sexta-feira, 7 de março de 2014

CUIDA DE MIM QUE EU NÃO CUIDAREI DE TI

O que custa mais na velhice? Objetivamente, é a doença ou a falta de saúde, como eufemisticamente
GABRIEL VILAS BOAS
DR
gostamos de dizer. Subjetivamente, é a tristeza. 

Dirão muitos que a segunda deriva da primeira. É só uma parte da verdade. A mais funda das tristezas que um velho pode enfrentar é perceber que ninguém quer tratar de si, que é um empecilho. Quando a tristeza lhe invade a alma já não lhe interessa nada que a doença o vença. E isso é uma tragédia. E toda a gente sabe que não há redenção nas tragédias. 

Li, há poucos dias, que as unidades de cuidados intensivos cobrem apenas cinquenta por cento das necessidades dos utentes. Infelizmente o número é bem maior se falarmos de afeto, carinho, atenção.  

Os últimos anos marcaram uma viragem enorme na relação das sociedades com os seus velhos. As pessoas duram mais, os afetos duram menos. Ficamos sozinhos muito tempo. Quando a doença nos apanha, reparamos que ninguém nos ampara e desabamos emocionalmente.

Os velhos são atirados para a arrecadação da vida à espera que as circunstâncias, a oportunidade e a coragem os atirem definitivamente borda fora da aventura da vida que termina de maneira angustiante. E eles assistem a isto tudo lúcidos. Conseguem imaginar o que sentem? Eu não consigo, porque a dor, a maldade, a ingratidão, a tristeza têm uma profundidade tal que nunca quis explorar. 
Mas não adianta nada fechar os olhos ou olhar para lado. Eles estão aí. Precisam de cuidados continuados. Daqueles que dão em lares, casas de saúde, Misericórdias… e daqueles que se dão com a presença, com o olhar, com as mãos e com os lábios. 

Embora não saibamos, nós (adultos, jovens, crianças) também precisámos de lhos dar. Não pela razão egoísta e interesseira de precavermos o nosso futuro. Necessitamos de os sentar na nossa sala e ouvirmos a sua voz lenta e arrastada para não perdemos a humanidade. 

A conversa do “não tenho tempo” ou “não tenho casa para isso” é em muitos casos uma treta conveniente, destinada a calar a consciência. 
Obviamente sei que a maioria de nós não tem as condições físicas e médicas para ter uma pessoa acamada em sua casa. Não nego que as exigências da vida moderna consomem quase todo o nosso tempo. Mas sei que é possível (até por experiência próxima) proporcionar aos velhos que estão num lar, num hospital, numa instituição, algumas horas de convívio semanal com família. Para eles faz toda a diferença. Eles esperam por essas horas com a ansiedade dum jovem que aguarda a namorada à porta do cinema. Precisamos de fazer tão pouco para os fazer felizes!

É verdade que muitas vezes nos parecem aborrecidos, que o seu entendimento já não é famoso, que são obstinados nas suas teimosias, que estão desfasados da realidade… Todavia, convém não esquecer que foram eles que escreveram os primeiros capítulos da nossa história, convém lembrar que foram eles que financiaram o argumento. O nosso filme só terá um fim feliz se tiver memória. Dizia Aristóteles que ela (a memória) é a escriba das almas. 

Eu acho que uma memória que perde o afeto já não é memória, é um computador.   

4 comentários:

  1. É triste mesmo. No domingo passado passou um filme na RTP1 - Amor, que retratou bem esta triste realidade, e o marido (também idoso), cuidou sempre da mulher. Por isso digo que não me interessa de chegar a "velha", por isto mesmo, tenho medo desta situação.

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  2. É também importante, as condições que proporcionam à família para os ter em casa, com o mínimo de dignidade. Felizmente, ainda existem pessoas que sentem, amam, tratam os seus idosos, deixando de viver a sua própria vida. A memória permanece intacta e os sentimentos não desaparecem, pelo contrário, tornam-se mais intensos. O filme pode terminar mas teremos sempre as repetições(memórias?

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  3. EXCELENTE TEXTO SOBRE AFETOS GABRIEL!!! É TRISTE, MAS É A REALIDADE. CONCORDO... QUE UMA MEMÓRIA QUE PERDE O AFETO, JÁ NÃO É MEMÓRIA, MAS SIM UM COMPUTADOR!!! PARABÉNS.

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  4. Brilhante, esta reflexão!

    Ana Alves

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