terça-feira, 17 de maio de 2016

CONTRADIÇÕES

REGINA SARDOEIRA 
Hoje, decididamente, experimento o poder agónico da página em branco. Quero escrever, mas não me ocorre um tema exclusivo, como se as ideias e as palavras se digladiassem, a um ponto tal, que a si próprias se vão neutralizando. E não será afinal, essa, a verdadeira essência - se chegar a sê-lo - do tempo que vivemos? 

Ontem, detive-me umas horas, numa esplanada (chamemos-lhe assim), praticamente sobre uma das ruas do centro da cidade de Amarante. A tarde estava amena, estival, o ambiente, caloroso e uma verdadeira avalanche de seres humanos ia passando à minha frente. Muitos a pé, outros de carro, ora subiam, ora desciam e eu, sentindo-me, ao mesmo tempo, deslocada e harmoniosamente inserida no todo, observei atentamente aquele fluir. 

No café, ao lado, assistia-se a um jogo de futebol. De vez em quando muitos brados exaltados, uniam-se num trovão sonoro e percebi que eram os golos ou as investidas da equipa que, naquele dia, certos adeptos queriam ver ascender à vitória. E, de um momento para o outro, eu, que nada costumo ter a ver com semelhantes manifestações, vi-me envolvida numa celebração apoteótica na qual se festejava a conquista do título de campeão por uma das grandes equipas portuguesas! 

Foi um momento verdadeiramente inédito para mim e não o repudiarei enquanto experiência. Experiência racional, chamemos-lhe assim, já que, do ponto de vista emocional, nem a música, nem os estouros dos foguetes ou o balançar de bandeiras e cachecóis e o júbilo da multidão tiveram poder para me provocar qualquer frémito de entusiasmo. E estar ali e não ser parte do todo, já que o motivo da celebração me era absolutamente exterior, constituiu uma experiência inédita. 

Percebi então que não basta o estridular eufórico da multidão, ou os ritmos vibrantes ou as cores vivas, para engendraram o entusiasmo, que é necessário saírem do íntimo as ondas e os eflúvios que possibilitarão a festa e o excesso. Mas fui capaz de perceber o ritmo excessivo da festa e soube que aquele banho de múltiplas algazarras deu sentido à vida dos que assim celebraram e permaneceu até hoje, e mais além, para desanuviar os dias cinzentos que, inevitavelmente, a rotina cria. 

Pouco importa o sentido ou a relevância do objecto a celebrar: não há dúvida que os homens necessitam de sair da esfera comum do seu quotidiano e rejubilarem durante umas horas para regressarem ao ritmo normal com uma nova energia. Estes lapsos de tempo, que cortam abruptamente o esquema da sobrevivência e lançam as mentes mais para além podem ter um cariz profano, como foi o caso da festa que ontem observei. Mas representam exactamente o mesmo se os motivos forem de índole espiritual ou religiosa. 

A unidade das sociedades e do próprio homem individual surge, deste modo, carente de uma dicotomia: para se sentirem unos, os indivíduos necessitam de, periodicamente, abandonar a pose séria e lúcida e deixarem -se penetrar por fluxos irracionais. Essa mesma irracionalidade permite-lhes suportar o peso do tempo, a responsabilidade racional que lhes conferem um estatuto superior. Sem acederem periodicamente a esta profunda contradição a integridade e a unidade do indivíduo e do todo social estilhaçar - se- ia irremediavelmente. 

E eis o homem.

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