, nem chegar-se a um pobre, nem era assustador. Eram os que pouco tinham a dar ajuda aos que apenas tinham garantido um poiso obscuro onde se encostar para dormir.    Por acaso, não se lembrava de ver os ricos a ajudarem os pobres. Episódios desses não lhe enfeitavam a memória.   Lembrava-se apenas que a caridade era um pássaro amistoso ao pé da porta.

E perdida que estava nos recessos do tempo, apercebeu-se que o homem se tinha levantado para pedir dinheiro a todos os clientes da pastelaria, com a mão, em concha, estendida. Todos iam acenando que não. Acenavam que não e baixavam os olhos.
Antes de sair, o homem ainda fez mais umas vénias em agradecimento à mulher e mais outra em agradecimento ao dono da pastelaria.

Quando deixou a pastelaria, a mulher não pôde deixar de se sentir novamente acometida por alguns receios. E se o homem fosse mau e a esperasse numa esquina para lhe roubar o dinheiro, para lhe fazer mal? Se a seguisse até ao local de trabalho? Se lhe fizesse uma espera? Se tivesse uma arma?
Com estes pensamentos, foi andando. À sua vida.

Tempos passaram até que se lembrou desta história. Nunca mais vira o homem.
Estranha forma de caridade… envergonhada, silenciosa e amedrontada.


quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

AUSSI JE SUIS NIGÉRIA

ALINA SOUSA VAZ
O mundo ficou petrificado com os acontecimentos da semana passada em Paris e a solidariedade ultrapassou fronteiras e continentes. Contudo, não minimizando o acontecimento, obviamente, não vi qualquer manifestação em prol do massacre de duas mil pessoas na cidade de Baga e arredores, no nordeste da Nigéria.

Apesar das informações serem escassas, pois naquele país a liberdade de expressão é zero, a Amnistia Internacional investiga o acontecimento provocado pelo grupo armado islâmico Boko Haram que em raides e atentados à bomba estão a provocar um morticínio.

Dos sobreviventes que conseguiram fugir para Maiduguri, a capital do Estado de Borno, os relatos são proferidos a medo. 

No entanto, apesar das notícias serem nulas, lamento que a Nigéria não esteja nas bocas do mundo como o acontecimento de Charlie Hebdo. Apesar da porta deste território ficar no continente africano e não ser a porta do vizinho merece o mesmo respeito e cuidado no trato. 

Os homens que mataram em França reclamaram a justiça feita ao profeta Maomé e os que matam na Nigéria? O que os levou a raptar as meninas em Abril de 2014? O que os leva a proibir os estudos de dezenas de crianças em Peshawar? O que os leva a enviarem meninas de 10 anos com o corpo carregado de bombas? Que justificação apresentam estes homens para fazerem tal barbárie? Não entendo que tipo de religião dizem defender. 

Não é a religião muçulmana que está em causa, mas sim um fanatismo exacerbado de grupos terroristas tentarem instaurar um Estado islâmico a todo o custo. Não coloquem tudo no mesmo saco. Todas as religiões merecem o nosso respeito, pois na diversidade corrigimos as nossas falhas enquanto seres humanos. É nisto que acredito.

Como adoraria ver todos os representantes de estado juntos, abraçados pela falta de expressão, de liberdade de educação, liberdade de religião, pela falta de justiça e de estado relativamente a estes países sofredores!

A necessidade de união é extrema perante este país. A falta de jornalistas, de internet, de equipas médicas, de voluntários de ONG(s), de missionários levam ao esquecimento da dura realidade destas vítimas. Tal como não se pode relativizar o que aconteceu em França, também não se pode relativizar o que acontece amiúde na Nigéria. Todas as mortes provocadas pelas mãos de terroristas têm o seu significado e por todas elas devemos ficar indignados e por isso digo: “Je suis Charlie Hebdo mais aussi je suis Nigéria”.

Termino com as palavras de Papa Francisco na visita que fez ao Sri Lanka “pelo bem da paz, nunca se deve permitir que as crenças religiosas sejam utilizadas para justificar a violência e a guerra”.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

TUDO AQUILO QUE PERDEMOS

REGINA SARDOEIRA
O «sistema», a que inalienavelmente pertencemos, nós, os humanos, está corrompido a tal ponto que merece todo o género de ataques, merece ser «sistematicamente» criticado, até ao esfrangalhamento total.

