“O
tema da crise dos valores não nasceu nem hoje, nem ontem, pois sabe-se que a ‘Umwertung alIer Werte’, a ‘Inversão de
todos os Valores’, já foi um dos temas privilegiados da reflexão de Nietzsche
[…]”. – em: OS VALORES DA CIDADANIA, por Isabel Renaud (1992).
Os professores são mais, muito mais e
cada vez mais, do que meros transmissores de conhecimentos.
Anabela Borges DR |
O exame começou às 9:30 em ponto. Os
alunos iniciaram a prova, cada um metido na sua circunspecção.
O dia de Junho marcava o Verão no
calendário, mas era um dia frio, chuvoso, digno de não deixar na vergonha
qualquer dia de Outono. Lá fora, o vento agitava a ramagem, o cinza e o chumbo
instalavam-se lentamente como quem chegava para ficar. Na sala, as luzes acesas
e uma aragem fresca imprópria para um dia de Verão. Decorria a prova. E aquelas
duas professoras, vigilantes, pensavam, cada uma, no desagasalho dos jovens,
impreparados para aquela partida de São Pedro em vésperas de São João.
Eram os pés desnudados, eram as blusas de
alcinhas e as T-shirts. E naquela hora, acautelado que estava o fecho de todas
as janelas, a porta aberta, pois as normas não permitiam que se fechasse, cada
uma das professoras estava preocupada com o bem-estar e o conforto de cada
aluno. E esperavam, no seu íntimo, que a prova não fosse para eles um impreparo
tamanho como aquele dia feio e mal-humorado de Verão.
Há muitos anos que trabalho directamente
com pessoas. E é tão difícil trabalhar com pessoas!
Neste ano, trabalhei com pessoas com idades
compreendidas entre os 13 anos e os 50 e picos. As pessoas mais difíceis que
encontrei, pelos mais variadíssimos aspectos, são as que se situam nas franjas
deste conjunto de idades, ou seja, as da faixa etária dos 13/15 anos e as dos
50 e picos. É claro que isto não é nenhuma regra, provavelmente até poderá
constituir uma excepção grosseira, pelo menos parcialmente. Isto sou só eu a
falar do que vi e senti. E não esqueçamos que estamos a falar do meio escolar.
Sei explicar muito bem as razões (e não
são nada animadoras) pelas quais não é fácil trabalhar com o primeiro grupo. Já
sobre o segundo, as coisas não são assim tão claras, nem assim tão lineares.
Começarei por falar do segundo grupo,
uma vez que me parece mais atópico, mais inconsistente, mais difícil de
caracterizar, e assim ficará arrumado – para reflexão, claro está. Algumas dessas
pessoas são pouco pacientes (o que, por vezes, dava para confundir com pouco
tolerantes); são pessoas que colocam obstáculos em tudo, tudo lhes faz espécie,
vêem problemas em todas as direcções (não, eu recuso-me a aceitar isso com a
desculpa de que são pessoas mais experientes, ora essa); queixam-se muito,
reclamam muito, por tudo e por nada; olham os outros com alguma desconfiança e
falta de crédito; em alguns casos, verifiquei que são as que mais falham
profissionalmente. Eu não gosto nada de pessoas com mau-feitio, isso já deu
para ver. Porque até num mau-feitio tem de haver muita inteligência, tem de
haver espaço para respostas e portas abertas e boas-vontades. E, muitas vezes,
não há.
As pessoas do primeiro grupo deviam constituir
uma das grandes preocupações da sociedade actual, correndo o sério risco de
virem a ser estudadas, no futuro, como verdadeiros exemplos de barbáries
cívicas. Não arrumam as cadeiras onde se sentam; deixam lixo em cima das mesas
e nos sítios onde estiveram, sem olhar para trás, e quando lhes é dito que não
há criados, quando se lhes chama a atenção, reagem com a maior das
naturalidades, afirmando que há – apontando para os auxiliares de acção
educativa, os contínuos; comportam-se dentro da sala de aula com poucas
diferenças do que é comportarem-se no recreio, em termos de barulho e de
utilização da voz; levantam-se do lugar sem pedir licença – mesmo que já tenham
sido chamados à atenção por mais de 1000 vezes; mastigam chiclete e utilizam o
telemóvel, sabendo que não é permitido – desrespeitam, nestas e noutras
situações, todo e qualquer regulamento; utilizam bolas de futebol nos
corredores; estragam rolos de papel higiénico inteiros, só porque sim; poucos
querem saber das aprendizagens e um amontoado deles quer apenas saber o que vai
sair para o teste.
Poucas vezes estes alunos são punidos.
Pouco ou nada lhes acontece.
Ao contínuo resta-lhe gritar aos alunos,
que não lhe obedecem, pelos corredores fora. Ao docente resta-lhe vestir uma
capa de professor cara-de-mau, para que eles abusem o menos possível, resta-lhe
falar-alto-para-se-fazer-ouvir, pelo menos nos primeiros minutos da aula,
dependendo do dia e da hora, e da turma, é claro, que isto também varia de
turma para turma, de escola para escola, de localidade para localidade.
E depois? Depois?
No fim de contas, o professor é muito
mais do que um mero transmissor de conhecimentos, muito mais. Mas isso já todos
nós sabemos. É o menino que tem de ir encher a garrafa de água; é a que lhe dói
a barriga e tem de ir tomar um chá; o que lhe dói a cabeça, se a “stora” tem um
comprimido (já agora!); a que está a chorar, porque “stora… umas cenas”; o que
se levanta e foi só para apanhar a caneta, que por milagre, sozinha, voou cerca
de 2 metros e meio; é o que tem mesmo de ir à casa-de-banho porque está mesmo
muito apertadinho; é a gargalhada geral, porque o pior aluno da turma disse uma
piada, que a “stora” não ouviu mas teve mesmo piada porque ele é o pior aluno
da turma e por isso é o mais admirado pelos colegas. Sim, porque os meninos não
podem esperar. Sim, porque os meninos têm um umbigo muito grande e vêem pouco
pra lá dele, e vão queixar-se ao Diretor de Turma e aos pais. Sim, os meninos.
Os meninos.
Parece que estou a acordar de um
pesadelo.
Ainda bem que as pessoas com quem
trabalhei este ano não são todas assim. Ainda bem que ao longo da minha vida
tenho trabalhado com pessoas trabalhadoras, responsáveis, generosas,
preocupadas, interessadas, tolerantes, empreendedoras e simpáticas.
Eu sei que estas pessoas vão sempre
existir.
As outras, é preciso ajudá-las a mudar.
Ainda vamos a tempo. Iremos?
Como compreendo este texto! Se viesse a ser escrito em junho de 2015... provavelmente, ainda teria mais uma dose adicional de preocupação e desencanto, pelos relatos do agravar da situação na educação. Fui professor desde 1981 e procurei fazê-lo com profissionalismo (e até mesmo paixão)... até 2009, altura em que senti estar na hora de fazer outras coisas gratificantes, por alguns motivos registados no texto da Anabela Borges. Ao entrar na situação de aposentado deu-me vontade de dizer a mesma frase: "parece que estou a acordar de um pesadelo". Atirei o riquíssimo currículo para o lixo, utilizei tinta corretora nos últimos anos de docência e comecei uma nova vida. Bem-hajam professores que trabalham com entusiasmo nestas condições. Bem-haja Anabela Borges.
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