terça-feira, 27 de junho de 2017

NOITE E NEVOEIRO, DE ALAIN RESNAIS (1955) – A BIPOLARIDADE DOS ESPAÇOS

ANABELA BRANCO DE OLIVEIRA
Noite e Nevoeiro (Nuit et Brouillard) foi encomendado a Alain Resnais pelo Comité de História da Segunda Guerra Mundial para assinalar o décimo aniversário da libertação dos campos de concentração (Auschwitz foi libertado a 27 de janeiro de 1945). É uma curta-metragem documental, um projeto de equipa entre Alain Resnais, Jean Cayrol, escritor sobrevivente dos campos de concentração, que escreveu o texto, declamado no filme por Michel Bouquet, e Hanns Eisler, que compôs a banda sonora. Noite e Nevoeiro - Nacht und Nebel em alemão – é o nome do decreto nazi de 7 de dezembro de 1941 que ordenava a deportação dos “inimigos do Reich”. Para os nazis, os deportados que enchiam os vagões de mercadorias com destino aos campos de concentração eram os NN (Nacht und Nebel).

Noite e Nevoeiro é um documentário de imagens, espaços e objetos. As imagens são provenientes de múltiplas fontes: fotografias e documentos comprovativos existentes nos arquivos nazis, pequenos filmes a preto e branco realizados por oficiais das tropas aliadas aquando da libertação dos campos de concentração polacos e holandeses e imagens a cores filmadas por Alain Resnais nos campos de concentração de Auschwitz e Maïdanek.

O choque entre as imagens coloridas, que mostram a paisagem verdejante à volta do campo de concentração deserto, e as imagens de violência e horror, ora facultadas pela montagem ora pelo próprio texto de Jean Cayrol, está presente desde o primeiro momento e paira sobre todo o filme alertando para os perigos do esquecimento e para a banalidade do mal.

A câmara só se mexe, em lentos travellings, nos espaços vazios, reais e vivos. Espaços vazios do homem, do ser humano. Nesses lentos travellings, tudo é vazio, imóvel e silencioso porque retrata o vazio, a condenação, a imobilidade e a ausência de todos os que por ali passaram.

O percurso pelos campos do presente é um travelling subjetivo dos ausentes, dos que, no sofrimento da separação e da dor, não olharam para a quietude dos campos, dos ausentes porque não sobreviveram! É o travelling de algo que parece, hoje, inimaginável!

Noite e Nevoeiro é um documentário que grita com um imenso diálogo entre imagem e som: as imagens de arquivo são datadas e localizadas mas a música de Hanns Eisler dá-lhes uma extensão intemporal e universal. Entre a imagem e a música, um choque de proporções: quanto mais violenta é a imagem mais leve é a música. A imagem cria um choque visual mas a música dá-lhe uma dimensão espiritual porque a imagem é documento e a música é poesia. A música projeta a necessária reflexão que sobrevive ao horror.

A montagem de Noite e Nevoeiro é a orquestração do horror: fria, sóbria, sem cólera, com um sarcasmo urgente. Com um sarcasmo que denuncia a banalidade do mal – os estilos arquitetónicos dos campos, os objetos e os contrastes da futilidade, a vida mundana dos comandantes e a total ausência de remorso e de responsabilidade.

As imagens das montanhas de óculos, pentes e cabelos (o monte interminável de cabelos é das imagens mais impressionantes no filme), são apenas vestígios que denunciam a monstruosidade mas que são incapazes de exprimi-la totalmente. O plano ilimitado dos cabelos, um mar ilimitado, um plano que se prolonga no domínio de uma quantidade infinita e que se esmaga no detalhe dos pelos que saem dos blocos de tecido, define o grito da não- aceitação, o grito do não esquecimento.

Noite e Nevoeiro não é a denúncia da morte. É o grito de alerta para o futuro. O esqueleto dos fornos crematórios, o silêncio dos campos vazios, a inutilidade dos carris cheios de ervas denunciam uma eterna imobilidade. Mas nada está parado: o contraste entre a cor e o preto e branco, entre o espaço e as imagens de arquivo são um intenso alerta contra todas as noites e todos os nevoeiros que podem sempre cair sobre um terreno nascido para receber o sol e a paz.

Noite e Nevoeiro é um filme necessário e urgente. É a imagem da intolerância, da desumanidade, da banalidade do mal e da organização da barbárie.

António Crespi, docente universitário, declarou, a propósito da plantação, no Jardim Botânico da UTAD, em março de 2014, de uma das “filhas” do carvalho que ainda hoje existe à entrada do campo de Auschwitz- Birkenau:

“É uma forma de, neste paralelo, vincarmos a diferença entre um lugar que fica para sempre associado ao ódio e à morte, e este outro, que é um espaço de tolerância, de conhecimento. De vida, no fundo”

As palavras de Jean Cayrol, nas sequências finais do documentário, são um enorme grito de alerta – “O crematório está fora de uso. Os artifícios nazis estão ultrapassados. Nove milhões de mortos assombram esta paisagem. Quem vela este estranho observatório para nos prevenir da chegada de novos carrascos? Terão eles uma cara diferente da nossa? Algures, entre nós, ainda há kapos afortunados, chefes convertidos, denunciantes desconhecidos. Há todos os que não acreditaram, ou só de vez em quando. Estamos cá nós, que olhamos estas ruínas como se o velho monstro concentracionário estivesse morto sobre os escombros, que fingimos retomar a esperança perante esta imagem que se afasta, como se nos curássemos da peste concentracionária, nós que fingimos acreditar que tudo isto pertence a um só tempo e a um só país e que não pensamos em olhar à nossa volta e que não entendemos que se grita infinitamente.”

Não esqueçam nunca esta mensagem final porque, da aparente imobilidade dos espaços e dos instrumentos, da aparente calma das ervas nos carris desativados, da aparente banalidade de pequenos abusos, desrespeitos, racismos, estereótipos, inflexibilidades, ódios e intolerâncias pode nascer a estrutura organizada do mal. E não queremos que haja um outro carvalho, à entrada de um outro campo, a testemunhar os limites da desumanidade.

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