Mas a verdade é que o sistema somos nós todos. Individual e coletivamente, nós, cidadãos de países com constituições, leis, governos, polícias, etc. fazemos o sistema e estamos absolutamente vinculados a ele, vivemos nele, pactuamos com ele. Logo, qualquer crítica, ou sátira ou julgamento que levarmos a cabo, visando o sistema, visa-nos a nós, sujeitos livres de uma sociedade a que, inquestionavelmente, pertencemos; e ostentamos documentos, cartões, registos, identificações etc., pelos quais não poderemos negar essa pertença ao todo. 

E então, aquele ou aqueles que fazem da sua vida uma batalha panfletária de crítica virulenta a tudo e a todos procedem como se estivessem acima ou fora do sistema, numa espécie de bolha ou de limbo onde nada pode atingi-los. Ocorreu-me agora mesmo a ideia de Deus: sim, todos esses que não hesitam em criticar este ou aquele sistema político, ou religioso, ou institucional ou individual ou seja lá o que for, atuam como se estivessem dispensados de levar em conta a diferença e respeitá-la, como se fossem os donos da verdade e da certeza absolutas, como se pudessem brandir armas, a torto e a direito, escapando sempre ilesos – em suma, como se fossem deuses.

Deus, a crer no Antigo Testamento, destruiu vidas, cidades, o mundo inteiro, até, aquando do dilúvio; e não cuidou de saber se entre aqueles que estava a exterminar haveria inocentes, nem se preocupou com o mandamento que ele próprio entregou a Moisés no Monte Sinai e dizia: “ Não matarás!”.

Ora, armar-se em Deus, sendo apenas um comum mortal, sujeito às leis dos mortais e vivendo com eles e como eles, não será um atentado a si mesmo e à sua própria fragilidade?

Penso que a humanidade no seu todo, e o indivíduo em particular, enquanto célula social, atingiu um profundo fosso no que diz respeito:

1º À Racionalidade. Viver em estado de guerra permanente, entre povos e indivíduos, se teve alguma justificação nos tempos que designarei como bárbaros, quando o território era disputado e a conquista, a base da existência humana, a querer constituir-se, enquanto sociedade, poderá ter feito sentido. Portugal, e a história da sua fundação, constitui a expressão perfeita dessa ânsia guerreira, dessa sede de território que, se bem que nos represente enquanto povo, não deixa de ser um exemplo acabado do mais absoluto barbarismo. Mas entretanto, parece que deixamos de ser bárbaros, arrogamo-nos o epíteto de civilizados; os territórios estão definidos, há fronteiras e línguas que nos separam, enquanto povos, costumes e tradições que nos conferem identidade, individual e coletiva. Guerras foram travadas, domínios e predomínios estabelecidos e perdidos, povos foram exterminados, escravizados, reduzidos; até que a Declaração Universal dos Direitos do Homem nasceu para garantir racionalidade às organizações sociais dos homens e às suas prerrogativas particulares. E contudo, todos os acontecimentos sangrentos que a história relata e o quotidiano atesta vão-se perpetuando, comprometendo a racionalidade.

2º À Liberdade. Nestas condições, quando a ameaça se abate sobre as pessoas, aqui e além, de forma continuada ou num ato brusco, não podemos considerar-nos livres. Quando somos literalmente vasculhados na nossa privacidade e comandados por mecanismos que, quase sem darmos conta, já permitimos que nos ultrapassassem – que ninguém se iluda acerca disto, tanto mais que vamos pactuando com essa e outras formas de auto devassa – poderemos, em sã consciência, afirmar que somos livres? 

3º Ao Direito à Diferença. Sim, somos todos iguais: mas proclamamos constantemente o respeito por aquele que é diferente. Ao mesmo tempo, vamo-nos agrupando, cada vez mais, em guetos, construímos redes incomensuráveis das mais inverosímeis partilhas, fechamo-nos em redutos e olhamos, desconfiados, para todo aquele que ousa querer entrar no nosso nicho ou que, dentro dele, pronuncia uma frase divergente das opiniões da maioria.

