«Nos últimos séculos, perdemos a sabedoria dos limites. A Ciência e o Estado moderno convenceram-nos de que não temos de aceitar incapacidades ou fracassos. A Ciência encontraria as soluções, e o Estado aplicá-las-ia para benefício de todos. Exigimos estar garantidos contra tudo, porque cremos que é possível estar garantido contra tudo.» - Rui Ramos (Diário Económico / 20050914)
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ALVARO GIESTA |
Assustou-me o tema proposto a mim mesmo, quando me decidi escrever sobre ele. E assustou-me por várias razões se bem que, a mais assustadora e que sempre me contrariou é aquela em que, por limite, habitualmente se associa, logo, ao campo da matemática, nomeadamente ao comportamento de uma função à medida que o seu argumento se vai aproximando de determinado valor.
E confesso que sou mais afeito aos versos e às coisas das letras do que propriamente às teses da matemática. Confesso que sou mesmo avesso àquilo que fui obrigado a estudar no liceu até à possibilidade que tive de enveredar por uma alínea de letras. Nunca me dei bem com funções de duas ou mais variáveis, com progressões, com teoremas, com axiomas, com cálculo diferencial e trigonométrico, menos com limites e derivadas.
Preferi sempre, mesmo para além dos limites impostos pelas planificações sujeitas à calendarização das matérias relativas ao ano que frequentava, aquilo que ia para além desses limites. Era nisso um explorador nato para fora dos limites que, com limites, me impunham. Tinha sempre, mesmo à revelia dos mestres, a mania de pesquisar conhecimentos para além dos limites impostos, desde que o assunto dissesse respeito a tudo quanto fosse literatura.
Recordo-me que, tendo sido aluno em meados dos anos sessenta, em Angola, dum sábio mestre, hoje conceituado reitor da Universidade Fernando Pessoa, o professor doutor Salvato Trigo, onde poucas possibilidades havia em termos de acesso a livros eruditos, para além dos escolares, eu recorria às suas indicações e conhecimentos e os encomendava, a pagar contra-reembolso postal, a uma certa e muito famosa livraria, hoje extinta, sedeada em Lisboa ali para os lados da Rua Poço dos Negros. Outras vezes recorria aos seus conselhos e os mandava ir, sob o mesmo processo de pagamento, duma outro lá longe no Brasil. As poucas moedas que juntava, muitas vezes surripiadas aos meus velhotes sem disso se aperceberem ou disso não se quererem aperceber, pois já sabiam o destino que as pratas tinham, serviam para isso mesmo: encomendar, livros idos da metrópole, à Progresso Editora da Rua do Poço dos Negros, à Sá da Costa do Largo do Poço Novo e a outra de S. Paulo, de que esqueci o nome, sob conselho do dito mestre; livros que por lá ficaram a apodrecer depois duma fuga precipitada a que levaram as políticas de Abril. Eram esses os meus limites de coscuvilheiro...
Isto para dizer que o limite e o seu significado é amplo, porventura sem limite, o que me leva até mesmo a pensar que não há limite para o limite, como o não há para o fim da linha do horizonte quando julgamos que ele termina ali onde a nossa vista alcança, quando, afinal, o limite do horizonte é mesmo indefinido.
Já Bernardo Soares, quando em todas as horas do dia e da noite cultivava o limite e a ausência dele, naquele seu estado de estar «entre a vigília e o sono», o longínquo e a vida marítima, a sensação primeira que lhe nasce é uma sensação de «Indefinido» pela ausência de limite para o longínquo e para a vida marítima por esses mares além, que sabia sem limite, e que Fernando Pessoa, na «Mensagem», explora levado pela vontade, sem limite, de descobrir o mar que é português.
Pensemos no desafio das abstractas sensações de Alvaro de Campos e de Fernando Pessoa ortónimo, pegando nelas como tema poético «desfiando-as» e desafiando-as até às suas últimas possibilidades para além da névoa e do «Indefinido» que nos dá Alvaro de Campos na sua Ode Marítima «Olho prò lado da barra, olho prò Indefinido» e interroguemos: o que é isso senão, a ausência da distância, o limite inalcançável, o limite-ilimitado?
Em «Os Meus Domínios», Edgar Morin dizia que «o que limita o nosso conhecimento permite o nosso conhecimento e o que permite o nosso conhecimento limita o nosso conhecimento», o que lhe permite afirmar que «o conhecimento é sempre tradução e construção». Numa palavra, e para terminar esta curta crónica que os "limites" que (me) são dados impõem, se deduz que não há limite para o conhecimento. Nada se sabe em concreto, em definitivo, mesmo dentro dum limite, pois todo o conhecimento está em constante construção para além das fronteiras das capacidades do homem.
As exigências do presente actual com vista a desvendar e aprofundar o presente mais avançado, a que chamam futuro, o tal que não existe como nos lembra Agostinho da Silva, não param de crescer levando Edgar Morin a ultrapassar aquilo que ele julgava ser limite ao seu conhecimento.
Miserável seria o homem que se contentasse em satisfazer-se com as (suas) limitações. Deixava de ser o ser-pensante e comportar-se-ia como o bicho irracional que rasteja em busca da própria cauda.
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