quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

OS DIAS DA DOENTINHA

O Dia Internacional das Pessoas com Deficiência comemora-se anualmente a 3 de Dezembro.
Em 2015, o tema é "A inclusão importa: acesso e capacitação para pessoas de todas as habilidades".

ANABELA BORGES
Lá abaixo, ao fundo do caminho, quase a chegar à antiga linha de caminho-de-ferro, era a casa da Doentinha. 

Essa era a minha casa também. Vou refazer esta frase: é a minha casa também. Uma casa que habitámos uma vez nossa, nunca deixa de ser nossa, porque há um fio de memórias que nos prende a ela, bem ou mal, a essa casa que, alguma vez, nos guardou.

A Doentinha morava nessa casa, lá no fundo do vale. Antigamente, a descida era de terra e pedras toscas, fazendo o caminho difícil, sobretudo no Inverno, quando caía geada.

A Doentinha era uma pessoa muito feliz, porque as pessoas que a rodeavam procuravam, à sua maneira fazê-la feliz. E ela, notava-se, foi feliz, sobretudo na infância e juventude.

As pessoas da vizinhança, de uma maneira geral, respeitavam a Doentinha, uns por terem medo de Deus, outros porque viam nela um ser puro, inocente, uma espécie de “santa”. Os primeiros achavam que havia ali uma maldição de Deus (por isso, havia que temer); os segundos achavam que ela tinha sido abençoada por Deus (por isso, havia que louvar). Pois, se era diferente dos demais, ali tinha de haver alguma coisa, mas era mão de Deus certamente. 

Assim, poder-se-iam separar dois grupos de gente em relação à doentinha: os que evitavam passar perto dela, com receio que tivesse alguma reacção, algum repente de corpo ou voz que os tolhesse; e os que se acercavam da casa, como numa romagem, para a olharem nos olhos e lhe falarem, na esperança de verem concedida uma bênção, uma graça divina. Em dia de muita sorte, poderia haver quem conseguisse da Doentinha um toque de mãos. E as pessoas diziam, “Minha menina, meu anjinho”, maravilhadas com aquele bem divino.

Tudo isso seria mais ou menos intenso, dependendo do estado de espírito da Doentinha, “dos nervos”, como diziam as pessoas, já que podiam encontrá-la num dia em que estivesse uma candura, atenciosa; ou, pelo contrário, muito zangada, com os humores alterados. E era fugir quando a “menina”, estivesse assim, pois corria com qualquer um aos gritos e à sapatada, que, diziam as pessoas – por respeito – era “dos nervos”, da doença.

Então ninguém levava a mal a Doentinha estar assim alterada, porque aquilo eram momentos maus, e era Deus. Era então que os que a temiam fugiam de lá passar, e os que a adoravam voltavam, pacientemente, noutra altura. Sempre voltavam.

A Doentinha, disseram os médicos aos seus pais, teria uma vida muito curta, porque a cabecinha dela ia ficar velha rapidamente – contas feitas, calculavam os médicos, viveria até à puberdade e daí não passaria. A Doentinha ultrapassou o meio século.

Os professores não a quiseram, porque era muito irrequieta e perturbava o silêncio sepulcral da sala de aula dos anos 60 do século passado. Na catequese ainda andou e decorava todas as orações com primor, mas ninguém a segurava sentada e quieta. 

A Doentinha era muito boa a decorar coisas, orações, cantigas e lenga-lengas.

A sua escola era a aprendizagem da vida diária: os momentos passados com os pais e os irmãos, com a vizinhança, a ajudar na lida da casa e a fazer pequenos recados.

Era uma figura bela de se ver, trazia a cabecita sempre inclinada sobre o ombro esquerdo, menina imaculada como um botão de rosa. À sua maneira, a Doentinha era feliz. E inocente.
    
Já no séc. XVI, Gil Vicente retratou personagens com deficiência, como é o caso de Joane, o Parvo, (“Auto da Barca do Inferno”), chamando a atenção para o facto de haver ali uma inocência latente, uma ausência de maldade – “per malicia não erraste / tua simpreza te abaste”. Querendo, com isso, mostrar que os doentes, “pobres de espírito” como eram, muitas vezes, designados, mereciam uma dose, digamos, de tolerância, e mereciam, isso fica claro na obra, a misericórdia de Deus (sendo o destino final do Parvo embarcar na Barca da Glória). 

Só que não se trata de uma questão de tolerância, mas, sim, de direitos. E, na minha humilde opinião, digo aquilo que me habituei a usar na vida, quase como um lema: só somos verdadeiramente correctos e justos se nos soubermos colocar na pele do outro. 

Actualmente, o mundo ocidental está mais evoluído, mas ainda existe um longo caminho a percorrer no que toca ao acesso e capacitação para pessoas de todas as habilidades.

Hoje, a Doentinha já não está entre nós. Mas no lugar onde ela jaz há sempre rosas brancas e velas acesas

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