4º À Democracia. Formalmente, é o regime que comanda grande parte do mundo humano. E contudo, múltiplos conluios de caráter político e financeiro, foram retirando a voz e o poder ao povo, de que a democracia é, por definição, o governo. E somos nós, individual e coletivamente, que consentimos na apropriação do poder, que deveria ser nosso, delegando a gestão das nossas existências a grupos coesos e supranacionais de usurpadores.

5º À Segurança. Coabitamos com o perigo diariamente e chegamos mesmo a desejá-lo: quando conduzimos automóveis a alta velocidade (inventamos, nesta opção do mundo moderno, uma nova causa de morte), quando ingerimos produtos tóxicos, tratados e depurados em laboratórios que lhes acrescentam elementos perigosos, retirando-lhes a essência natural, quando nos afundamos em vícios anquilosantes, mesmo sabendo que o eventual prazer que daí poderá advir trará consequências letais, a médio prazo, quando nos deixamos enovelar numa existência desinteressante, rígida, insensata em prol de uma abundância material que nem sempre chega.

6º À Humanidade. Terrível, esta verificação! Sendo homens, ocupando, na escala dos seres, o patamar cimeiro, desumanizamo-nos quotidianamente, baixando à escala ínfima dos insetos que, displicentemente, calcamos aos pés. Desumanizamo-nos sempre que ofendemos o solo que nos alimenta, a terra que nos serve de habitáculo, os outros homens que connosco partilham um destino absolutamente idêntico. Desumanizamo-nos sempre que espezinhamos, pela palavra ou pelo gesto, aqueles com quem deveríamos, acima de tudo, dialogar. Desumanizamo-nos, quando preferimos ser governados por aqueles que nem sequer nos conhecem, em vez de nos transformarmos definitivamente nos legisladores e nos súbditos da nossa própria escala de valores. Desumanizamo-nos quando preferimos mentir-nos e mentir, ostentando um rosto que desfiguramos com os esgares que o tempo esculpiu em rugas de expressão que, apesar de tudo, são a verdade de nós.

7º Ao Infinito. Não, àquele infinito matemático com o qual jogamos e a que atribuímos uma notação simbólica, mas ao outro, o que representa o mistério a pairar sobre a nossa cabeça limitada, mas a constituir-se constantemente como o objetivo e a meta sonhados por todos os sábios. Sendo uma saudável contradição entre o limite e a vocação para o infindo, abandonamos a última por nos acharmos impotentes, por chacota ou por preguiça. E vamo-nos arrastando numa acomodação viciosa de pequenos gestos, de pequenas lutas, de ridículos esforços.

Bem poderia aumentar a lista e dizer que renunciamos ao sagrado e ao maravilhoso, ao obscuro e ao prodígio, à beleza e à criação…mas certamente não saberia como marcar o sinal de fim, nesta escalada para nenhures em que nos transformamos, enquanto humanidade. Porém, no âmago de tantas perplexidades, no seio de tantas ambiguidades, no contexto de tantos vilipêndios, eu vejo claramente a necessidade individual, profundamente individual, de cada um olhar, de si para si próprio, e corrigir, em si, o que perceber que deve ser corrigido. Somos antigos, enquanto humanidade, não temos desculpa! E qualquer um pode observar que quase nada fizemos, desde os primórdios, a não ser destruir os nossos bens mais preciosos: a Terra que nos abriga e alimenta, a Inteligência que nos ilumina o caminho, a Razão que nos deu a supremacia entre os seres.

Continuar à espera que os senhores do mundo, sejam eles quem forem, pensarão em nós, por nós, e construirão para nós o mundo, a que talvez ainda tenhamos direito, é um ato criminoso de lesa sobrevivência. Teremos ainda coragem de perpetuar este terrível cenário, acrescentando ao nosso mundo e à nossa responsabilidade irresponsável, os filhos que achamos ser nosso direito desejar? Acaso não percebemos à saciedade que o mundo que deixamos apodrecer não garante o equilíbrio para nenhum ser ainda não nascido?

