GÉNIO, do latim geniu, «génio» (deus
particular de cada homem, que o vigiava desde o nascimento, que acompanhava o
seu destino e com ele desaparecia; da mesma maneira cada lugar, cada estado,
cada coisa tinha o seu génio particular.) (..) Dicionário
Etimológico da Língua Portuguesa, José Pedro Machado, Terceiro Volume,
Livros Horizonte, 3ª edição, 1977
Aceitemos esta primeira tradução da palavra génio, vinda diretamente da
mitologia, ainda que
justificada, enquanto autoridade, nas páginas de um
dicionário, detenhamo-nos nela e façamos as derivações possíveis, não em termos
semiológicos ou semânticos mas numa perspetiva ontológica ou metafísica que
pode perfeitamente ser legitimada não só pelo recurso a surtos prodigiosos de
génio em explosão, aqui e ali na história, e logo na vida, mas ainda na linha
desta citação do dicionário que, por si só, a ser credível, impele um rumo
erudito à investigação. «Deus particular de cada homem», e este excerto
permite-nos, desde logo, uma interpretação: se cada homem tem o seu deus
particular (ou génio) isso pode apenas significar que de uma certa forma, ou,
pontualmente, de modo integral, qualquer humano tem a sua parcela de divindade,
o seu cunho genial e, por essa razão, a capacidade criadora que aos deuses é
por norma atribuída. Ter o seu deus pessoal permite-nos então concluir
que, se um deus preside ao nascimento de cada um, acompanhando-o durante toda a
vida e desaparecendo com a morte, também é certo que estamos todos
investidos de uma espécie de possessão e, enquanto possessos, temos uma voz que
fala por nós, um estro que nos orienta os gestos e nos impulsiona a ação. Ou
então, se quisermos caminhar para o extremo, somos nós próprios esse deus ou
génio e dele nos alimentamos, alimentando-o na mesma medida.
REGINA SARDOEIRA DR |
Através
deste jogo de reflexos, em que aquele que alimenta é alimentado, entramos de
chofre no âmbito de uma espécie de dualismo (ou de dualidade) dado que, assim
sendo, se temos de facto um deus pessoal presente em nós desde o
nascimento, o nós que somos é de outra espécie, tendo sido bafejado pela
presença do génio mas mantendo com ele uma relação de exterioridade. Não
seremos, pois, deuses completos, apenas o alojamos em nós, ou ele em nós se
alojou, não houve qualquer intencionalidade nesse acto e poderá passar toda uma
existência sem que o possuído pela sua própria divindade pessoal dê
conta do facto dessa peculiar possessão e a ela não venha a aceder nunca porque
tão-pouco a reconhece. Ateus espirituais ou intelectuais ou ontológicos,
seremos então ateus em relação a nós próprios e não a nenhuma entidade
heterogénea que deve ser louvada num culto externo, num templo que não o nosso
mundo individual e secreto a que apenas nós teremos inteiro acesso.
Esse
génio, essa entidade ou esse deus que nos habita e nos vai soprando as linhas
da vida (e nem parece que falamos apenas das grandes obras, mas do conjunto de
todos os nossos momentos, pois acedemos a gestos, palavras, ações de que nunca
conseguiremos explicar cabalmente a origem ou a formulação, e no entanto nos
dizem respeito pois brotaram de nós), esse génio que o vulgo usa temer,
que a ciência escalpelizou, reduzindo todo o poder do nosso génio pessoal a
meras combinações eletroquímicas, sinapses, conjugações da atividade neuronal,
ora felizes ora catastróficas, pujança de transmissão da serotonina ou da
adrenalina e quantas vezes associando tudo o que transcende o mediano a
patologias, esse génio (e queremos repetir a palavra para que conste) foi aos
poucos privado da sua ascendência e raiz mitológica ou etimológica e substituído
por «engenho». Continuamos a dizer que existe o génio mas de modo nenhum
consideramos que a genialidade advenha a semelhantes personagens do influxo
poderoso e portentoso de um deus pessoal, mas de uma espécie de habilidade ou
de perícia que impele uns para aqui outros para ali, cada um na sua prateleira
particular, cada um dono da sua técnica ou talento que lhe veio das
células, dos genes ou, quem sabe, da transmissão hereditária. E contudo
existiram e existem homens neste mundo humano que não possuem uma prateleira,
saltando em todas as direcções e em todas manifestando o poder, por
inteiro, do deus pessoal ou do génio.
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