terça-feira, 29 de julho de 2014

INSTINTO

Decerto o homem – com ou sem maiúscula – não é nada, e isto a que chamamos, ufanamente, consciência
REGINA SARDOEIRA
DR
não passa de fantasmagoria, de uma sucessão de imagens que a mente recria, numa ilusão de impossível conceptualização, mas para a qual encontramos sempre palavras. Imagens e palavras, eis o que temos. E orgulhamo-nos disso. E chamamos-lhe conhecimento.

Declaro-me céptica quanto ao poder do bípede arrogante chamado homem.

Poder! Que poder? Temos tanto poder como uma formiga ou um elefante! Qualquer gota de água nos faz transbordar, qualquer vendaval, estremecer. Não quero ter qualquer relação com esse tipo de poder, não ambiciono qualquer estatuto de exceção face aos outros seres da natureza.

A consciência? Mas qual é a vantagem de termos, enquanto homens, consciência? Acaso não chegaria o instinto? Esse, que governa leões e formigas dando-lhes tudo o que necessitam – ainda que não saibam que necessitam! E que bom seria não saber!

A necessidade apunhala quotidianamente a nossa ânsia de tranquilidade. A ambição projeta-nos constantemente para lutas mais ferozes que as daqueles a que chamamos selvagens!

A maioria dos homens vive na irracionalidade tanto mais perversa quanto é confundida com razão. Tanto mais obscura quanto é designada de consciente. Que sabemos nós? E como podemos dizer que sabemos?

A necessidade obrigou-nos, desde sempre, a agir, levou-nos, pelos caminhos da selva, até ao asfalto da civilização. Acabámos esquecendo a selva, onde o instinto nos tinha sussurrado a primeira questão e, julgando responder-lhe, destruímos esse primeiro habitáculo. E a pergunta original, nunca respondida, confundiu-se, perverteu-se, produziu falsas respostas, engendrou questões marginais e deu-lhes soluções, a tal ponto que o que sabemos hoje é muito, o que sabemos hoje é avassalador mas, a todos os títulos, perfeitamente inútil.

É claro que poucos me conseguiriam dar razão. Eu própria não dou razão a mim mesma, porque não posso: como todos, vivo, vigilante, nesta selva pervertida e vou aprendendo alguma da sobrevivência hábil de todos. Alguma! Apenas alguma! E dou a esse saber-fazer uma importância mínima e, constantemente, transformo em ruído e isolo de mim o saber-fazer a que os outros me obrigam. Em tudo o resto deixo que o instinto pontifique.

Não me lembro de ter aprendido a escrever, ou a falar ou a andar e, por isso, creio firmemente que qualquer uma dessas habilidades é apenas instinto – e este "apenas" não pretende ser redutor, ainda que o pareça. Não penso quando escrevo, não penso quando falo, não penso quando ando…e é tudo o que posso dizer. Ensinaram-me a fazer isto e aquilo? Dizem que sim, é claro, todos nós dizemos que nos ensinaram e achamos que ensinamos outros. Só que, de facto, ensinar seja o que for a quem quer que seja não é possível. O que sobra, então, desta saga prodigiosa em que uns dizem que ensinam e os outros dizem que aprendem? Apenas e sempre o instinto, esse, que lidera os mais importantes dos nossos gestos, esse, que nos leva para a frente, apesar da consciência, apesar da razão. 

*Nota: Tudo o que afirmo neste texto pode estar errado…o tema em foco é aberto a uma infindável discussão!

sexta-feira, 25 de julho de 2014

FORMAÇÃO PROFISSIONAL PRECISA-SE


É o que nós pensamos que sabemos que nos impede de aprender”

Claude Bernard


GABRIEL VILAS BOAS
DR
O pó tira o brilho até às coisas mais belas. Ele é uma inevitabilidade da passagem do tempo e… da inércia. Com as competências das pessoas acontece algo semelhante: ou aceitam que precisam de ser recicladas de tempos a tempos ou então correm o risco de perder o brilho e em pouco tempo ninguém as reconhecer. 

A imagem é fator importantíssimo em qualquer área. A competência profissional também, dirão os mais conservadores, e com razão. Só que as competências profissionais são dinâmicas, isto é, vivem em função das necessidades dos mercados. Em cada campo profissional, o cliente procura alguém atualizado e ao mesmo tempo que domine as melhores técnicas de venda. 

É impossível um professor ter sucesso com os seus alunos ensinando segundo os ancestrais métodos que viu no seu mestre-escola há trinta anos, é inviável um restaurante sobreviver à custa duma cozinheira que faz os mesmos pratos há dez anos e os apresenta sempre da mesma maneira como se não houvesse outra. É pouco recomendável um empresário da restauração contratar serventes que não saibam explicar em várias línguas os pratos da carta, recomendar o vinho adequado para os pratos em lista e servir com rapidez, eficiência e discrição. Este raciocínio estende-se a uma vendedora de roupa, a uma empregada duma perfumaria ou a um vendedor de material informático. 

Com a velocidade com que a oferta de produtos e serviços evolui, em pouco poucos meses, estes trabalhadores estão desatualizados. Melhor do que contratar novos colaboradores (que termo horrível que o neoliberalismo encontrou para desconsiderar a relação laboral) é investir na formação daqueles que já existem. Eles não partem do zero e têm a experiência a seu favor. Além do mais podem expor as dificuldades que sentem. 