A solução, a única que poderá salvar-nos, salvando a humanidade que trazemos pendurada em nós, como um esboço do que poderíamos ser, está na tomada urgente de consciência do que somos e do que podemos, cada um, de si para si próprio; e depois, a partida para uma ação construtiva que – eu não duvido – desde que parta da honesta descida ao fundo de nós mesmos acabará unindo todos os homens à volta de um projeto natural (mas obliterado) de uma existência finalmente humana.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

SANGUE

CATARINA DINIS
Acordamos todos,
Sentados numa cama de terror,
Lençóis manchados de sangue
E ainda de olhos fechados,
Nem sempre vemos o que é latente.
Terror de viver…
Descobrimos que a nossa liberdade
Talvez não seja tanta assim,
Não há compreensão,
Ideais ou religião,
Que entenda a maldade vil,
A crueldade, de matar,
Olhos nos olhos,
Cortar a pele, dilacerar as entranhas…
Cravejar as sombras.
Somos humanos,
Não há condição,
Temos que o aceitar
Procurar a Paz
E lutar contra os demónios.

domingo, 11 de janeiro de 2015

NA_TAL

MIGUEL GOMES
A estrada sinuosa, tal como os tempos que se comprimem antes do Natal. 
O sentimento vem-me em tempo fora de tempo. 
Longe vai a Natividade, tem dias o menino, Maria, embora virgem de concepção, sofre as agruras e as dores de uma recente paridez, segurando ao peito a salvação e amamentando o seu fruto, de leite e coração. 
José, impoluto, negociando com o dono do estábulo, verdadeira semente de alberguista, oscila pela novidade de ser pai vigilante e conceptor ausente. Ainda não lhe cabem as futuras indagações e o olhar vago para o espaço, de onde terás vindo tu que te fizeste filho sem eu me ter feito progenitor?

Mas sabe-o, ele, precursor de uma parentalidade verdadeira, a doação de labor, tempo e amor a um fruto, sem importar qual a árvore ou seiva que lhe deu vida. Desconhece igualmente, porque a mitigação tecnologia surgiria apenas um longo par de milénios, mais coisa, menos coisa, depois da noite fria no estábulo, que outros houvera antes dele, verdadeiros pais incógnitos de filhos professos.

A realeza metafórica recolheu às suas terras, guiadas não se sabe porque estrela, pois essa ficou a luzir sobre a coordenada celeste que apontava o início do caminho. Levariam o alforge cheio já, pois a leveza do que deixaram em nada se compara ao peso do que aprenderam com a simples presepialidade de uma realeza cujo trono é superior à própria dimensão que vislumbramos.

Ainda por lá ficam os verdadeiros de pureza, os animais e as companhias que os seguem por onde quer que os levem as pastagens, os pastores. Via-os olhar uns para os outros, enquanto o calor se soltava dos seus corpos e aqueciam a barriga e o peito desnudado da Virgem e a pequena cabeça sem coroa de uma criança, qualquer criança.

Aqueles olhos, sempre diferentes, com tonalidades distintas, mais ou menos ovaloides, mais ou menos almendrados, com iris mais ou menos alongada, ainda que quem observe seja o Mesmo, presenciavam pela enésima vez a mesma cena, ainda que em cenário distinto.
Dos céus desceria, sempre, impoluta, uma criança. 

De pouco adiantaria saber o sexo, ainda que as vozes reinantes admitam (ou lhes interesse) ser descendente másculo, Adão, Adam, Terra, Chão.
Cresceria saudável entre a loucura reinante, antes e hoje, no questionamento típico de uma criança envolto na mais verdadeira (como se houvessem verdades mais ou menos verosímeis) e profunda religiosidade, a única capaz de erradicar a nossa milenar dor. 
Chamar-lhes-iam amor.
Por ele percorreriam os mais variados caminhos, como estrelas cadentes, levando a luz, o calor e a sobriedade alegre de se saber superior ao corpo, ao desejo carnal de matar para viver. No entanto, todos eles, quer nos reze a história segmentos diferentes, pereceram nos diferentes parágrafos que compõem o volume, qualquer que seja o número, da nossa civilização sobre este paraíso, por aqueles que os seguiam, desejando martirizar quem nos permite saber que mártir é palavra que riam com partir, e se eles sabiam que ninguém parte para lago algum, de que nos adiantaria conhecer pelos nomes santidades e martirizações carnais?

