É necessário sair da ilha para ver a “ilha”. Não nos vemos se não saímos de nós.
José Saramago, O Conto da Ilha Desconhecida
Anabela Borges DR |
É inverno. E é quase Natal.
E a minha terra acorda assim, mergulhada nas brumas, vapores vagarosos que se soltam das montanhas em redor, fumos frios que sobem, lentos, do rio – mistério quase parado, a querer saber das origens do tempo, enquanto pequenos bandos de pássaros tardios batem em debandada dos telhados à espera de quase nada.
Soltam-se os fumos das chaminés e tudo começa a ganhar a azáfama própria desta época do ano. Para os mais jovens, são as férias de Natal. E enquanto a geada cai, silenciosa e fria, a pôr as ervas duras como palitos e as águas dos tanques lisas e paradas no tempo como espelhos finos e frágeis, os vidros embaciados transpiram o calor das casas. O tempo traz-lhes uma ansiedade genuína, espreitam lá para fora, limpando os vidros com as palmas das mãos, como quem diz adeus a mais um dia, fazendo com que pequenas gotas deslizem, rápidas, como lágrimas de desejo. E cada dia vai enchendo mais e mais os olhos das crianças de um brilho inquieto, a espreitar para o céu, à procura de um sinal, como metidos numa redoma quentinha, ou numa daquelas bolas com um cenário lá dentro, onde o tempo está suspenso num momento específico com bolhas a flutuar.
Natal, Natal, Natal.
Por momentos, muitos de nós ainda temos o privilégio de adormecer nos “sonhos de Natal”, ainda temos o calor da casa, o pinheirinho, a toalha de motivos natalícios recheada de bons comeres e beberes, uns com mais esforço, outros com menos, outros assim-assim. Ainda temos a família, o abraço, as faces coradas pela alegria momentânea.
Quando a noite já estiver tão inclinada que cobrirá por completo o chão, estaremos adormecidos nesses sonhos, entontecidos em falsas esperanças, felizes…
O tempo entretece os seus sarilhos, e anda para a frente e para trás e, às vezes, para os lados, assim como um pêndulo, a empatar o espaço. E quando nos dermos conta, estaremos mergulhados num novo ano: a correr, em sobressaltos, em angústias diárias, em pequenas alegrias, surpresas, e mais ou menos a mesma fímbria de esperança que até aí nos tem conduzido.
Se nos predispusermos, por um tempinho que seja, a pensar seriamente na vida, saiamos um pouco para fora de nós, que, como diz Saramago, a única forma de vermos a ilha é saindo da ilha.
FELIZ NATAL e BOM ANO!
Perdem-se na memoria dos tempos os tempos de partilha em comunhão com as pessoas e a natureza e os seus estágios. Este texto evoca em mim essas vivências e a capacidade de observar e sentir os detalhes que a vida "de emergência" que deixamos que nos imponham cada vez torna mais raros.
ResponderEliminarQue bom seria poder voltar serenamente à tranquilidade do são convivio e da ausência de pressa, outra que não fosse a do passar inexorável do nosso tempo. Viver claramente e saber fazê-lo sem pensar nisso como escreveu Pessoa.
Mas a magia destes dias esgota-se num ápice porque nós assim o permitimos e, centrados em objetivos nos empregos e nas coisas, que só por empréstimo da vida nos pertencem temporariamente, voltamos ao mundo do TER.
É tão urgente sairmos de nós para olharmos para nós e, qual observador desapegado, sentirmos talvez o peso transformador da vergonha que nos fará mudar.
Temos, no amanhecer de cada dia uma oportunidade para iniciar a transformação rumo ao mundo do SER. Saibamos aproveitá-la em 2014.
António Dionisio
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