«Portugal não cria cidadãos, cria súbditos»: Boaventura de Sousa Santos, em 07/07/2014.
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ANABELA BORGES DR |
O sociólogo Boaventura de Sousa Santos bateu-nos com esta afirmação, para cúmulo do espanto incontido dos dias que vimos vivendo, atirou-nos com esta verdade pegajosa que queremos descolar do corpo. Não é novidade. É mais uma afirmação recente sobre o estado das coisas em Portugal. O sociólogo acrescentou que seria necessário reformar o Estado e encontrar "novas democracias", de forma a sair de "uma cultura de submissão", que se insere num "contexto europeu de que não há alternativa". Afirmou que, em Portugal, "quer-se gente que se submete, mas que não se revolte", salientando que os direitos sociais conquistados com o 25 de Abril "não entraram no imaginário dos portugueses como algo que lhes pertence, mas como dádivas". E disse ainda: vive-se uma "espera sem esperança", onde não há expectativa de uma vida melhor e em que "tudo é feito" para que o povo "se resigne", num país em "estado de dormência". (fonte: Agência Lusa).
Eu tenho voltado a este assunto vezes e vezes sem conta, e penso que não me cansarei. Poderei sempre fazê-lo até que os dedos me doam. À desesperança que nos consome a chama dos dias, eu acrescentaria uma palavra talvez mais forte, talvez de mais mando (será?), ou que é, pelo menos, muito difícil de reconquistar: a CONFIANÇA. Parece-me que neste momento muitos perderam a esperança e a confiança, as pessoas deixaram de acreditar em muitas coisas. A confiança traz agarrada ao lombo a firmeza, a afoiteza de espírito, a segurança e capacidade de resolução. A falta dela, é tudo ao contrário.
As pessoas não andam assim serenas (e ainda bem), mas perderam-se no rumo dos propósitos que lhes haviam de guiar os destinos, atravessam veredas difíceis e labirintos que parecem impossíveis de sondar. Acresce dizer que as pessoas andam sem paciência umas para as outras e atacam-se a cada instante, fervilham por tudo e por nada, descarregando verbos pesados umas em cima das outras. Isso é tanto mais notório quanto mais subimos a escadaria para a esfera das pessoas mais conhecidas, mais influentes, com poder e com voz, ou só com voz, com alguma (ou muita) capacidade de afirmação.
As pessoas não gostam de ouvir verdades que lhes rocem a nuca como um bafo morno. Gostam de nostalgias e floreados, de paninhos quentes e toalhitas Dodot. Gostam de futebol e da vida pública relatada nos jornais e em revistas cor-de-rosa – ledos enganos da alma!. As pessoas não gostam, sobretudo, de ouvir dizer coisas que se assemelhem aos seus medos, às suas incertezas, às suas hesitações. Tenho observado cada vez mais situações de pessoas que atacam em todas as frentes, quando, de suspeitas infundadas, julgam que alguém poderá estar a dizer mal delas, ou a contrariá-las, ou simplesmente a emitir uma opinião. Dizem logo que não se pode generalizar, sem se darem conta que são elas que estão a fazer generalizações. Porque quando alguém ousa dar a sua opinião, ou narra determinada situação que vivenciou, essa situação está, naturalmente, circunscrita a um tempo e a um espaço e diz respeito a essa e a outras determinadas pessoas. Quando alguém ousa partilhar essas verdades com os outros (que não deixam de ser verdades, se foram observadas, sentidas, vivenciadas), esse alguém não deixa de se apresentar num acto de coragem. Mas isso ninguém é capaz de ver. É coragem dizer “eu vivi esta ou aquela situação, eu penso isto ou aquilo”. Na ânsia de se tocarem, de se colocarem à defesa, as pessoas são capazes de verem nisso uma generalização e não a particularização que está lá. Esse é um dos frutos do desânimo e das incertezas que povoam os nossos dias.
