segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

SEGUNDA CARTA A UM SUPOSTO MESTRE DA PALAVRA POÉTICA

[Entre o Barreiro e o Terreiro do Paço, em Abril de 2009, numa viagem de barco, escrevi esta reflexão, no intuito de a enviar ao meu imaginário mestre, depois de ter lido, já nem sei de quem, um texto mais ou menos como este]

«Definir é circunscrever, é isolar, é limitar, e a área de uma palavra é extremamente vasta; como tal, incorrecto seria enclausurá-la nos muros cerrados de uma definição.» (sic)

ALVARO GIESTA
Meu caro Mestre,

Hoje vou falar-lhe, daquilo que eu entendo, dos dois fenómenos poéticos abaixo designados:

O primeiro - DA RELAÇÃO ENTRE OBJECTO E A PALAVRA COM QUE O POETA O NOMEIA -, mais me não resta do que dizer-lhe que defendo o jogo da palavra no uso duma poética do plurívoco. Isto é, sobre várias vertentes, podendo ter, mesmo, vários sentidos na sua interpretação. Contudo, que haja inteligibilidade na construção frásica e não seja carregada de nebulosidade, essa escrita.

Ou seja: o FAZER POÉTICO, nesta lógica do plurívoco, requer uma nova significação para a "coisa" que o poeta nomeia. Isto é, entre "objecto" e a "palavra" com que o poeta o nomeia, há uma nova relação que permite ao destinatário descobrir e revelar - na interpretação o objecto desliga-se da sua função de objecto e nomeia-se aos olhos do interlocutor pela leitura que a sua memória afectiva lhe permite, adquirindo novos sentidos: é a POÉTICA DO PLURÍVOCO - aquilo que foge ao unívoco e do unívoco.

Na poética do plurívoco, a palavra pode ter significado diferente daquele com que nomeia a coisa: é a ambiguidade de sentidos pela construção de um mundo poético amplo de imagens e metáforas, de assonâncias e dissonâncias encadeadas que, dando ao poema um tom de presságio e novo augúrio, permitem a estes dois polos da mesma realidade, AUTOR-LEITOR, fazer a interpretação e a exploração de visões significativas diferentes. E é salutar que assim seja.

É esta peculiaridade que transporta em si um carácter de novidade, que imprime ao texto o seu sentido e valor verdadeiramente literário. Nesta poética do plurívoco, utilizando uma linguagem que não é a da conversação, sequer a do discurso, oferecendo uma certa resistência de sentido ao texto, permite ao leitor que seja ele a decifrá-lo, que seja ele a recriar atribuindo outro sentido novo à palavra. A linguagem do plurívoco, no texto, permite ao leitor que seja ele a redescobri-lo, com a leitura que faz do mesmo, como nos diz a escritora Manuela Fonseca: «O bom leitor reinventa, recria o texto ou tenta fazê-lo, num intertexto infinito.»

Veja-se, da leitura deste poema de Herberto Helder (ELEGIA MÚLTIPLA (III) de A COLHER NA BOCA) quantas possibilidades não tem de redescobrir novas leituras, recriar interpretações? Muitas...

«Havia um homem que corria pelo orvalho dentro. / O orvalho da muita manhã. / Corria de noite, como no meio da alegria, / pelo orvalho parado da noite. / Luzia no orvalho. Levava uma flecha / pelo orvalho dentro, como se estivesse a ser caçado / loucamente / por um caçador de que nada se sabia. / E era pelo orvalho dentro. / Brilhava.»

Quanto ao segundo fenómeno poético - A APREENSÃO DE UM OBJECTO POR UMA RELAÇÃO DE INTERSUBJECTIVIDADE -, temos que partir do fenómeno fenomenológico para o compreender. Segundo Husserl, explorador da filosofia fenomenológica, «toda a consciência é consciência de alguma coisa». Ou seja, a todo o objeto (NOEMA) corresponde uma determinada modalidade de consciência (NOESIS).

Para os fenomenologistas, TODA A PALAVRA É SEMPRE AMBÍGUA: ela diz e não diz, sabe e não sabe, é e não é. Fica-se, a palavra, pelo momento da realidade, porque não é suficiente para a compreensão do fenómeno literário na sua totalidade.

Ora, o FAZER POÉTICO exige uma compreensão mais profunda, mais lata da palavra, da realidade, segundo um processo que una SENTIDO e FORMA. É necessária uma leitura hermenêutica, isto é, é necessário interpretar o sentido da coisa escrita em todas as suas formas, com uma abertura tal que permita abarcar totalmente as significações da obra literária. O homem, em constante comunicação, interroga-se e interroga a própria existência da palavra, e entende que dela deve ser feita uma abordagem sob uma perspectiva ontológica, interrogando-se sobre o ser em literatura.

O fenómeno poético não ajuíza, pois se situa aquém do conceito. Por isso mesmo transcende-o. Isto é, o fenómeno poético não afirma um conceito, nem o nega. Tanto a afirmação como a negação têm igual abertura para permitir múltiplas explorações do texto. É isto, no meu entender, que permite ao crítico exercer a sua função.

Atentamente, o seu pseudónimo
Alvaro Giesta

4 comentários:

  1. Respostas
    1. Mestre? eu? aprendiz meu caro amigo. Aprendiz. Sempre aprendiz... aprendiz de poeta. Cumpro, por enquanto, a minha condição de aprendiz nesta vontade entranhada em mim de ir contra o mestre.
      Talvez o mestre seja esse outro que existe em mim e que me é ainda desconhecido. No entanto vou escrevendo-lhe enquanto o jorro produtivo se vai manifestando na esperança de o (me) conhecer.
      Quando esta força de produzir cessar em mim dando-a por acabada, aí sim, talvez o mestre se manifeste. Até lá vou explorando a palavra e com a sua força descobrindo-me no silêncio da voz que cria erguendo a obra literária neste meu tempo de ser aprendiz.
      Obrigado pela tua paciência em me leres e forte abraço Zé Carlos.

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  2. Obrigado, Mestre, por este magnífico texto. Um forte abraço.

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    1. Meu caro Jorge Nuno. A resposta, quanto ao mestre, que deixe no Moutinho, é a mesma que para ti. Forte abraço e obrigado.

      Mestre? eu? aprendiz meu caro amigo. Aprendiz. Sempre aprendiz... aprendiz de poeta. Cumpro, por enquanto, a minha condição de aprendiz nesta vontade entranhada em mim de ir contra o mestre.
      Talvez o mestre seja esse outro que existe em mim e que me é ainda desconhecido. No entanto vou escrevendo-lhe enquanto o jorro produtivo se vai manifestando na esperança de o (me) conhecer.
      Quando esta força de produzir cessar em mim dando-a por acabada, aí sim, talvez o mestre se manifeste. Até lá vou explorando a palavra e com a sua força descobrindo-me no silêncio da voz que cria erguendo a obra literária neste meu tempo de ser aprendiz.

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