Disseram, Deus há só Um.
Apesar de partirem, deixaram cá uma marca, visível apenas à noite, quando à solitude remetemos os corpos cansados e pequenos e nós olhamos vagamente para o céu. 
Cada um deles uma estrela, Belém ou outras cujos nomes pronunciados nos soem a estranheza. 
A miríade de luminosidades, cada um uma porta aberta para o lado de lá dos astros. 
A imensidão e profundeza do infinito mostrando que cada um de nós é ilimitado na verdadeira literalidade da palavra.

Embora pareça que todos nos remetemos a um inferno, literal, elas continuam ali, no céu, a lembrar que de nada somos, mas de tudo viemos. A cada dia uma estrela. Quantas delas por nascer. Um arco-íris talvez. Por cá os olhares dos donos da terra, os frágeis e inocentes animais, as crianças que sugam a maternidade por um seio, os olhares meigos de quem acompanha o esvoaçar lento de bandos de animais terrestres sobre os pastos montanhosos.
Natal? Natal é quando alguém quiser.

sábado, 10 de janeiro de 2015

EM DIA DE S.GONÇALO


“São Gonçalo de Amarante
Jovem e rapioqueiro
Venerado por tanta gente
Morreu a dez de Janeiro.”

ANTÓNIO PATRÍCIO
Entre quadras mais ou menos brejeiras e rogações solicitando protecção ou cura, São Gonçalo , tem vindo, através dos tempos, a ser um exemplo de vida, de trabalho e de missão.

A sua história e o seu apego às questões sociais granjearam-lhe a admiração não só popular como, também, a dos senhores que, ao tempo, administravam o vale do Tâmega e as várzeas e montados envolventes.
A fama dos seus prodígios levaram longe o seu nome e, umbilicalmente ligado, o de Amarante.

Se, ao tempo, as histórias se fundiam, hoje, continuam a fundir-se pois, seria impensável falar de São Gonçalo sem falar de Amarante ou, vice-versa.

São Gonçalo, beato canonizado pelo Povo, se não é o santo mais popular do norte do Portugal é, sem sombra de dúvidas, um dos maiores e mais populares. Venerado com novenas e clamores, cantigas populares e hinos religiosos mantém-se actual e visitado por milhares de pessoas quer no seu “túmulo” quer na sua capela de ex-votos e agradecimento de graças concedidas.

Iconografado, normalmente, de bengala, vestido de frade dominicano, de livro na mão esquerda e ponte aos pés é-o, por vezes, também, como peregrino, de bordão com uma vieira, com peixes na mão ou aos pés e, como fundo, uma ermida e uma ponte.

Imagem única e muito elucidativa de um dos seus prodígios, que mais sensibilizou as gentes da época, encontra-se na fachada do convento de Santo Estêvão, em Salamanca – de bordão na mão direita sustenta, na esquerda, uma ponte – que, queiramos quer não, foi a obra que colocou Amarante, de novo, como localidade de passagem obrigatória. Do litoral para o interior parava-se em Amarante para retemperar forças e pedir protecção a São Gonçalo para enfrentar os perigos e a rudeza do Marão; do interior para o litoral para agradecer a São Gonçalo o ter-se chegado são e salvo e agraciar estômagos e bestas com a boa gastronomia e o bom vinho da terra. Hoje, isto, ainda é verdade.

O povo, na sua ancestral sabedoria e devoção muito própria para além de degustar e guardar como talismã os figos – símbolos da fecundidade – benzidos e dados à rebatinha no fim da missa de festa ainda fabrica um doce, de massa muito rústica, de forma fálica, que chegou até aos nossos dias e que, supomos, ser um resquício de um culto pagão à fecundidade e adossado, pelos nossos de antanho, ao nosso padroeiro como graça dos seus encómios ao casamento e numerosas proles.

Todas estas formas de culto, em meu modesto entender, em nada desmerecem as virtudes do Santo, muito pelo contrário, são valores que o fazem querido das gentes e o continuam a fazer diferente e a levar aos mais recônditos lugares do mundo.