O empregador deve perceber que a formação profissional é mais do que uma mais-valia, pois torna-se, nos tempos que correm, uma necessidade para sobreviver num mundo dos negócios. Este entendimento deve tê-lo também o empregado, mostrando abertura em termos de horário e época do ano para se “reciclar”, como agora se diz. O empregado deve “exigir” e procurar atualizar-se. Mais cedo do que tarde, colherá os frutos desse investimento. 

Se empresário e/ou empregado desvalorizarem a relevância da formação em contexto de trabalho, facilmente cairão na sombra do mercado e o tempo colocará uma espessa cruz de pó sobre o seu risonho futuro.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

FÉRIAS, LAZER, LIVROS E BIBLIOTECAS

Continuo imaginando não ser cego; continuo comprando livros; continuo enchendo minha casa de livros. Há poucos dias fui presenteado com uma edição de 1966 da Enciclopédia Brokhaus. Senti sua presença em minha casa - eu a senti como uma espécie de felicidade. Ali estavam os vinte e tantos volumes com uma letra gótica que não posso ler, com mapas e gravuras que não posso ver. E, no entanto, o livro estava ali. Eu sentia como que uma gravitação amistosa partindo do livro. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade de que dispomos, nós, os homens.
Jorge Luis Borges


ANABELA BORGES
DR
Chegando as férias e o lazer, chega também mais tempo para ler. É o que eu costumo dizer aos meus alunos. Eu digo-lhes: “leiam todos os dias um pouco; leiam antes de ir dormir; leiam sempre que possam, mas leiam sobretudo nas férias”.

Desde muito cedo, eu transmito o gosto pela leitura às minhas filhas, desde a sua estada buliçosa e inquietante no meu ventre, já que sempre tive o hábito de ler em voz alta. Hoje, elas lêem muito. A mais nova tem treze anos e disse-me: “Mãe, quero levar mil livros para ler na praia. Eu vou ler mesmo muito, quero melhorar o meu vocabulário”. E o meu orgulho de mãe sobe, sobe até às estelas, sempre sem parar. 

É claro que sobressai a hipérbole da questão, mas os meus desejos aspiram a que as minhas filhas aprendam mil ou mais palavras, de entre o emaranhado de letras sem fim que se solta dos livros que hão-de ler. E depois mais mil e outras mil ainda, ou mais.

Quando elas eram pequeninas, pediam frequentemente para ir à biblioteca. E eram horas arrastadas em tardes inteiras, sem ponteiros nem relógios, palavras apenas e conhecimento.   

Cada vez mais, as bibliotecas são vistas como espaços de conhecimento e não como depósitos de informação, pois não basta tê-la (a informação), é mesmo necessário aprender a transformá-la em conhecimento. Ter acesso aos serviços de uma biblioteca é um processo que se deve formalizar desde a mais tenra idade, por forma a cimentar a aprendizagem ao longo da vida.

É, por isso, importante que os utilizadores aprendam a usufruir de modo inteligente e rentável da informação disponível nas bibliotecas.

As bibliotecas, florestas de conhecimento, erguem-se como espaços sociais, locais onde convivem pessoas de diferentes graus académicos, diversas escolaridades, pertencentes a uma variada tipologia de profissionais, faixas etárias, níveis económicos e sociais. Assim, as bibliotecas são espaços privilegiados para os utilizadores tirarem o máximo partido num sentido construtivo, dando especial destaque ao desenvolvimento das literacias e à capacidade de aprendizagem ao longo da vida, como formas de adaptação às mudanças emergentes na sociedade atual.

Eu não consigo imaginar muitos espaços tão aprazíveis e enriquecedores como as bibliotecas. O Borges dizia que imaginava o paraíso como uma grande biblioteca. Eu também. Quando entro numa biblioteca, sinto as brisas e aragens dos enredos que as compõem. Parece que vêm a mim gerações de gentes que por lá passaram, juntamente com as múltiplas ficções e o conhecimento acumulado nas estantes e nos arquivos. 

Assim foi, por exemplo, no fim-de-semana passado quando visitei a Biblioteca Joanina, na Universidade de Coimbra.

Eu também já pus de parte os livros que quero ler na praia. É um lote grande, para juntar às mil, mais mil, mais mil palavras das minhas filhas. Levamos uma mala de livros para as férias, vidas inteiras em palavras, conhecimento em construção.

É essa fé que eu tenho: que, mesmo que seja lentamente, mesmo que seja palavra a palavra, se vá fortalecendo o conhecimento e não apenas nos limitemos a acumular informação. E talvez assim, por meio das florestas de livros, por meio de palavras, dos seus gritos e das lições de silêncio que podemos retirar delas, estejamos a assistir a uma gradual mudança de mentalidade da sociedade em geral. É preciso acreditar.


