quarta-feira, 31 de maio de 2017

VAMOS FALAR SOBRE ESCLEROSE MÚLTIPLA

VERA PINTO
Confesso que nunca fui boa com datas, para dizer a verdade sou péssima. Se não for o lembrete do telemóvel, as notificações das redes sociais, os avisos dos mediaou mesmo alguém a alertar-me, facilmente esqueço as datas. Contudo, dada a quantidade de dias comemorativos, não me posso recriminar. "Existe sempre um dia para alguma coisa" é o desabafo conformado da generalidade das pessoas quando atacadas pela celebração constante. Desde o dia do psicólogo, enfermeiro, advogado ou farmacêutico, passando pelo dia dos namorados, sem esquecer o dia da mulher, o dia do doente existe sempre algo a ser lembrado. Hoje celebra-se o dia de uma doença crónica que pouca gente conhece. Estou a falar de esclerose múltipla. Pessoalmente considero importante que “haja sempre um dia para alguma coisa”, isto porque encaro como uma forma de sensibilização para os diversos temas, seja ele educativo, lúdico ou informativo. Muitos de vocês devem estar a perguntar-se “o que é a esclerose múltipla?”. Trata-se de uma doença sobre a qual existe um enorme desconhecimento, por isso nada melhor que aproveitar o dia 31 de Maio para aprender um pouco mais acerca dela. A esclerose múltipla é uma doença autoimune que afecta o cérebro, nervos ópticos e a medula espinal, ou seja, o sistema nervoso central. Isto acontece porque o sistema imunológico do corpo confunde células saudáveis com "intrusas” e ataca-as causando lesões. O sistema imunitário do doente destrói a bainha de mielina que oferece protecção aos nervos. Os danos à mielina causam interferência na comunicação entre o cérebro, medula espinal e outras áreas do sistema nervoso central. Esta condição pode resultar na deterioração dos próprios nervos, num processo potencialmente irreversível. Ao longo do tempo, a degeneração da mielina provocada pela doença vai causando lesões no cérebro, que podem levar à atrofia ou perda de massa cerebral. Os sintomas variam amplamente, dependendo da quantidade de danos e os nervos que são afectados. A esclerose múltipla caracteriza-se por ser uma doença potencialmente debilitante. Pessoas com casos graves de esclerose múltipla podem perder a capacidade de andar ou falar claramente. Nos estágios iniciais da doença, a esclerose múltipla pode ser de difícil diagnóstico, uma vez que os sintomas aparecem com intervalos e o paciente pode ficar meses ou anos sem qualquer sinal da doença. A esclerose múltipla atinge cerca de 2,5 milhões de pessoas no mundo. Os tratamentos podem ajudar a controlar os sintomas e reduzir a progressão da doença, mas a doença não tem cura. Apesar deste terrível cenário desistir não é opção. Viver com esclerose múltipla é viver com a incerteza múltipla. “Planear algo é sempre complicado” confessam os doentes, mas pensando bem existirá alguém com uma certeza absoluta?

CHRIS CORNELL

PAULO SANTOS SILVA
Não será um dos nomes mais conhecidos da cena musical. As bandas de que foi vocalista, também não o serão certamente, no sentido do que é mais comercial em termos musicais. 

Apesar disso, não deixa de ser mais uma grande perda no contexto da música pop contemporânea.

Chris Cornell, nome artístico de Christopher John Boyle, foi considerado um dos fundadores do movimento Grunge, que teve o seu expoente máximo em Kurt Cobain e na sua banda, os Nirvana.

Nascido em 20 de julho de 1964, na cidade americana de Seattle, deixou-nos no passado dia 18 de maio após mais um concerto de uma das bandas de que era vocalista, provavelmente a mais conhecida delas – os Soundgarden. Segundo a Associated Press, Chris Cornell suicidou-se por enforcamento, na casa de banho do quarto de hotel onde se encontrava. 