São Gonçalo não é só nosso. A sua veneração há muito que ultrapassou rios e mares e, em muitas localidades, é o orágo predilecto e seu nome próprio.
O Brasil é, sem dúvida, o país onde a sua veneração ultrapassa, por vezes, a razoabilidade pois, para além das demonstrações de carácter religioso abundam as de carácter folgazão e mundano, de uma riqueza e brilho sem comparação. As “Gonçalinas” ficaram registadas na história brasileira e, ainda hoje, são tema de conversa e tertúlia.

Advogado das doenças do corpo e do coração, São Gonçalo, é um Homem Santo e foi um Santo Homem que continua a fazer ouvir a sua voz através de todos quantos o veneram e glorificam e se esforçam em torná-lo mais conhecido. Como ele rezemos cantando, trabalhemos rezando e, quando chegar a hora de abraçarmos a Vida, o façamos rodeados daqueles que nos ajudaram a ser felizes.

“São Gonçalo milagreiro
Pôs a fonte a deitar vinho
Fez do rapaz solteiro
Fiel e bom maridinho.”

EU NÃO SOU CHARLIE (HEBDO)!

J. EMANUEL QUEIRÓS
Em consequência do sangrento atentado perpetrado à mão armada contra o corpo redactorial do pasquim parisiense «Charlie Hebdo» em que foram assassinadas doze pessoas, foi gerada uma onda de solidariedade de proporções internacionais, com a frase «JE SUIS CHARLIE». 

É emocionante ver – e tomar parte ainda será mais – uma acção espontânea que, circunstancialmente, junta pessoas tão diferentes pelo mundo fora quantas aquelas que integram uma tão alargada corrente humana, mas que, logo após de se desvanecer, o seu efeito contagiante desaparecerá e tudo voltará a ser como era no momento anterior ao do atentado. 

A solidariedade com as vítimas é uma iniciativa bonita, emocionante e de bom coração mas é uma acção inconsequente para os visados que foram retirados à vida e colocados fora do tabuleiro terrestre. Sendo absolutamente solidário com a vida e reprovando todas as formas de violência que atentem contra os mais elementares direitos humanos, salvaguardado o homem na sua plena integridade física e psíquica, não tenho para mim que as barbaridades praticadas em Paris por aquele comando selvático seja diferente – melhor ou pior – das que vitimaram Saddam Hussein, Muammar al-Gaddafi, Osama bin Laden, e das que vêm ocorrendo diariamente na Síria, em Gaza, na Índia, nas ruas de Bagdad e de Islamabad, ou da que na tarde de ontem, quinta-feira (08/01), dizimou sete pessoas e feriu cinco em tiroteio ocorrido num cemitério durante cerimónias fúnebres na cidade venezuelana de Turmero. 

Aliás, esse abominável acto selvático, arrastando doze pessoas para a morte, teve o efeito de despertar uma onda de solidariedade com as vítimas, permitindo sublinhar a reprovação do massacre, tenha ele a motivação que tiver, mas tenho-o para mim como mais um sinal de alerta e condenação para a extrema violência que temos andado a semear pelo mundo. 

Não é pela barbaridade do comportamento desses dois sanguinários atiradores que a Humanidade está entrada numa espiral de loucura de que dificilmente sairá dela. É porque concebemos, aceitamos e contribuímos para a institucionalização de muitas violências repugnáveis e mórbidas, entre as quais o empenho no desenvolvimento de sofisticados arsenais bélicos, cada qual o mais eficaz, preparando forças armadas, municiando grupos de agitadores tratados como aliados. Como não queremos acreditar que a violência e o terrorismo nas nossas sociedades, à nossa porta é uma inevitabilidade crescente alimentada pela nossa cultura de violência semeada pelo mundo? 

Não sou contra a violência de uns e favorável à violência de outros, ainda que aos nossos olhos e no nosso insustentável conceito possa parecer que é justa uma justiça vingativa e homicida que defende a pena de morte como uma solução extrema para garantir a segurança e a paz. Nada mais perverso do que a consensualização da perversidade, da prevalência do espírito de vingança e da desumanização da nossa existência.