Boas férias e boas leituras!

terça-feira, 22 de julho de 2014

O GÉNIO ou O DEUS PESSOAL


GÉNIO, do latim geniu, «génio» (deus particular de cada homem, que o vigiava desde o nascimento, que acompanhava o seu destino e com ele desaparecia; da mesma maneira cada lugar, cada estado, cada coisa tinha o seu génio particular.) (..) Dicionário Etimológico  da Língua Portuguesa, José Pedro Machado, Terceiro Volume, Livros Horizonte, 3ª edição, 1977


         Aceitemos esta primeira tradução da palavra génio, vinda diretamente da mitologia, ainda que
REGINA SARDOEIRA
DR
justificada, enquanto autoridade, nas páginas de um dicionário, detenhamo-nos nela e façamos as derivações possíveis, não em termos semiológicos ou semânticos mas numa perspetiva ontológica ou metafísica que pode perfeitamente ser legitimada não só pelo recurso a surtos prodigiosos de génio em explosão, aqui e ali na história, e logo na vida, mas ainda na linha desta citação do dicionário que, por si só, a ser credível, impele um rumo erudito à investigação. «Deus particular de cada homem», e este excerto permite-nos, desde logo, uma interpretação: se cada homem tem o seu deus particular (ou génio) isso pode apenas significar que de uma certa forma, ou, pontualmente, de modo integral, qualquer humano tem a sua parcela de divindade, o seu cunho genial e, por essa razão, a capacidade criadora que aos deuses é por norma atribuída. Ter o seu deus pessoal permite-nos então concluir que, se um deus preside ao nascimento de cada um, acompanhando-o durante toda a vida e desaparecendo com a morte, também é  certo que estamos todos investidos de uma espécie de possessão e, enquanto possessos, temos uma voz que fala por nós, um estro que nos orienta os gestos e nos impulsiona a ação. Ou então, se quisermos caminhar para o extremo, somos nós próprios esse deus ou génio e dele nos alimentamos, alimentando-o na mesma medida.

Através deste jogo de reflexos, em que aquele que alimenta é alimentado, entramos de chofre no âmbito de uma espécie de dualismo (ou de dualidade) dado que, assim sendo, se temos de facto um deus pessoal presente em nós desde o nascimento, o nós que somos é de outra espécie, tendo sido bafejado pela presença do génio mas mantendo com ele uma relação de exterioridade. Não seremos, pois, deuses completos, apenas o alojamos em nós, ou ele em nós se alojou, não houve qualquer intencionalidade nesse acto e poderá passar toda uma existência sem que o possuído pela sua própria divindade pessoal  dê conta do facto dessa peculiar possessão e a ela não venha a aceder nunca porque tão-pouco a reconhece. Ateus espirituais ou intelectuais ou ontológicos, seremos então ateus em relação a nós próprios e não a nenhuma entidade heterogénea que deve ser louvada num culto externo, num templo que não o nosso mundo individual e secreto a que apenas nós teremos inteiro acesso.

Esse génio, essa entidade ou esse deus que nos habita e nos vai soprando as linhas da vida (e nem parece que falamos apenas das grandes obras, mas do conjunto de todos os nossos momentos, pois acedemos a gestos, palavras, ações de que nunca conseguiremos explicar cabalmente a origem ou a formulação, e no entanto nos dizem respeito pois brotaram de nós),  esse génio que o vulgo usa temer, que a ciência escalpelizou, reduzindo todo o poder do nosso génio pessoal a meras combinações eletroquímicas, sinapses, conjugações da atividade neuronal, ora felizes ora catastróficas, pujança de transmissão da serotonina ou da adrenalina e quantas vezes associando tudo o que transcende o mediano a patologias, esse génio (e queremos repetir a palavra para que conste) foi aos poucos privado da sua ascendência e raiz mitológica ou etimológica e substituído por «engenho». Continuamos a dizer que existe o génio mas de modo nenhum consideramos que a genialidade advenha a semelhantes personagens do influxo poderoso e portentoso de um deus pessoal, mas de uma espécie de habilidade ou de perícia que impele uns para aqui outros para ali, cada um na sua prateleira particular, cada um  dono da sua técnica ou talento que lhe veio das células, dos genes ou, quem sabe, da transmissão hereditária. E contudo existiram e existem homens neste mundo humano que não possuem uma prateleira, saltando em todas as direcções e em todas manifestando o poder, por inteiro, do deus pessoal ou do génio.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

INCÊNDIO É MALDADE QUE ARDE E QUE SE VÊ


GABRIEL VILAS BOAS
DR
Os incêndios em Portugal durante o verão são uma realidade tão lusitana que muito me admira que ainda não a tenhamos apresentado num qualquer spot publicitário para vender o turismo português no estrangeiro. 

É uma realidade que não aceito, embora entenda perfeitamente como surge e por que se mantém ano após ano, como doença crónica. 

À volta dos incêndios no nosso país vegeta uma série de mitos, sendo o “das causas naturais” aquele que mais me irrita. É para mim claro que 80 a 90% dos incêndios começam por pura maldade de incendiários, cuja loucura não pode ser defensável como justificação para ato tão ignóbil. Admito que uma parcela muito pequena dos fogos possa ter origem na incúria ou num qualquer acidente lamentável, que as condições atmosféricas ampliaram. A limpeza das matas, ou seja, a chamada prevenção, apenas diz respeito à rápida propagação do fogo e às dificuldades que os bombeiros têm em combatê-lo. Não é o calor excessivo que inicia os incêndios durante a madrugada, não é o mato por cortar que pega fogo, em várias frentes, a serras inteiras. 

Os incêndios têm origem criminosa na esmagadora maioria dos casos. Combater, dominar e terminar com um incêndio, em Portugal, durante o verão, custa muito dinheiro (curioso haver jornais que fazem contas ao custo dum polícia à porta da casa de Vale e Azevedo quando esteve em prisão domiciliária e não somam os custo em pessoal e material dum incêndio em Portugal), destrói património estatal e privado e, ultimamente, rouba vidas a jovens bombeiros. 