Sendo o vocalista de bandas como os Soundgarden, os Temple of The Dog e os Audioslave, isso não foi obstáculo a que tivesse editado cinco álbuns a solo, entre os anos de 1999 e 2015. Era famoso por ter uma extensão vocal de quatro oitavas, o que corresponde a dizer que tinha uma extensão vocal que lhe permitia cantar todas as notas de um qualquer teclado. 

Em 2007 lançou o single "You Know My Name", música que foi tema do filme 007 - Cassino Royale, tornando-se o primeiro cantor americano a gravar o tema principal de um filme da série 007. A canção vendeu 3,5 milhões de cópias digitais.

Filho de um pai farmacêutico, católico e de uma mãe contabilista, judia, a infância e a juventude de Chris Cornell foi tudo menos fácil. Depois da separação dos pais, Chris e os irmãos adotaram o nome de solteira da mãe – Cornell. Durante a adolescência, além de uma depressão severa, Chris teve acesso e usou diferentes tipos de droga até se dedicar à música. 

O primeiro instrumento que aprendeu foi o piano, mas iniciou sua carreira como baterista na banda Jones Street Band. No início dos anos 80, Cornell era membro de uma banda de covers (nome que se dá às bandas que tocam músicas de outras bandas) chamada The Shemps. Esta banda, tinha Hiro Yamamoto como baixista. Depois de Yamamoto deixar os The Shemps, a banda recrutou o guitarrista Kim Thayil. Cornell e Yamamoto continuaram em contacto e depois que os The Shemps terminaram, começaram a formar uma nova banda juntos, trazendo Thayil para se juntar a eles. Estavam, assim, lançadas as bases para o nascimento dos Soundgarden. No início da banda, Chris Cornell tocava bateria e cantava. Após a entrada de Scott Sundquist, mais tarde definitivamente substituído por Matt Cameron na bateria, Chris dedicou-se em exclusivo à parte vocal. Os Soundgraden tiveram um período de inatividade de 12 anos, após os quais se voltaram a reunir, tendo gravado temas que fizeram parteda banda sonora de filmes como Os Vingadores e Homem de Aço.

Chris Cornell era um dos herdeiros vivos do Grunge e, tal como outros, entendeu por fim à sua vida. Só ele saberá os motivos que o levaram a tomar esta decisão algumas horas depois de mais um concerto. A discussão em torno do suicídio, é e será sempre a mesma. É um ato de coragem ou um ato de covardia? Confesso que tive esta discussão por diversas vezes e nunca a mesma foi conclusiva. Se calhar nunca vai ser, visto que facilmente se encontram argumentos a favor de uma e outra teoria. Se calhar vai ser sempre uma questão de perspetiva, em tudo idêntica à teoria da garrafa – para uns, está meio cheia, para outros, está meio vazia.

Deixo-lhe, como sugestão de audição, a versão acústica do tema “Nothing Compares To U” da autoria do, também já desaparecido, Prince!

PARTIDOS POLÍTICOS



RUI SANTOS
Os partidos políticos são os principais actores da maioria das democracias. Organizados em torno de ideologias, procuram alcançar os seus objectivos através, por exemplo, da presença nos parlamentos. Como tal, a liberdade de associação é um dos direitos humanos mais importantes para eles e está consagrada na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nomeadamente no seu artigo 11.º:

1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de reunião pacífica e à liberdade de associação, incluindo o direito de, com outrem, fundar e filiar-se em sindicatos para a defesa dos seus interesses.

2. O exercício deste direito só pode ser objecto de restrições que, sendo previstas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros. O presente artigo não proíbe que sejam impostas restrições legítimas ao exercício destes direitos aos membros das forças armadas, da polícia ou da administração do Estado.

Na sua jurisprudência, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem estabeleceu que aquele direito também se aplica aos partidos políticos. O direito à liberdade de associação permite a sua constituição e actividade partidária. De facto, os partidos políticos estão abrigados pela protecção especial nos termos do artigo 11.º e gozam de um nível de proteção maior do que outras associações. Tal acontece porque, de acordo com o tribunal, os partidos políticos são essenciais para o funcionamento da democracia.

