LUÍS CUNHA |
O convite para colaborar na BIRD Magazine, além da satisfação que me deu, trouxe consigo uma dificuldade que enfrento pela primeira vez. Falo do compromisso de uma escrita regular que cumpra o melhor possível duas condições que a mim mesmo imponho: escapar ao estrito redil da minha especialidade académica e manter uma razoável coerência temática e de estilo no que for escrevendo. Foi partindo destas condições autoimpostas que decidi fazer dos livros o centro destas crónicas. Num país onde se lê pouco, apesar de se editar bastante, há sempre livros que escapam à nossa atenção; outros que diariamente se perdem na voragem da novidade; outros ainda que guardamos nas estantes esperando que o tempo se disponha a dar-nos tempo para os ler. Os «Livros são papéis pintados com tinta», diz o verso de Pessoa no tom encenado de quem os desvaloriza. Será pois com essas pinturas que aqui me ocuparei. Serão crónicas feitas a partir de leituras, umas instigantes outras frustrantes, tanto quanto de desejos confessados de ler o que ainda na li. Na era do digital as minhas palavras não alcançarão a forma de papéis pintados mas se alguém nelas descobrir cor isso bastará à satisfação de quem escreve.
Num momento que sempre me pareceu notavelmente inspirado, George Steiner escreveu uma série de ensaios a que deu o título de «Os livros que não escrevi». Juntou aí uma mão cheia de textos sobre temas que o interessavam, sobre os quais gostaria de ter escrito livros inteiros, sem que no entanto tivesse encontrado tempo ou oportunidade para o fazer. Condensou-os, por isso, nesse livrinho sob a forma de breves ensaios de estimulante leitura. Não é, no entanto, pelo conteúdo, que aqui refiro este livro, mas apenas pelo seu título. Sem a inspiração ou o talento de Steiner, mas contagiado pelo seu redondo «Não», ocorreu-me escrever sobre os livros que nunca lerei. No caso do ensaísta havia um lamento por não ter podido escrever o que pretendia, não sendo necessariamente esse o meu caso. No que me diz respeito, misturam-se nesta negação livros que faço questão de não ler com outros de leitura impossível. Falta vida e sobram livros, é bem verdade, mas é justamente por isso que devemos ser criteriosos.
Enunciar pela negativa é fácil; concretizar a renúncia é mais difícil. Desde logo por respeito ao sensato aforismo que avisa «Nunca digas -- desta água não beberei» e também por eu ser um desorientado leitor que gosta de saltitar entre temas, géneros e “escrevedores”. Como os princípios valem mais que as denúncias, justo é que a enunciação dos critérios de recusa venha antes da ilustração com obras concretas. Ocorrem-me três critérios, que podem valer como «solteiros» ou combinados, dependendo da vontade de cada um. O primeiro é da ordem da razão e bom senso e prende-se com a inutilidade, irrelevância ou impossibilidade de leitura; o segundo é do domínio da ética e reporta à necessidade de higiene física e mental do leitor; o terceiro é estético, vincando a pobreza de muito do que é oferecido à leitura. Em termos práticos e operativos, cada leitor deve fazer o uso que entender conveniente destes critérios; a mim servem-me de guia imperfeito mas prático no labirinto de bibliotecas e livrarias.
Apenas para que o leitor tenha ideia da aplicação prática, vem-me à ideia um exemplo recente de uma obra que classifico como rara por conciliar na perfeição os três critérios de rejeição que defini. Trata-se de «Eu e os políticos» de José António Saraiva. Desnecessário lê-lo mesmo por aqueles a quem o tema eventualmente interessasse, pois tudo o que ali se diz já foi partilhado, de forma escandalizada ou sórdida, em tudo quanto é fórum virtual, jornal impresso ou entretenimento televisivo. Leitura a evitar também por razões éticas e de princípios: um cavalheiro não espreita pelo buraco da fechadura nem escuta arás das portas e tampouco aceita convivência com energúmenos que o façam. Finalmente, no plano estético, considerem-se as pretensiosas e medíocres incursões do autor no campo da literatura como recomendação mais que séria para afastar de nós «Eu e os políticos».
Também nunca lerei, atrevo-me a dizê-lo, qualquer livro das vastas prateleiras da auto-ajuda, coaching ou disparates similares. Vale, neste caso, o primeiro critério por sobre os demais. A livros que assentam na ideia de que temos que aprender a olhar para nós, como se o espelho não fizesse isso desde os mais remotos tempos, nada encontro de recomendável. Arrepiam-me as fortunas ganhas a troco de nada, em nome da relevação de uma potência que os atolambados leitores sempre tiveram dentro de si. Forma moderna de venda de banha-da-cobra, é o que me parece, sem que se preserve, sequer, a estética barroca de uma verdadeira venda de feira. Nenhuma virtude encontro em tais «escrevedores» nem qualquer utilidade na prosa que destilam, mas pode o defeito ser meu, naturalmente.
É ainda da ordem da razão reconhecer a impossibilidade de leituras que, no entanto, muito gostaria de fazer. Pensemos num bom dicionário da língua portuguesa, o Houaiss, por exemplo. Começar pela vogal «a» e acabar no sonolento «zzz» tem tanto de sedutor como de impraticável. Émile Benveniste ensinou-nos que nunca é tempo perdido aquele que consumimos no aprofundamento de um vocábulo, no exercício de olhar a etimologia como quem olha as raízes do que viemos a ser. Um monumental dicionário, como o que referi, é um labirinto de leitura impossível, já o sabemos. Porém, e voltando a Pessoa, se a minha Pátria é a língua portuguesa, que melhor português não seria eu se detivesse e pudesse usar todos os instrumentos e recursos que esta percorrida língua nos oferece. Abro aqui uma exceção à cavalheiresca regra de não espreitar por frinchas nem escutar o que os outros dizem. Em se tratando desta língua que nos une vale a pena abrir um dicionário como quem abre portas e janelas, espreitar sem pudor, e sem pudor escutar quem a usa, mesmo que esse uso pareça abuso àqueles que se remedeiam com duas centenas de vocábulos lusos pintalgados com uma dezena de anglicismos encontrados em promoção.
Muito bem, gostei do que li,felicito-te, por este trabalho que vais ter, agradecendo também às pessoas que apostaram em ti, por mais este compromisso que te deram, que de certo te vais sair muito bem.Parabéns.
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