Quando se apanha um incendiário e se consegue levá-lo a tribunal (o que é raro) ninguém o confronta com estes custos, com o pânico que causou às populações, ninguém o acusa de homicídio involuntário. Na verdade, sobram os atenuantes habituais: estava bêbado; quis vingar-se do amante da mulher; zangou-se com a GNR local e queria aborrecer o posto inteiro; armou zaragata na festa da aldeia e decidiu vingar-se nas matas da terra ou, simplesmente, é maluquinho e não sabe o que faz, coitado! Esta última justificação deixa-me estarrecido! 

Durante os restantes meses do ano a loucura do indivíduo esteve de férias e jamais se lhe conheceram atos do género nos meses/anos anteriores, mas agora é aceitável reconhecer que é louco. Há terras que descobrem os seus loucos com o calor, mas os manicómios não aumentam de população em setembro, o que é uma pena. Por outro lado, há loucuras que só se manifestam através da piromania, o que se tornou numa especialidade tão especial de loucura que quase só existe em Portugal. 

Com a desertificação de que o interior tem sido alvo nos últimos anos é possível colocar aldeias completas numa camioneta, mas não é possível fazer o recenseamento dos tolinhos de certas aldeias do interior ou então colocar “os perigosos” de quarentena durante o verão. Sugiro, aliás, que após o desejável recenseamento se levem os loucos a banhos, no litoral. Serão umas férias descansadas para o nosso Ministro do Interior que, no início de julho, dizia temer que os meios de combate aos incêndios não estivessem todos operacionais a tempo e horas. Ora, é ele o responsável pela garantia da operacionalidade de tais meios… Ele manda e ganha para isso, mas ele “teme que não seja possível” e nós trememos por um qualquer surto de loucura. Quando ouvi essas declarações ainda pensei que se tratava dum qualquer tributo aos Monty Python mas percebi que o nosso Ministro do Interior não tinha categoria para tanto humor. Era demasiada literatura para um homem só!

Claro que a prevenção é importante. Falta limpeza nas matas, faltam guardas florestais. Isso custa dinheiro? Claro que custa, mas muito pouco face ao que se perde todos os anos em floresta e em bens agrícolas e ambientais, para não falar de vidas humanas. No entanto, acho que falta, antes de tudo, ação determinada da Judiciária e mão dura dos tribunais. O exemplo aqui é fundamental. Quando um maluquinho pensasse em amalucar pensaria primeiro nos vinte anos que certamente passaria na prisão e na conta que ele ou a família teria de pagar aos bombeiros e a todos aqueles que prejudicou pessoal e materialmente.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

A ESCRITORA AMARANTINA ANABELA BORGES APRESENTA O CONTO “A GAITA DO AMOLADOR”

ANABELA BORGES
DR
O Porto em estórias, memórias, imagens e poemas. O casario, a Ribeira, as varandas, as vizinhas. O aeroporto, a estação de S. Bento, as lojas tradicionais e as livrarias, os escritores do Porto. As artes e os ofícios, o amolador, as carquejeiras, o Fêquêpê. As gentes, os artistas, os cromos, os bacôcos e as polidoras de esquinas. O Duque, os namorados, os ambientes. A Baixa, os arredores, as lendas. Os moletes, os nabos e os cámones. O S. João, os rabelos, o Douro. O sentimento tripeiro, as estórias da nossa história.

Estas são algumas das temáticas abordadas na coletânea “Lugares e Palavras do Porto”, organizada pelo escritor e editor João Carlos Brito, com a participação de Anabela Borges, com o conto “A Gaita do Amolador”.

NA APRESENTAÇÃO DA OBRA
DR
E, porque uma das marcas dos portuenses é o seu linguajar, o Dicionário de PORTOguês dá a conhecer mais de 2500 palavras e expressões da gíria e do calão do Porto, naquela que é a maior e mais completa recolha de sempre.

A apresentação decorreu no passado dia 12 de julho, pelas 21:30, no centenário Café Progresso, no Porto.
O conto de Anabela Borges nasceu da memória auditiva, dos tons graves a agudos, mais ou menos desafinados, do inconfundível som da gaita do amolador. Essa memória, que, diz, irá acompanhá-la para sempre, vem do início da década de 90, de quando estudou no Porto, e morou na Rua Miguel Bombarda, e o som da gaita do amolador enchia a rua toda, anunciando a chuva e os dias frios. 

Anabela Borges tem uma costela tripeira, pois nutre um grande amor pelo Porto, terra-natal da sua mãe. 
O livro já se encontra disponível nas livrarias.

terça-feira, 15 de julho de 2014

CLARIVIDÊNCIAS

REGINA SARDOEIRA
DR
O nosso tempo, este século XXI alucinado e alucinante, nada tem, de facto, que seja extraordinário ou sequer notável. Basta olharmos à nossa volta, com alguma circunspeção, e depressa entenderemos em que espécie de logro nos vamos acoitando, crentes de que nos doura uma superioridade ou uma inteligência que não existiam noutras eras e às quais  bruscamente aderimos no salto do milénio e do século. Falta-nos (porque os perdemos, reenviando-os para os nossos sucessores intelectuais – as máquinas) a criatividade, o engenho, a força, o génio, em suma! Falta-nos o vigor do intelecto, o culto da excecionalidade, o apego ao espírito de elite, o companheirismo na tarefa nobre, a união em torno de uma ideia, a luta por uma utopia, a crença numa doutrina, a experiência da comunhão…falta-nos tudo!