Numa sociedade democrática, o Estado não prescreve uma única visão política para a população. Pelo contrário, é a essência da democracia que permite que os mais díspares valores e opiniões políticas sejam debatidos. Afinal, o pluralismo é uma das características fundamentais de uma sociedade democrática.

Um outro papel importante dos partidos políticos é proporcionar indivíduos para os diferentes cargos políticos. Os partidos políticos podem assim, uma vez que os seus membros são investidos nas funções políticas em virtude de um prévio escrutínio democrático, exercerem o poder político e terem uma palavra a dizer sobre a forma de governação. Devido a este importante papel reservado aos partidos políticos na democracia, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos considerou que apenas razões de tal forma convincentes e imperativas podem justificar restrições à sua criação e ao seu funcionamento. Os Estados democráticos nunca permitiram a interferência na existência e actividade dos partidos políticos? Bem, em condições muito estritas, isso pode ser possível. Em vários casos, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos deixou explícito que em uma democracia não há lugar para os partidos políticos que tenham como propósito prejudicar a própria democracia. Embora os partidos políticos possam ter diferentes pontos de vista sobre a forma como os problemas sociais devem ser abordados, ou sobre como um país deve ser governado, a maioria deles apoia as bases que estão na origem da democracia. No entanto, a ideologia ou actividade de alguns partidos podem ser contrárias aos princípios democráticos. Uma vez que os partidos políticos podem exercer poder político real, as suas actividades podem, portanto, apresentar um verdadeiro perigo para a democracia. Por essa razão, o tribunal considerou que os Estados podem por vezes, e em condições muito rígidas, restringir os direitos dos partidos políticos a fim de proteger a democracia. Essas medidas podem consubstanciar-se, por exemplo, na recusa da inscrição de um partido político num acto eleitoral. Um impedimento deste tipo será a medida mais extrema que um Estado poderá tomar. Todavia, uma proibição referente à actividade de um partido político pode representar, de alguma forma, um paradoxo. Por um lado, os partidos políticos são essenciais para o funcionamento da democracia; gozam de salvaguardas máximas em relação à sua liberdade de associação. A este respeito, deve-se ter presente que conceder muito poder a um Estado pode contribuir que, mais tarde ou mais cedo, o autoritarismo surja como característica desse mesmo Estado. Mas, por outro lado, as restrições às vezes podem ser necessárias para a democracia ser protegida. Veja-se o caso da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos a respeito deste dilema.

Na década de 1990, o partido turco Refah Partisi tornou-se assunto de debate porque rejeitou a organização laica do estado turco. Em vez disso, o partido acreditava que a Turquia deveria ser governada por um regime baseado na lei islâmica da Sharia. O Refah Partisi era um partido popular e que tinha um número significativo de cadeiras no parlamento turco. Contudo, o tribunal constitucional turco descobriu que o objetivo do partido era incompatível com a noção de laicismo e que esta era uma característica fundamental da democracia turca. Por conseguinte, o tribunal constitucional considerou o partido inconstitucional e proibiu-o. O Refah Partisi recorreu então ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos alegando que a proibição era uma violação do seu direito à liberdade de associação e que um regime democrático não é incompatível com alterações na organização do Estado. O tribunal, no entanto, considerou que um partido político é protegido pelo artigo 11.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos sob duas condições. Em primeiro, os meios utilizados pelo partido para realizar seus objectivos políticos devem ser legais e democráticos. Como resultado, os partidos que advogam o uso da violência para provocar mudanças na lei ou na estrutura de um Estado não estão protegidos pelo artigo acima referido. Em segundo lugar, as mudanças propostas pelo partido devem ser compatíveis com o conceito de sociedade democrática, isto é, com o pluralismo e a não discriminação. No que toca ao Refah Partisi, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos concluiu que a sua finalidade – construir um regime baseado na lei da Sharia – era incompatível com o conceito de sociedade democrática. O tribunal observou igualmente que o facto do Refah Partisi possuir um número significativo de cadeiras no parlamento turco significava que o partido tinha oportunidades reais para pôr o seu plano em prática. Sendo assim, concluiu que a proibição do partido era necessária para a continuação da existência de uma sociedade democrática. Desta forma, fica patente como a democracia europeia criou mecanismos de auto-protecção para evitar deslizes que possam ocorrer e ponham em causa a sua continuidade. Confie-se nas instâncias judiciais para a manutenção de algo que está presente na identidade europeia: a democracia.