Por várias vezes, Camões evidenciou que os portugueses não davam valor à cultura, não ouviam as vozes dos seus poetas. Ora, não se pode amar o que não se conhece, é certo, e a falta de interesse pela cultura nacional é claramente visível (lembrando o “vi claramente visto”, de Camões). Essa falta é responsável pela indiferença manifestada pela divulgação dos feitos daqueles que, incansavelmente, põem a alma no seu país, na sua língua materna. E muitos esquecem-se que, se não tiverem quem os cante, cairão no esquecimento. Camões, apesar de tudo, movido pelo amor à Pátria, reitera o seu propósito de continuar a engrandecer, com os seus versos, as "grandes obras" realizadas: “Sem vergonha o não digo: que a razão / De algum não ser por versos excelente / É não se ver prezado o verso e rima, / Porque quem não sabe arte, não na estima”.*
Na minha opinião, Sophia merece estar no Panteão, como símbolo da nação. Ponto. Merece. Merece as guardas de honra e as honras de Estado. Não foram as palavras que ela teria gostado de ouvir, não foi cerimónia que sonhasse? Certamente que não. Houve aproveitamento político? Houve. Há sempre! Mas isso são paus para outras colheres, farinhas de outros sacos. Também não gostei que o Presidente da República não se tivesse pronunciado publicamente sobre o prémio atribuído ao fadista Carlos do Carmo, como não gostei nada que, em 2010, não tenha estado presente no funeral de José Saramago. Não gostei mesmo nada disso. E, sim, gostei, (emocionei-me tanto) que o corpo do escritor tivesse sido “resgatado” pela Força Aérea Portuguesa, desde Lanzarote para Lisboa. Goste-se ou não das pessoas, não pode negar-se o facto de serem vultos inalienáveis da cultura portuguesa.
Nos últimos dias, observei diversas e legítimas opiniões sobre estes assuntos, mas vi muito quem se metesse a dizer que Sophia não queria isto, queria antes aquilo; que o Carlos do Carmo não era o primeiro a vencer o Grammy, que o Presidente da República não tem de estar aqui ou ali. Respeitando as diferentes opiniões, tratou-se daquilo que, ao início, referi: as pessoas fizeram-no com agressividade verbal, digladiaram-se com quem apenas manifestava a sua opinião – como cavalo de batalha…
Eu acredito que este Portugal, cerceado de mar e serras, não esquecerá a força do sonhar, a vontade, o querer, a ousadia, o “POSSESSIO MARIS” de outrora; a bravura de se apresentar face à imponência da montanha, “Amo-te, ó Serra, em tudo o que tu és! / Amo-te, desde a rocha que em ti sofre / Ao tojo bravo e à urze tão mesquinha / De que sempre te vestes, porque, enfim, / Tu és grande, e, portanto, pobrezinha!”.**
As lusíadas vontades continuarão a sua saga de aves migratórias. O país acabará por renascer (como n’ “O Desejado”): “onde quer que, entre sombras e dizeres, / jazas, remoto, sente-te sonhado, / e ergue-te do fundo de não-seres / para teu novo fado!”. ***
As pessoas não gostam de ouvir verdades que lhes rocem a nuca, mesmo que o assunto não tenha directamente a ver com elas, se lhes roçam a pele num bafo quente ficam agressivas, em desespero.
É assim que nos querem: cidadãos serenos, adormecidos e a acenar em assentimento.
Mas lá no âmago (in)contido da consciência do Ser Português, a que podemos chamar alma, permanece um eterno desassossego. Eu acredito que sim.
Vive em nós um desejo latente de renovação nacional. A espera inconsequente acentua e justifica o nosso atraso. O acreditar, ainda, num D. Sebastião, o “Encoberto”, é a revitalização nacional sob o estandarte de um sonho comum, vencer as limitações e a rotina, regressar ao Quinto Império de cada um de nós. É daí que se espera um Portugal novo.
“(Que ânsia distante perto chora?) / Tudo é incerto e derradeiro. / Tudo é disperso, nada é inteiro. / Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
É a hora!”***
*Luiz Vaz de Camões, OS LUSÍADAS (EST. 97, CANTO V), 1572.
** Teixeira de Pascoaes, MARÂNUS, poema “Chegada de Marânus à Montanha”, 1920.
***Fernando Pessoa, MENSAGEM, poema “O Desejado”; poema “Nevoeiro”, 1934.