Outrora, acreditávamos no poder dos cérebros lucilantes e entregávamo-nos a eles, crentes de que os animava o espírito supremo e que, na senda deles, atingiríamos o nosso cume. Hoje, cada um de nós julga ser o paladino da virtude e da glória e, apegado às suas pequenas ilusões de bolso, desdenha modelos, chefes, paradigmas ou mestres.

Platão amou Sócrates e rasgou a sua obra poética quando percebeu o manancial infinito da filosofia – mas soube manter-se poeta e fê-lo nas espirais portentosas da alegoria e do mito; Aristóteles escutou e sorveu as lições de Platão na Academia –  mas partiu para a sua caminhada, orientando para a terra a mão que o mestre erguia para os céus; Kant seguiu Descartes e fez-se racionalista – até que David Hume o atingiu de chofre e lhe deu a mão, acordando-o do sono dogmático, e fez-se racionalista crítico; Hegel acalentou o kantismo – até entender a esquizofrenia lúcida do mestre de Königsberg e proclamar a unidade da Ideia Absoluta, na espiral infinita da progressão dialética; Marx fez-se hegeliano de  esquerda, na senda de Feuerbach – mas inverteu o idealismo dialético dando-lhe um cariz humanista; Nietzsche veio dos gregos, até Wagner e Schopenhauer, e de uns retirou a pureza trágica dos inícios, de outro a sublimidade heroica da ópera como catarse de um mundo que havia assassinado a aura trágica e do outro a vontade de viver, logo transposta e enunciada como vontade de poder; Freud inventou uma fantasia urdida nos êxtases oníricos  e nos sortilégios mesmerianos aglutinados à ciência de Charcot,  dela fez terapia, criando a psicanálise; Boole e Frege reanimaram a lógica aristotélica, à luz da matemática e nela se inscreveu Bertrand Russell; e mesmo Wittgenstein, o paladino dos eternos enigmas filosóficos, conseguiu brandir o atiçador para Popper e abandonar a sala pois, «sobre aquilo que não se pode falar deve manter-se o silêncio»*! Brandir atiçadores e abandonar a sala, para não ter que percorrer o caminho batido dos problemas filosóficos, esses, que constantemente se transmutam em enigmas, por muito que intentemos decifrá-los, venham ou não até nós o reino de todos os Poppers, rasgar poesia inútil quando a filosofia nos acena com cânticos e maravilhas, ouvir o sentido da terra em choque com os arquétipos do empíreo,  arrasar a arrogância wagneriana e eleger um super-homem que é o caminho do homem, ele próprio uma ponte esticada entre o animal e o super-homem, criar uma fantasmagoria esquizofrénica em colisão com os dogmas urdidos num racionalismo metódico… eis o que hoje não somos capazes de fazer, pois trava-nos o ressentimento, e só sabemos tapar os ouvidos e seguir, atarantados, as nossas vielas tortuosas  – mesmo quando a inteligência solta os seus clarins!

Toda a gente escreve e pinta e esculpe, toda a gente faz política e sobe às cátedras, debitando um saber frouxo, urdido na mentira do tempo, toda a gente ascende à ribalta, erguendo a voz e enfunando o peito, ousando permitir que os holofotes lhe desvendem a terrível carranca, toda a gente sabe sempre tudo e sempre mais que toda a gente! Ninguém acolhe o conselho do mais sábio, ninguém respeita a hombridade do mais reto, ninguém ouve a crítica do mais justo, ninguém aceita a correção do mais atento. Parece que os próprios bebés trazem em si o conhecimento todo no ato de nascer e, quando crescem, é como se nada pudessem já aprender, velhos que começam desde logo a ser,  para as arenas sublimes do convívio com os predestinados. E é por isso que hoje, os lúcidos todos se calam e se escondem, receosos que os descubram e os confundam com esses néscios vindos de nenhures e para nenhures caminhando – e todavia crentes na sustentabilidade do que os tornou célebres. Por isso, não procureis o génio nas montras dos livreiros, nas paredes das galerias, nos ecrãs dúbios dos vossos cinemas privados, nas magazines fanadas ou nos slogans publicitários; sabei que eles estão mudos e assim permanecerão até que este tempo se esgote e dele nasça, num parto aterrador para os que até agora reinaram, a saga do futuro. Creio nesse tempo e só a ele me rendo!

*Ludwig Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico, Fundação Calouste Gulbenkian 

sexta-feira, 11 de julho de 2014

FORÇA E FRAQUEZA PSICOLÓGICA

Quando um engenheiro projeta uma casa ou uma ponte, uma marca automóvel lança um novo modelo ou a
GABRIEL VILAS BOAS
DR
indústria introduz no mercado um medicamento inovador, qualquer um deles faz testes rigorosos para verificar a fiabilidade, a resistência, a eficácia do seu produto. Só quando todos os critérios de qualidade estão cumpridos, o produto tem autorização para entrar no mercado. A exposição aos elementos da natureza, a resposta perante o imprevisto, a fiabilidade e a segurança quando os limites são atingidos e/ou ultrapassados são alguns dos critérios deste teste de stress.