FESTA: UM PASSAPORTE OBRIGATÓRIO NA VIAGEM CINEMATOGRÁFICA

ANABELA BRANCO DE OLIVEIRA
A celebração é um momento fundamental e inevitável na vida de todos os povos. A celebração é a festa como manifestação individual, coletiva, espontânea, programada, exigida, interrompida. E a festa é um percurso criativo no olhar de Arthur Duarte, Cottinelli Telmo, Emir Kusturica, Federico Fellini, Francisco Ribeiro, Jacques Tati e Sérgio Tréfaut num processo narrativo estruturado em memórias recriadas.
Emir Kusturica em Promise Me (2007) projeta uma organização coletiva de uma festa individual: o regresso do neto à aldeia exige o ritmo frenético dos músicos e das danças, num poderoso, subversivo e violento contraste com uma outra manifestação coletiva vinda de um objetivo individual: um funeral. A sequência do encontro das duas manifestações na mesma estrada, o contraste dos sons e dos rituais, as queixas do representante religioso e as exigências do avô definem a inevitabilidade surrealista de um indiscutível realismo. 
A força simbólica dos instrumentos de corda e de sopro dos Balcãs, concretizado na banda No Smoking Orchestra é um tema recorrente e estrutural em toda a obra de Kusturica, no acompanhamento tornado coletivo de situações marcadamente individuais. Na sequência inicial de Underground (1995) os músicos acompanham Blacky e Marko e celebram a entrada de Blacky no Partido Comunista; a cena de pancadaria na sala de bilhar, numa cave de Belgrado, é sempre acompanhada pelo grupo de trompetistas; na cave de Marko, a celebração do 3º aniversário da morte de Eva, projeta o fervor das canções de resistência de homenagem a Tito, sempre com acompanhamento dos trompetistas e dos mesmos ritmos. Em Gato Preto, Gato Branco(1997), a visita do neto ao avô hospitalizado subverte todas as regras. A banda de trompetistas e guitarristas instaura um clima de festa no qual todos acabam por alinhar.
Os casamentos são o exemplo individual de obrigatoriedade coletiva. Proliferam no olhar cinematográfico dos realizadores escolhidos. Fellini projeta o retrato social, a paródia, a caricatura, a encenação burlesca da personagens e as exigências da pose fotográfica, na sequência do casamento da Gradisca em Amarcord (1973). Emir Kusturica, num registo marcadamente fellinesco, constrói casamentos em Underground(1995), Gato Preto, Gato Branco (1997) e O Pai foi em Viagem de Negócios (1985). O Pai foi em Viagem de Negócios projeta um casamento cheio de mistérios, transgressões, adultérios e discursos. Underground define, no casamento da cave, a união de dois jovens cuja existência se constrói através da imagem platoniana do mundo. O casamento de Jovan representa a continuação dos rituais coletivos na cave, a fantasia de uma noiva suspensa no ar, através do canhão de um tanque militar, com véus e rendas a esvoaçar, filmada em contre-plongée ao ritmo dos trompetistas. Os músicos animam a festa colocados numa estrutura rotativa, em círculo, num plano que se repete durante uma festa popular em Gato Preto Gato Branco, onde os músicos tocam, em círculo, amarrados ao tronco de uma árvore.
Os santos populares, uma outra celebração da exuberância das colheitas, define o percurso cinematográfico das famosas comédias do Estado Novo, nomeadamente A Canção de Lisboa (Cottineli Telmo 1933), O Pátio das Cantigas (Francisco Ribeiro 1942) e O Costa do Castelo (Arthur Duarte 1943). As marchas populares, os bailes de bairro, os namoros e as canções preenchem a decoração minuciosa dos “pátios” lisboetas. EmO Pátio das Cantigas, o pátio do Evaristo é sobretudo uma arquitetura, uma confluência de janelas e escadas, uma espécie de Janela Indiscreta (Hitchcock, 1954) que engendra todo um jogo de comunicação entre as pessoas, toda uma cumplicidade tecida por e através de um espaço específico. Pedaços de Lisboa, os pátios são, ao mesmo tempo, um espaço arquitectural e um produtor de narrativas porque a “comédia à portuguesa” é também a imagem de uma cidade, apaixonada pelas casas de fado (outros espaços de celebração) e pelas tabernas, a imagem de uma cidade de bairros típicos: o Castelo, a Estrela, o Bairro Alto e Sete Rios.
As marchas populares estabelecem, nestas comédias, o universo de festas quase sempre focadas em contre-plongée. Projetam o universo popular e a identificação absoluta com o público. Durante as marchas, e pelas marchas, todos põem fim às suas quezílias e discussões, abraçam-se perante o fogo de artificio e trabalham em conjunto para a organização das festas dos santos populares que duram até às sequências finais de A Canção de Lisboa O Pátio das Cantigas.
Jacques Tati em Jour de Fête (1947) projeta a preparação, a organização, a decoração, a chegada dos artistas, o carrocel, as vivências da festa na aldeia com a banca de tiro, a banda de música, o carteiro (Tati), a velhota, o jogo das personagens, planos marcantes de movimentação individual e coletiva à volta da festa.
Sérgio Tréfaut em Os Lisboetas (2004), documenta os momentos festivos dos imigrantes com um baile de forró: a música, as luzes e os jogos eróticos definem um longo plano sequência que protagoniza a reflexão sobre o valor da festa no percurso da integração, momento chave da estruturação narrativa deste documentário.
Fellini define a inevitabilidade das festas populares, das danças e das manifestações musicais em Roma, Amarcord e Otto e Mezzo com o circo, o jogo e a magia dos músicos, bandas e sopro que animam as ruas e as festas populares e com as danças espontâneas e resistentes dos refugiados sérvios que chegam em E la nave va.
Há festa no cinema. A festa é o passaporte obrigatório no percurso identitário do herói. Estabelece a inevitabilidade da arte na vida humana e, por isso, o cinema não a esquece. E assim, o diálogo entre o cinema e a festa é, sempre, uma mistura subtil entre realismo e surrealismo.