Incondicionalmente, sou solidário com os que sofrem para os quais devem existir institucionalizadas medidas que tendam à erradicação da marginalização e da pobreza. Defendo o desarmamento, o diálogo e a paz entre os homens como instrumento de elevação e de progresso. Permaneço vigilante de mim mesmo, na sociedade e no mundo que nos impulsionam o despertar das emoções desafiantes que nos embotam o cérebro e nos tendem a arrastar, a todos, para o desconcerto e o precipício. 
Todavia, de uma forma ou de outra, contra o que intelectualmente seria de prever há cem ou há cinquenta anos, presentemente, com um grau de escolarização e de conhecimento mais alargado, irónica e paradoxalmente, o homem, neste limiar do século XXI, compreende melhor e é mais sensível à linguagem da violência do que compreensiva com os códigos do humor, da inteligência e da liberdade de expressão. Por isso, eu não sou Charlie!... 
Viva Charlie!

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

O VÉU ISLÂMICO

Gabriel Vilas Boas 
Quarenta e oito horas após os atentados de Paris, a Europa vai ganhando consciência do pesado simbolismo destes tristes acontecimentos. As mortes dos jornalistas do “Charlie Hebdo” trazem novamente à ribalta um problema por resolver e de que França será sempre o palco: a intolerância civilizacional. Há uns anos Sarkozy lançou o debate com a polémica proibição do véu islâmico, mas a sociedade francesa não apoiou cabalmente o seu presidente e o debate essencial ficou, no essencial, por fazer.

O aparecimento do Estado islâmico, durante 2014, aprofundou a deriva terrorista dos radicais islâmicos, perante o lamentável silêncio dos principais líderes mundiais do Islão, que preferiram (preferem?) esperar para ver. Os americanos reagiram tarde por causa dos seus homens, a Europa lamentou e foi só. Agora a França sangra onde mais lhe dói: a liberdade de imprensa e de expressão.

Se há coisa onde os franceses não transigem é no valor da liberdade. Não há interesse económico que os faça engolir sapos vivos e ainda bem que assim é. A liberdade de imprensa é um pilar fundamental dessa liberdade, não havendo cláusulas de exceção. O “Charlie Hebdo” era a expressão radical dum jornalismo ousado, polémico, provocador e… livre, por isso os franceses nunca hesitaram em defendê-lo. Firmes na sua convicção, os franceses arrastaram o resto da Europa onde a palavra tolerância não é apenas uma ideia bonita.

Fiéis aos seus valores fundamentais, os franceses não reclamam vingança e continuam a acolher aqueles que não aceitam a diferença. No entanto, essa generosidade não foi suficiente. Evocando a defesa da honra de Alá, um bando de radicais islâmicos assassinou o coração da liberdade, mostrando o lado negro duma fação do Islamismo. Podemos afirmar convictamente que o Islão “não é aquilo”, mas a verdade é que também é aquilo.

Aqueles homens mostraram que há uma fação do mundo islâmico que revela um profundo desrespeito pela vida humana. Lamento muito que os mais importantes líderes islâmicos não tenham percebido que nada faz pior à religião do profeta Maomé do que atos como os ocorridos em Paris. Como muito bem notou José Saramago, “Matar em nome de Deus é converter Deus num assassino.”

Os atentados de 7 de janeiro, em Paris são um desafio civilizacional enorme quer ao mundo islâmico quer à cultura europeia de tolerância e liberdade de expressão. 

A tarefa dos Xeiques não é nada fácil: ensinar a tolerância num meio duma cultura intolerante, sob pena de tornar o islamismo uma religião odiada por milhares de pessoas, tal a sua permanente ligação a casos como o de Paris. Os chefes religiosos islâmicos precisam de fazer algo objetivo e claro, porque não fazer nada, não dizer nada é uma resposta errada, perante a urgência do momento.

A França tem de vencer o medo, despir a raiva da alma e afastar os ímpetos de vingança indiscriminada sobre tudo o que usa véu. E tem ainda um trabalho de Hércules para fazer: fazer-se respeitar, fazendo respeitar a sua cultura.

Mais importante do que converter um radical é não deixar que um extremista nos radicalize!