As pessoas também são submetidas ao inesperado, a condições de vida totalmente novas e desafiadoras, mas para elas não há testes de stresse, porque falamos de emoções, sentimentos, afetos. São os diversos desafios que a vida lança a cada um os verdadeiros testes de stresse por que têm de passar. E é nesse momento que vem ao de cima a força psicológica de uns e a fraqueza de outros.

E cada vez mais ganhamos consciência de como esse é um fator decisivo no mundo profissional, social e pessoal em que cada um se move. É um fator de tal maneira determinante que muitos já contam com ele para fazer escolhas de pessoas nas empresas, para motivar ou intimidar no campo social. Na área pessoal, verificamos que muitas relações desmoronam ou evoluem conforme as pessoas sabem ou não conviver com as múltiplas solicitações com que este mundo de comunicação pré-íntima as seduz diariamente.

A segurança duma ponte, a fiabilidade dum carro ou a eficácia dum medicamento começa quando os seus criadores determinam os limites da sua ação, ou seja, conhecem os seus pontos fracos. Aí comunicam ao mercado as virtudes do produto, omitem as fragilidades e esperam o resultado.
As pessoas deviam fazer o mesmo. Definir, com o maior grau de rigor possível, aquilo que pretendem no trabalho, nas relações com os amigos e até nas relações mais íntimas, tendo em conta os seus valores, as suas reais ambições, a sua maneira de ser e estar. Devem ter ainda claro, os esforços e as cedências que terão de fazer para alcançar os seus objetivos. É necessário também ponderar o grau de compromisso dos outros connosco, aquilo que os move e o que estão dispostos a fazer para atingir os seus objetivos.

Quando fazemos este exame prévio sem confundir realidade com desejo, verificamos que há cargos que não nos importam mais do que um orgulho momentâneo, existem bens que não fazemos muita questão de ter e modas sociais que seguimos mais porque os outros também o fazem do que por convicção. Outras vezes concluímos que ainda não estamos preparados para enfrentar com sucesso determinada tarefa ou adversário ou simplesmente vemos que os outros são melhores ou têm razão ou têm o direito a escolher outro caminho.

Também podemos concluir que nos falta apenas coragem, determinação, capacidade de decisão. Mesmo esse problema tem resolução, ainda que seja preciso alguém nos dar um encontrão para dentro da piscina.

A nossa força psicológica começa quando abrimos os olhos para as fraquezas que temos, prossegue na determinação consciente do caminho que queremos e não queremos trilhar e acaba naquilo que Einstein definiu como “uma força motriz mais poderosa que o vapor, a eletricidade ou a energia atómica - a vontade.”   

quinta-feira, 10 de julho de 2014

DE LUSÍADAS VONTADES, LEDOS ENGANOS, QUINTOS IMPÉRIOS E O ENCOBERTO (PARTE I)

«Portugal não cria cidadãos, cria súbditos»: Boaventura de Sousa Santos, em 07/07/2014.

ANABELA BORGES
DR
O sociólogo Boaventura de Sousa Santos bateu-nos com esta afirmação, para cúmulo do espanto incontido dos dias que vimos vivendo, atirou-nos com esta verdade pegajosa que queremos descolar do corpo. Não é novidade. É mais uma afirmação recente sobre o estado das coisas em Portugal. O sociólogo acrescentou que seria necessário reformar o Estado e encontrar "novas democracias", de forma a sair de "uma cultura de submissão", que se insere num "contexto europeu de que não há alternativa". Afirmou que, em Portugal, "quer-se gente que se submete, mas que não se revolte", salientando que os direitos sociais conquistados com o 25 de Abril "não entraram no imaginário dos portugueses como algo que lhes pertence, mas como dádivas". E disse ainda: vive-se uma "espera sem esperança", onde não há expectativa de uma vida melhor e em que "tudo é feito" para que o povo "se resigne", num país em "estado de dormência". (fonte: Agência Lusa). 

Eu tenho voltado a este assunto vezes e vezes sem conta, e penso que não me cansarei. Poderei sempre fazê-lo até que os dedos me doam. À desesperança que nos consome a chama dos dias, eu acrescentaria uma palavra talvez mais forte, talvez de mais mando (será?), ou que é, pelo menos, muito difícil de reconquistar: a CONFIANÇA. Parece-me que neste momento muitos perderam a esperança e a confiança, as pessoas deixaram de acreditar em muitas coisas. A confiança traz agarrada ao lombo a firmeza, a afoiteza de espírito, a segurança e capacidade de resolução. A falta dela, é tudo ao contrário. 

As pessoas não andam assim serenas (e ainda bem), mas perderam-se no rumo dos propósitos que lhes haviam de guiar os destinos, atravessam veredas difíceis e labirintos que parecem impossíveis de sondar. Acresce dizer que as pessoas andam sem paciência umas para as outras e atacam-se a cada instante, fervilham por tudo e por nada, descarregando verbos pesados umas em cima das outras. Isso é tanto mais notório quanto mais subimos a escadaria para a esfera das pessoas mais conhecidas, mais influentes, com poder e com voz, ou só com voz, com alguma (ou muita) capacidade de afirmação.   