terça-feira, 30 de maio de 2017

A TERCEIRA IDADE... OU A OITAVA?

REGINA SARDOEIRA
Hoje decidi escrever sobre a terceira idade. E logo me divirto interiormente porque, para ser exacta, não deverei falar de "velhos" ou "idosos" mas de...crianças entre os 3 e os 6 anos ! 
O critério para aferir os ciclos da vida não será, portanto, o comum, aquele, segundo o qual, só existem três idades - a infância, a juventude e a velhice -, mas outro, muito diferente, que leva em conta inúmeros cambiantes, crises e soluções de crises e novas crises e novas soluções, até um momento, desconhecido e variável, de indivíduo para indivíduo em que o movimento cessa de vez. 
Como as idades são oito - vou levar em conta a classificação do psicólogo Erik Erikson - a terceira idade corresponde, pois, à infância e traduz-se na dialéctica - Iniciativa / Culpa 

Se há alguma coisa que distingue a criança nessa fase é a iniciativa. Especialmente durante as brincadeiras, ela descobre o papel mais significativo para si e representa-o. A criança precisa identificar e projectar o seu papel no mundo.

A rivalidade e os ciúmes também aparecem nessa fase. A criança quer ser tratada como alguém especial e rejeita qualquer deferência da mãe pelos irmãos ou outras pessoas. Se não receber um tratamento relativamente privilegiado, desenvolve a culpa e a ansiedade.
Este sentimento, se não resolvido, reflectir-se-á nas etapas seguintes. Porém, se a criança puder sanar os conflitos, o seu desenvolvimento prosseguirá; e novas crises e novos desafios surgirão, até atingir o topo da tabela - não o fundo, entendamos-nos! - e arribar à oitava idade, a partir, mais ou menos dos 60 anos, em que a dialéctica oscila entre a Integridade e o Desespero

A última idade da vida pode ser uma etapa serena ou cheia de ansiedade. Tudo depende de como foram vividas as idades anteriores. Uma pessoa idosa deve ser capaz de fazer uma avaliação sensata da sua época e da sua vida, onde prevaleça o reconhecimento da realidade e a compreensão do mundo em que vive.

