GABRIEL VILAS BOAS DR |
Os médicos ameaçam novamente fazer greve daqui a quatro semanas. A maioria de nós deu pouca relevância ao facto e muitos, desatentos, acharão que se trata, no fundo e mais uma vez, de questões salariais ou remuneratórias. Mas não! O problema é o código de ética que o Governo do Ministro Paulo Macedo quer impor ao médicos e outros agentes que trabalham na área da saúde.
Sem ler ou ouvir as razões dos médicos, poderíamos pensar se tal código só poderia ter por causa os muitos presentes que os médicos recebem dos seus pacientes e que o Ministério da Saúde estava disposto a terminar com essa prática. Ainda que o assunto seja aflorado, não é o que motiva o novo código de ética que os nossos governantes querem impor à classe médica.
O ministério quer que os médicos, enfermeiros e outros agentes sejam obrigados a “guardar absoluto sigilo e reserva sobre qualquer informação que possa afetar ou colocar em causa o interesse da organização”. E acrescenta que todos os colaboradores dos organismos sob a tutela do Ministério da Saúde “devem abster-se de emitir declarações públicas, por sua iniciativa ou mediante solicitação de terceiros, nomeadamente quando possam pôr em causa a imagem do nome do serviço ou organismo, em especial fazendo uso dos meios de comunicação social”.
Dito duma forma simples: não podem falar nada que ponha em causa o bom nome do serviço onde trabalham, ainda que isso seja a mais pura das verdades. Não podem dizer que o governo os obriga a práticas médicas pouco recomendáveis porque menos onerosas, não podem esclarecer ninguém sobre condutas médicas e administrativas que achem lesivas do cidadão, não podem denunciar ordens da tutela que não respeitem os interesses nem a saúde dos utentes, etc. A lista seria extensa e cada um de nós pode imaginar a lista de proibições que os profissionais da saúde passam a estar sujeitos.
E por que faz isto o Ministério da Saúde? Se observarmos com atenção, os médicos portugueses não têm por hábito denunciar a falta de condições nos hospitais, não costumam envergonhar os serviços onde trabalham com afirmações depreciativas ou bombásticas, não “passam” aos media informações inconvenientes ou falsas, não fazem dos serviços públicos de saúde um centro de negócios. Aliás, os contactos com a comunicação social são sempre pautados pela reserva e discrição e não costuma haver duas versões do Hospital e Centro de Saúde para o mesmo facto.
O problema do Ministério da Saúde não é a falta de ética dos médicos portugueses, mas a sua ética excessiva, na ótica do governo. Para o Ministro Paulo Macedo e seus pares, era bom que os médicos assistissem sem reação nem denúncia à implementação dum conjunto de práticas médicas que baixassem o nível dos cuidados de saúde ou pusessem em causa esses mesmos cuidados. E, vinculados por esse “tão ético” código de ética, dessem a cara por medidas com as quais discordam profundamente. Mais do que amordaçados, os médicos passariam a assumir, na prática e no terreno, a desqualificação do Serviço Nacional de Saúde.
O Ministério da Saúde, ao bom estilo de qualquer regime ditatorial, diria o que o médico pode dizer e não pode dizer. É a perversão total da liberdade de expressão e da democracia. O médico português não é um desbocado, um maldizente ou um traidor. O médico português é um cidadão de pleno direito, com liberdade de opinião e com uma responsabilidade acrescida do ponto de vista social, cívico e ético, cuja prática das últimas décadas não autoriza outra tomada de posição que não seja estar do seu lado nesta luta.
É uma luta fundamental ainda que pouco publicitada pelos órgãos de comunicação social (que também são atingidos pelo código da vergonha), porque em última instância defende o direito dos utentes, a saber, que muitas vezes os médicos e enfermeiros que os atendem não fazem melhor ou diferente porque nem os deixam denunciar o que está mal.
O problema é antigo e resolve-se quase sempre da pior da maneira: quando não se gosta da mensagem o melhor é “matar” o mensageiro. É o que diz o artigo 3.º do Código de Maquiavel.
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