As pessoas não gostam de ouvir verdades que lhes rocem a nuca como um bafo morno. Gostam de nostalgias e floreados, de paninhos quentes e toalhitas Dodot. Gostam de futebol e da vida pública relatada nos jornais e em revistas cor-de-rosa – ledos enganos da alma!. As pessoas não gostam, sobretudo, de ouvir dizer coisas que se assemelhem aos seus medos, às suas incertezas, às suas hesitações. Tenho observado cada vez mais situações de pessoas que atacam em todas as frentes, quando, de suspeitas infundadas, julgam que alguém poderá estar a dizer mal delas, ou a contrariá-las, ou simplesmente a emitir uma opinião. Dizem logo que não se pode generalizar, sem se darem conta que são elas que estão a fazer generalizações. Porque quando alguém ousa dar a sua opinião, ou narra determinada situação que vivenciou, essa situação está, naturalmente, circunscrita a um tempo e a um espaço e diz respeito a essa e a outras determinadas pessoas. Quando alguém ousa partilhar essas verdades com os outros (que não deixam de ser verdades, se foram observadas, sentidas, vivenciadas), esse alguém não deixa de se apresentar num acto de coragem. Mas isso ninguém é capaz de ver. É coragem dizer “eu vivi esta ou aquela situação, eu penso isto ou aquilo”. Na ânsia de se tocarem, de se colocarem à defesa, as pessoas são capazes de verem nisso uma generalização e não a particularização que está lá. Esse é um dos frutos do desânimo e das incertezas que povoam os nossos dias. 

Por várias vezes, Camões evidenciou que os portugueses não davam valor à cultura, não ouviam as vozes dos seus poetas. Ora, não se pode amar o que não se conhece, é certo, e a falta de interesse pela cultura nacional é claramente visível (lembrando o “vi claramente visto”, de Camões). Essa falta é responsável pela indiferença manifestada pela divulgação dos feitos daqueles que, incansavelmente, põem a alma no seu país, na sua língua materna. E muitos esquecem-se que, se não tiverem quem os cante, cairão no esquecimento. Camões, apesar de tudo, movido pelo amor à Pátria, reitera o seu propósito de continuar a engrandecer, com os seus versos, as "grandes obras" realizadas: “Sem vergonha o não digo: que a razão / De algum não ser por versos excelente / É não se ver prezado o verso e rima, / Porque quem não sabe arte, não na estima”.*

Na minha opinião, Sophia merece estar no Panteão, como símbolo da nação. Ponto. Merece. Merece as guardas de honra e as honras de Estado. Não foram as palavras que ela teria gostado de ouvir, não foi cerimónia que sonhasse? Certamente que não. Houve aproveitamento político? Houve. Há sempre! Mas isso são paus para outras colheres, farinhas de outros sacos.  Também não gostei que o Presidente da República não se tivesse pronunciado publicamente sobre o prémio atribuído ao fadista Carlos do Carmo, como não gostei nada que, em 2010, não tenha estado presente no funeral de José Saramago. Não gostei mesmo nada disso. E, sim, gostei, (emocionei-me tanto) que o corpo do escritor tivesse sido “resgatado” pela Força Aérea Portuguesa, desde Lanzarote para Lisboa. Goste-se ou não das pessoas, não pode negar-se o facto de serem vultos inalienáveis da cultura portuguesa.   

Nos últimos dias, observei diversas e legítimas opiniões sobre estes assuntos, mas vi muito quem se metesse a dizer que Sophia não queria isto, queria antes aquilo; que o Carlos do Carmo não era o primeiro a vencer o Grammy, que o Presidente da República não tem de estar aqui ou ali. Respeitando as diferentes opiniões, tratou-se daquilo que, ao início, referi: as pessoas fizeram-no com agressividade verbal, digladiaram-se com quem apenas manifestava a sua opinião – como cavalo de batalha…
   
Eu acredito que este Portugal, cerceado de mar e serras, não esquecerá a força do sonhar, a vontade, o querer, a ousadia, o “POSSESSIO MARIS” de outrora; a bravura de se apresentar face à imponência da montanha, “Amo-te, ó Serra, em tudo o que tu és! / Amo-te, desde a rocha que em ti sofre / Ao tojo bravo e à urze tão mesquinha / De que sempre te vestes, porque, enfim, / Tu és grande, e, portanto, pobrezinha!”.** 

As lusíadas vontades continuarão a sua saga de aves migratórias. O país acabará por renascer (como n’ “O Desejado”): “onde quer que, entre sombras e dizeres, / jazas, remoto, sente-te sonhado, / e ergue-te do fundo de não-seres / para teu novo fado!”. ***

As pessoas não gostam de ouvir verdades que lhes rocem a nuca, mesmo que o assunto não tenha directamente a ver com elas, se lhes roçam a pele num bafo quente ficam agressivas, em desespero. 
É assim que nos querem: cidadãos serenos, adormecidos e a acenar em assentimento.

Mas lá no âmago (in)contido da consciência do Ser Português, a que podemos chamar alma, permanece um eterno desassossego. Eu acredito que sim.

Vive em nós um desejo latente de renovação nacional. A espera inconsequente acentua e justifica o nosso atraso. O acreditar, ainda, num D. Sebastião, o “Encoberto”, é a revitalização nacional sob o estandarte de um sonho comum, vencer as limitações e a rotina, regressar ao Quinto Império de cada um de nós. É daí que se espera um Portugal novo. 