É, pois, acerca desta idade que me propus escrever hoje, não a terceira mas, afinal, a oitava, que pode ser um momento óptimo da vida, caso a pessoa tenha vivido em pleno as etapas anteriores, e consiga olhar para si e para o mundo circundante com optimismo e confiança. 

Mas, se me ocorreu abordar este tema foi na exacta medida em que, ultimamente, me venho confrontando com notícias ou pequenas alusões acerca de pessoas de idade, mais ou menos avançada, que se comportam de um modo tido como impróprio apenas por serem...idosas! 

É o caso de uma senhora de 90 anos que, ao ser convidada para um cruzeiro, vai a uma loja e compra um biquíni vermelho com pintas brancas - muito interessante e adequado ao corpo - mas cuja fotografia, tornada pública pela dona da loja com a anuência da cliente, se torna imediatamente "viral" (reproduzo o adjectivo idiota entre aspas, como vêem, pois o que queria mesmo dizer é que foi extremamente observada e comentada.). Mas porquê? 

É que uma senhora de 90 anos que decide ir à praia de biquíni, ainda por cima vermelho com pintas brancas, é um fenómeno, um caso insólito... As senhoras de 90 anos não devem mostrar assim o corpo, devem tapar-se dos pés à cabeça (ou vice-versa) para não chocarem a pseudo-estética que desfila nas praias deste mundo! E, de preferência, devem ficar em casa, curtindo a solidão e esperando a morte! 

Ou então, aquelas senhoras - também já na oitava idade - que criticam uma conhecida que, segundo elas, esquecida que já não tem 20 anos, continua a vestir-se jovialmente e a, desse modo, caminhar pelas ruas da cidade. Ou ainda, dando um salto vertiginoso, a mulher do presidente francês, também na oitava idade, enquanto ele está no dealbar da sétima, e as reticências acerca das possibilidades de vigor sexual numa relação tão desigual na cronologia. 

Pensei então em mim; e confesso não saber em que idade hei-de situar-me e o que fazer para estar à altura das exigências do mundo que me cerca. 

Quando analiso a sequência do desenvolvimento apresentada por Erikson, ora me situo na quinta idade - Identidade /Confusão de papéis – adolescência, período caracterizado por duvidar de tudo em que acreditava anteriormente, e dos conhecimentos, e das habilidades e mesmo das experiências. Como uma adolescente, preocupo-me com a imagem que passo para os outros, estou em constante conflito entre o que fui até agora e o que serei no futuro, ora, me coloco na sétima idade - Generatividade / Absorção em si mesmo - e desejo enquanto pessoa madura ser produtiva e orientar as novas gerações. E, nesta fase onde, de vez em quando, me situo, se tal não ocorre, sinto-me num processo de estagnação pessoal ligado ao sentimento de não me transcender, de não ter qualquer interferência sobre o futuro: um sentimento de impotência.

Oscilo, pois, entre dois ciclos cronológicos, ambos repletos de energia e de contradição, ambos, afinal, em choque com o que (talvez!) a sociedade espera de mim. E não, decididamente, não encontro, em mim' a menor vocação para ser (ou vir a ser) idosa! 

Por isso, não compreendo os que criticam ou se admiram com a senhora de 90 anos e o seu biquíni vermelho com pintas brancas, ou os que observam, repugnados, as idosas que se esqueceram que já não têm 20 anos ou os que especulam acerca das relações sexuais do casal presidencial francês. 
Erikson sustenta que há oito idades na vida do homem; eu respeito -o: mas atrevo-me a garantir que há uma série delas, entre essas tais, que o estereótipo que traçou fronteiras entre idades é, sem dúvida, o responsável por tantas amarguras decorrentes do passar do tempo. Sim, é verdade, os anos somam -se e 60 são três vezes 20; sim, o rosto muda, e o corpo e os órgãos; sim, parece que a morte chegará um dia. Mas nenhuma destas verdades exactas pode ser aferidora do que é ou não próprio de quem apresenta vincos no rosto e ainda crê no futuro e em si.

