MIGUEL GOMES |
À semelhança do climatérico dia, acordo sem saber muito bem onde estou, ao que vim, para onde vou e porque me escrevo na primeira pessoa, que me encontra.
Apetece-me deixar dormente o despertar, ver os restos de noite fugirem das frestas luminosas que assomam por entre os buracos da persiana, tapar-me com o lençol até ao queixo, como se estivesse sobre a caruma do monte a dois passos donde estou e tivesse medo do cair do dia.
Consigo levantar-me, a custo, a muito custo. Espera-me a tarefa de nebular a manhã e anima-me, pelo menos por enquanto, a volatilidade da mediocridade que promete terminar quando todos se vestirem de lírios.
Pouso a caneca negra na banca, deixei a flutuar o resto da espuma branca já fria da maré que tomei quente e, agora a custo, cinjo o cinto, abotoo o pano velho ao corpo, enfio os pés nos largos sapatos frios e preparo-me para sair de casa. Coloco um pé na soleira, a porta rangeu menos hoje, olho para trás e rio-me de mim e do tão pouco que necessito para ser eu mesmo.
Fecho a porta, desloco o ferrolho e nem fecho à chave, limitando-me a esconder dentro do espanta espíritos o meu tesouro.
Visto o nevoeiro e saio para a rua.
O estômago ronca um pouco, receoso que não o trate tão bem hoje, mas a corpusculidade que volita traz odores de pão quente, e isto parece bastar para lhe apaziguar a dor no odor.
Umas mãos cheias de passos levam-me rápido à entrada da padaria.
Vejo que há funcionária nova atrás do balcão, bato à montra, ela olha em redor e sem nada ver fita perplexa a porta à espera de alguém que entre. Nada.
Bato novamente, desta vez dando um pouco mais de força aos nós dos dedos, a rapariga assusta-se e pelo postigo que separa o balcão da cozinha espreita uma senhora, mais velha, que sorri.
Dá-lhe um toque nas costas e pede-lhe, que é como fala quem manda, que prepare um café curto, duas tostas pequenas e a vassoura grande de ramos de giestas secas.
“Agora leva isso lá fora”, sem que a rapariga percebesse para quê e para quem ia levar um pires com uma chávena de café, duas tostas pequenas e aquele travesso pequeno de vassoura velha que nunca encontrava no mesmo sítio. Quando a porta automática se abre ao sentir a presença da funcionária, dispo o nevoeiro que me escondia do olhar dos outros, deixo-o pendurado no ar e é aí que, coitada, a rapariga dá um grito e do repentino gesticular sobram apenas as tostas na minha mão, a vassoura que evito cair com o pé no ar e um pires e chávena partidas, com o café fumegante a arrefecer chateado nas pequenas pedras de calçada portuguesa.
Há risos, meus e da senhora lá dentro do postigo que, vista agora, parece ser um troféu de caça animado, sorridente, e mais vivo, como vivos ficam os que são caçados e pescados no desporto pueril da humanidade cingida à egosfera. Peço-lhe desculpa, as brincadeiras são engraçadas apenas e quando todos riem, mas no susto despreparado da moça custa-me o agora soluçar pela chávena partida e o café derramado, a meus pés. Ofereço-lhe ajuda ao tapar com o nevoeiro os cacos e o café e a permitir-me colocar-lhe a mão no ombro e dizer “pronto, não chores, não é nada, volta para dentro”, um pouco entristecido pela falta do café, quente e envolvente, a rilhar as tostas pequenas que durarão uma manhã inteira, pelo menos até o Sol romper a neblina e vier dar luz à luz que se esconde por detrás de mim. Agarro a vassoura, começo a varrer as mesmas folhas de sempre, Outonos diferentes, mas árvores iguais. Mantenho o cuidado de, ao ver alguém, cobrir-me com o nevoeiro para que não me vejam e pensem ser normal, este frio, este calor, a palete de cores mornas e arrefecidas pelo silêncio, pela solidão, pelos cantares confusos dos pensamentos não sabidos pensar e ao verem admiradas o volitar sereno das folhas multicoloridas pensem, porque o ser humano é desatento: “isto é apenas o vento”.
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