“(Que ânsia distante perto chora?) / Tudo é incerto e derradeiro. / Tudo é disperso, nada é inteiro. / Ó Portugal, hoje és nevoeiro... 
É a hora!”***

*Luiz Vaz de Camões, OS LUSÍADAS (EST. 97, CANTO V), 1572. 
** Teixeira de Pascoaes, MARÂNUS, poema “Chegada de Marânus à Montanha”, 1920.
***Fernando Pessoa, MENSAGEM, poema “O Desejado”; poema “Nevoeiro”, 1934.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

LUGARES E PALAVRAS DO PORTO - LANÇAMENTO A 12 DE JULHO NO PORTO, CAFÉ PROGRESSO

Lugares e Palavras do Porto


A escritora  Anabela Borges  prepara-se para o lançamento de mais uma obra.


Depois do lançamento de «Até Ser Primavera», a escritora amarantina é co-autora da obra «Lugares e Palavras do Porto - A cidade em contos, memórias, imagens e poemas».


A cronista da Bird Magazine lança o convite aos seus leitores para a apresentação da obra, que inclui o maior e mais completo dicionário de português:


sexta-feira, 4 de julho de 2014

DEIXA-TE ANDAR, DEIXA…

GABRIEL VILAS BOAS
DR
«Que falem bem, que falem mal, mas que falem!» - quantas vezes já não ouvimos isto? Ser esquecido é que não! Tornar-se irrelevante é que se torna insuportável!
Talvez os políticos portugueses não tenham percebido muito bem para onde caminham, mas a irrelevância social e afetiva tornou-se o seu destino. Tal como o velho ditador cubano cuja existência já ninguém recorda apesar de continuar vivo ou o líder madeirense cuja vida pública expirou, a política morreu no coração dos cidadãos e demorará largos anos até que ressuscite. E nada atinge mais o ego dum político de que a noção clara da sua insignificância social. Hoje ninguém quer saber dos debates sobre o estado da nação feitos na assembleia da república, ninguém se apoquenta com as guerrinhas dentro do PS nem se entusiasma com os anúncios de reformas virtuais que normalmente vêm “reformar” as anteriores que falharam ou nem se implementaram. Há um encolher de ombros sardónico da população portuguesa que a classe dirigente bem fez por merecer.
No entanto, este “deixa andar”, este “já nem me interessa” serve para quase tudo. De vez em quando há uma indignação pífia que dura 48 horas e que é mais facebookiana e televisiva que real porque a seleção foi eliminada ou Cavaco desmaiou.
Infelizmente é também a atitude que adotamos sobre coisas importantes. Um ministro da Administração Interna teme que os seus bombeiros não tenham atempadamente os equipamentos necessários para combater os fogos e ninguém lhe pergunta indignadamente o que andou ele a fazer durante os últimos nove meses, já que é o responsável pela área; o banco privado português mais relevante do país têm um buraco de 7 mil milhões de euros e o Banco de Portugal obriga o seu líder a sair e ninguém pergunta ou exige que o ministério público investigue e leve a tribunal os responsáveis por tal buraco. Depois do BCP, do BPN, agora chegou a vez do BES provar como os privados gerem tão bem e tão honestamente o dinheiro que lhes confiámos. Como criam eles riqueza, emprego e felicidade!
Todavia, o pior de tudo, durante esta semana, foi a não reação aos números do desemprego em Portugal. No final de junho ficámos a saber que continuamos a ter cerca de 800 mil desempregados. Destes mais de metade não recebe subsídio de desemprego, isto é, não tem qualquer proteção social. Paralelamente, o governo ufana-se de ter deixado de pagar o RSI a 45 mil pessoas no último ano. Só não diz o que aconteceu a essas pessoas, como não revela como vivem os 400 mil desempregados que não conseguem trabalho e não recebem subsídio. Isso não lhes interessa verdadeiramente. Sempre abominaram que o Estado tivesse qualquer compromisso de solidariedade mínima com os seus cidadãos. Não podendo destruir o bom que havia na criação do rendimento mínimo, mudaram-lhe o nome e fizeram crer que a fraude era o nome do meio desse subsídio de subsistência. Perseguiram os faltosos como criminosos de guerra, enquanto nos pediram compreensão com os crimes económicos nos BES, BPN e BCP desta vida. Infelizmente sempre houve e haverá fraudes no RSI como há nos bancos, nas empresas, nas instituições públicas. Temos de as combater, punir e seguir em frente e não aproveitar situações pontuais para impor iníquas agendas ideológicas.
E perante tudo isto, o que fazemos? Pois, temos pena, muita pena, mas, se o mal não nos bate à porta, logo mudamos de canal ou regressamos ao facebook; caso o problema seja connosco, preparamo-nos para descer mais um pouco o nosso nível de vida, sem darmos um bocadinho de luta, até ao próximo corte que acontecerá porque… sim.
Isto não tem de ser assim. É possível fazer mais e melhor, na governação do país, na atitude social, no estilo de vida que temos ou que deixamos que os outros nos imponham.

Já que não agimos quando devíamos, é necessário reagir. Não aceitar este estado de coisas. Exigir mais de quem nos governa e não apenas do Paulo Bento e do Cristiano Ronaldo. Exigir mais da nossa ambição. Se não o fizermos, estamos a caminho do país da irrelevância social e pessoal. E nesse lugar não há likes nem smiles e muito menos resgates.