terça-feira, 18 de agosto de 2015

PULCHRUM PAUCORUM EST HOMINUM

REGINA SARDOEIRA 
Rodeados de vazio imponderável, estado da hora presente, tentamos de modo selvático arrimar a um porto nosso onde o valor se imponha e não sejamos perseguidos por fantasmas ou vultos de pedra erigidos em paradigma. O tempo, hoje, é de confusão e paradoxo, no contexto do qual a estatura íntima do ser humano se dissolve em vida vegetativa e as plumas e lantejoulas da exterioridade ocupam o lugar do pensamento, da reflexão, do génio. A personalidade criativa e genial sofre muito nos tempos que vivemos; também sofreu outrora – o sofrimento do génio é de todos os tempos – mas, aparentemente, havia núcleos restritos onde o génio era acolhido podendo debelar desse jeito a sua solidão intrínseca. Curiosa esta solidão, apanágio e fulcro da mente genial e contudo em apelo constante ao outro, tendendo sempre em última instância para o acto comunicativo, para a necessidade do derramamento e da compreensão do próprio derramamento! Porém, nos dias que agora vivemos, não existem núcleos de elite capazes de acolherem o génio, outorgando-lhe um sentido para a existência. De elite, é claro, só podem ser de elite os que se tornam capazes de aplanar a estrada do génio, tomando aos seus ombros a carga do quotidiano, com todo o séquito de deveres nos pequenos nadas, fazendo, por eles, o que eles fazem sangrando e sacrificando as horas de criação.

Lembremos Friedrich Nietzsche, esse génio errante e errático, elevado até à cátedra em tenra juventude, e dela fazendo o púlpito do seu génio, mas logo dali apeado por impossibilidade física e mental de continuar exercendo um trabalho linear. Lembremos que lhe foi atribuída, por essa razão, uma pensão vitalícia e dela viveu o professor misterioso, percorrendo os Alpes, descendo até Veneza, deambulando por Sorrento e sempre, nessas casas modestas onde ia ficando, alguém lhe tratava das roupas simples e lhe alimentava o corpo, respeitando, mesmo à margem da compreensão, o fulgor do olhar coruscante e do gesto genial. Pensemos que houve amigos, que a História só mediocremente refere ( mencionemos Peter Gast, nome fraterno dado por Nietzsche ao músico malogrado que ninguém queria ouvir e que se chamava Heinrich Köselitz ) , que escreviam por ele os aforismos e os textos inflamados, quando a cabeça lhe doía, a vista se lhe turvava e a náusea o derrubava. Quem pode imaginar que a poderosa vibração dos textos nietzschianos saiu de um corpo consumido, de uma mente em convulsões? Mas ele tinha, como os gregos pré-socráticos que lhe servem de paradigma, o pessimismo da força e, reconhecendo que era um decadente, afirmou-se, em simultâneo, o contrário de um decadente. Não importa compreender, não é necessário entender cabalmente o génio: mas urge reconhecê-lo, urge ver na cintilação, por vezes assustadora, porque transcendente, a marca da eternidade, o sinal do porvir. É necessário que se inventem os coadjuvantes da genialidade, aqueles que, não sendo geniais, reconhecem a genialidade do outro e lhe apaziguam a solidão, realizando, por ele, os gestos da sobrevivência.

«Onde estão aqueles velhos amigos aos quais antigamente me sentira tão estreitamente ligado? Habitamos mundos diferentes e falamos línguas diferentes! Como um estranho, como um proscrito, vago entre eles sem que me dirijam uma palavra ou um olhar. Calo-me, pois que ninguém compreende as minhas palavras... Ah, bem posso dizer: jamais me compreenderam! É espantoso ver-se condenado ao silêncio quando se tem tanto que dizer… Teria eu sido criado para a solidão, para não encontrar nunca uma pessoa para me fazer ouvir? A incomunicabilidade é, em verdade, a mais espantosa das solidões. Ser diferente é trazer uma máscara de bronze mais dura do que todas as máscaras de bronze. A amizade perfeita só é possível inter pares. Inter pares: palavras embriagadoras! Que confiança, que esperança, que perfume, que beatitude promete a um homem fatal e constantemente só! a um homem que é diferente, que jamais encontrará ninguém semelhante! E, no entanto, este homem é um bom indagador, e procurou muito… Ah, loucura fugaz destas horas em que o solitário acredita encontrar um amigo, e estreita-o entre seus braços: presente dos céus, dom inestimável! Mas não se passou ainda uma hora, quando já o repudia com repugnância e se afasta com asco de si mesmo, como se se sentisse desonrado, diminuído, doente com a sua própria companhia.

Um homem profundo tem necessidade de amigos, a menos que tenha um Deus. E eu não tenho nem Deus, nem amigos. Ah, irmã! esses que você designa com essa palavra, em outro tempo foram meus amigos. Porém, e agora?

Perdoe-me este acesso de paixão; a causa disto foi a minha última viagem.. . A minha saúde não é boa, nem má. Só a pobre alma é que se encontra ferida e ávida.

Dê-me alguns homens que consintam em me ouvir e me compreendam — e me sentirei são e salvo.»

Daniel Halévy, Nietzsche, Inova

(Esta carta foi escrita por Friedrich Nietzsche à sua irmã Elisabeth; ressalvando um ou dois pormenores laterais, nunca essenciais, eu poderia subscrevê-la por inteiro… e arrepia-me senti-lo, pois conheço bem o destino do homem que viveu o abismo da sétima solidão!)

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