CATARINA PINTO |
A noite mal caiu e depois do frenesim da vida do quotidiano e do sol quente, subtilmente escutam-se passos, que se movem entre as sombras. Talvez seja mesmo um sonho ou parte de um pesadelo… mas infelizmente não é… são seres humanos, são pessoas, tal como eu e tu e eu. Uns vão sozinhos com mochilas nas suas costas, outros em grupo, por vezes sem nada. Poucas roupas, velhas e desgastadas mas a esperança essa em enorme quantidade… acreditam que um dia irão ser felizes do outro lado.
… Do outro lado, as marés, os rios, as cercas, os muros, os arames, a polícia, os cães treinados, as armas, nós…. …Do outro lado a esperança desfeita, a dor da solidão, a perseguição do vazio. Nesta história não existe nenhum vencedor e raro o final feliz de uma história de contos de encantar. Há mais ou menos 8 anos, estive numa cidade fronteiriça do Norte da Republica Mexicana e não há ainda palavras certas para escrever o que vi e senti…
Naquele momento eu senti-me a vencedora do euromilhões… pode parecer excêntrico mas é a verdade, e isto só por ter um passaporte europeu na minha bolsa. Nós, aqui, nunca ligamos assim só que nos esquecemos que lá fora, sim lá fora do outro lado, da cerca, há milhares, senão milhões de pessoas que para sobreviver, apenas têm que fazer uma travessia.
E essa travessia já tirou muitas vidas e a nossa vida contínua intacta, sem no fundo sofrer um aranhão. Apesar de nós vivermos a “ nossa crise” e precisarmos de sair do nosso lar, para melhorar a nossa vida. Existem outros que a nossa crise já seria a riqueza… e pensem bem nisto que vos digo…
Sei que as minhas palavras pode m trazer controvérsia… mas a palavra migração é a própria controvérsia… O ser humano ao longo dos milhões de anos da sua existência sempre foi um migrante, os nossos antepassados cruzaram terra e oceanos… houve sempre guerras pelo território. Tanto sangue derramado e será que tudo isso vale a pena? Tantas vidas que se perdem a cada semana por causa da migração…
Não posso negar que a noite nessa cidade fronteiriça modificou-me, trouxe-me medo e insegurança. O ser humano é cruel e indiferente perante avida do outro.
Na manhã seguinte, segui caminho para o posto fronteiriço, a camioneta parou e todos saímos para pedir o visto para entrar nos Estados Unidos da América. Cruzei a ponte da desgraça e da morte. Na minha mente as histórias que já tinha lido sobre os que tentaram e falharam, os que tentaram e conseguiram…Os dois lados de uma moeda… Sem dúvida cruzava o rio bravo que era mesmo bravo em todo o seu sentido…
Não foi fácil explicar ao agente de imigração o porquê de uma portuguesa residente no México ir visita-los. Foram mil perguntas, até sobre coisas familiares que nem lembra a ninguém… Depois de pagar, lá colocou o carimbo do visto e segui o meu caminho.
Regressei passados uns dias mas esta fronteira nunca mais a passei… ainda me fez questionar mais o que é certo ou errado.
Passado uns meses, depois de um dia de trabalho e já pelo estado do México, na minha casa, a minha amiga diz-me que nessa tarde temos que ir a um funeral. Dois jovens conhecidos iam ter com os seus pais que estavam ilegais… E estes jovens tentaram cruzar o mesmo rio que eu passei em cima da ponte. Iam com um grupo maior e eles não sabiam nadar, iam agarrados uns aos outros mas a policia do outro lado detectou-os e começaram a disparar. Dizem que o irmão mais velho tentou agarrar o mais novo e nunca mais os encontraram… até aos seus corpos serem encontrados num areal. Estavam cravejados de balas, tinham 14 e 17 anos e eram filhos de alguém…O regresso aos seus pais foi feito dentro de um caixão metálico…Foi um funeral enorme e carregado de emoção, de palavras fortes. E agora pergunto-me será que vale a pena criarmos o outro lado?
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