MIGUEL GOMES |
Existe bastante ironia no tempero entornado à vida, uma cidrazice que fica no amargo de boca de cada vez que inalamos os limites da nossa magneticidade existencial.
O dia encarregou-se de ser dia e o homem encarregou-se de ser homem, ao calor típico da inclinação orbital neste périplo em redor do Sol sucede a humanidade, que se pode avistar lá ao fundo, primeiro num fino fio de uma tonalidade cinzenta, rapidamente transformada em espessa cortina negra que ascende em golfadas como se a própria maldade fumasse desenfreadamente nesta tarde de veraneio.
Agora, encarrego-me de, sentado, suster o calor que emana da parede, enquanto estico as pernas pousando-as num banco. Até as próprias inanimadas criações do homem parecem ter vida, respirando ao sabor do dia, suando vida em forma de sensação térmica. E assim, de repente, salta-me à frente a recordação do velho portão de ferro enferrujado da casa onde cresci, das suas vivências enquanto fronteira móvel da privacidade familiar, da fina película de gelo que se formava no inverno e que eu, alegremente, partia com a mão ou das gotas que por lá amanheciam depois de pernoitarem e penumbrarem com a neblina, nevoeiro e orvalho.
Degustado o agri-doce do tempero, sobra-me apenas a ironia, da vida. Talvez nem seja ironia, mas apenas a vida, natureza, destino, carma, chamem-lhe o que quiserem. Falam-me numa criança. Preservo o seu nome. Nascida com uma deficiência visível, e nisso congratulo a natureza pela sinceridade, todos nascemos deficientes e passamos a maior parte da vida a escondê-lo, mas estas crianças nascem com a visibilidade do que são e permanecem durante a sua existência terrestre ostentando, na involuntariedade do seu querer, o que são, sem subterfúgios, sinceras. Tendo-me brindado a existência com dois invernos na vida, abraço agora qualquer nuvem com a mesma candura como se fossem minhas, quando não são, penso.
Há uma criança, uma vida, que se vai desenvolvendo na incógnita do desenvolvimento e no mais profundo sofrimento dos pais, uma sensação que se multiplica pelo número crescente de indiferença na sociedade, alheia a qualquer problema que não seja o incrustado ao redor do seu próprio umbigo. Vejo nos olhos e ao redor do que transpiram a angústia e o medo do futuro, de um amanhã que poderá amanhecer com menos cor ou até na penumbra total. Imagino a desesperante sensação de se querer o melhor e este estar apenas ao alcance de um sonho, de uma reviravolta nas leis da física à qual chamam milagre.
Sendo o futuro o que é, ou seja, aquilo que não sabemos vir a ser, o medo acautela-se de incutir aos pais a dúvida perante a certeza da sua ausência um dia. Faltando pai e mãe quem poderia continuar a acompanhar a criança, adulta amanhã, se a doença se cavalgasse e prolongasse a noite para lá das madrugadas de incerteza que agora vivem? O amor tem soluções que a própria solução desconhece. Os pais decidem, no mais profundo amor acredito, que um irmão, ou irmã, seria o indicado e o mais perto do amor de pais para, desapegadamente ou desinteressadamente, permanecer ao lado da consanguinidade e seguir vida adentro segurando-lhe a mão nas vagas mais altas e, também, nas baixas onde tendencialmente estamos mais desatentos.
A ironia da vida nasce aqui, na estupidez mundana ou divina, de permitir que a segunda criança nasça deficiente, dentro da sua perfeição.
Qual a escala para medir o desabamento das esperanças dos pais?
Para onde são lançados os dados da vida?
Eu que não me lembro de ser deus ou ter qualquer tipo de regência sobre os elementos naturais, limitando-me a ser duas coisas apenas, calado e estúpido, prostro-me e indago sobre a justiça, a lógica, o porquê do desequilíbrio na inocência num mundo (humano) já por si desequilibrado, injusto e cada vez mais carcomido de vilezas e mundanices tão viscosas que fazem de qualquer acto de bondade um evento noticioso de extrema raridade.
Enquanto me perco entre a observação e o exercício de ajuizar, deixando-me ser aquilo que não gosto de ser e ver nos outros, começo a vislumbrar, a emocionar-me com a cumplicidade entre os irmãos, vigiados de perto pelos cuidadosos pais que herdaram tal amálgama de sentimentos, um abraçar, o olhar terno e infantil de quem nos habituamos a ver como “coitadinhos, tenho tanta pena” (juntando um pequeno esgar contorcido de uma dor falsa e passageira e um encolher de ombros), a supremacia de um amor que se vê acima de qualquer veleidade, esvoaçado por entre o pó que os pés descalços na terra levantam, a profunda humanidade no olhar de duas crianças, cada qual a viver a sua própria vulnerabilidade, crescendo e encontrando espaço para aquecer o mundo numa vida que parece cada vez mais fria.
A noite vai terminar, tal como este relato, na verdade terminou há bastante tempo, talvez ainda antes de começar, quando tentei colocar neste conjunto de letras e sinais de pontuação, certamente mal empregues, as minhas costas já quentes pelo contacto com a parede, as estrelas a cintilarem sem qualquer preocupação com as minhas indagações, o deslocar lento e firme desta esfera numa matriz que se faz de todas as palavras que quisermos. A noite termina, os pais à frente, os filhos atrás, o caminhar num abraço desnivelado próprio da diferença de idades, o olhar e o sorriso mais terno que poderei um dia almejar ver novamente. Ali, numa trindade quadrada, o porquê desta vida ser o que é, um percurso com data certa, o nascimento, sem data definida para partida, e em todo o espaço entre estes tempos sobra apenas a veracidade de se tentar descobrir o amor perfeito, quando perfeito é o amor nascido naqueles considerados imperfeitos.
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