PEQUENA ESTÓRIA DO MELRO

BRUNO SANTOS
O pequeno melro cresceu em cativeiro, dentro de uma pequena gaiola que tinha um daqueles tubos feitos de rede, que ele subia e descia repetidamente. Compulsivamente. Sem voar.
Certo dia veio um homem e levou-o para sua casa, onde tinha uma outra gaiola, mas muito grande, sem tubo, onde cabiam 4 ou 5 homens corpulentos. O melro, agora um pouco mais crescido, gostava mais dessa sua prisão nova, por ser grande e lhe permitir pequenos rasgos de voo, de um pouso para outro.
Todos os dias o homem vinha com uma malga de comida e outra de água fresca, abria cuidadosamente a porta da cela, metia-se lá dentro e voltava a fechá-la, sempre com todo o cuidado para que o pássaro não escapasse.
O melro comia e bebia muito bem e vivia razoavelmente satisfeito com o seu monótono quotidiano de prisioneiro abastado, chegando mesmo a nutrir uma estranha simpatia pelo homem que o tinha cativo. Mas qualquer coisa lhe dizia que a vida guardava segredos para si desconhecidos e punha-se muitas vezes a pensar, com uma estranha futura saudade, naqueles pássaros seus irmãos que via cruzar a nesga de céu que conseguia ver da sua jaula.
Certo dia o homem veio, como sempre, trazer-lhe água e comida. Mas dessa vez não tomou os cuidados do costume, distraiu-se com qualquer coisa divina e deixou a porta aberta mais tempo do que o normal. Mais tempo do que o aconselhável.

O pássaro reparou na possibilidade.

Sentiu uma estranha energia a circular entre o exterior e o interior da sua cela, através da porta aberta. Era como um rio invisível de força, um fluxo magnético que apelava a uma memória antiga. Ténue, mas ainda presente. Não hesitou.
Um golpe de asas fê-lo atravessar a estreita abertura e elevou-o ao pequeno muro do pátio onde parou por um instante. Olhou para trás e pôde ver o rosto atónito do seu carcereiro, os seus olhos muito abertos pelo espanto, mas nos quais se denunciava uma secreta alegria.

- Ah, malandro! Escapaste-me!

O melro, num salto, ergueu-se ao céu infinito. Voou como nunca tinha feito nem aprendido, uma mão invisível susteve-o no vazio das alturas e ele percorreu uns bons quinhentos metros até uma grande Bétula que havia no jardim da cidade. Passadas poucas semanas morreu. Sempre vivera em cativeiro e por isso não sabia caçar nem obter sozinho o alimento de que necessitava para se manter vivo. Foi definhando até que o seu corpo se desligou dele.
Mas o Jardim, onde até então só havia pombas velhas e gaivotas famintas, é hoje um imenso viveiro de lindos melros que rasgam o ar de árvore em árvore e deixam no azul do céu os traços eternos da Liberdade

QUANDO O MUNDO NOS MORRE

LUÍS CUNHA
Vivemos no mundo do mesmo modo que o mundo vive em nós, ligados de forma tão entranhada que nenhuma fronteira nos separa, fazendo de sujeito e objeto um só. Não se trata sequer de uma aliança mas antes de uma condição necessária ao Humano; de tal forma necessária e indispensável que fica em nós como uma pele, uma parte do que somos e que só nos dói quando dela somos amputados. Nenhuma situação revela melhor esta nossa fusão com o que está fora de nós senão a situação extrema, e em si mesma impensável, em que o nosso mundo nos morre diante dos olhos. Não, um desgosto só não chega, nem mesmo a morte dos que nos são próximos se assemelha à perda absoluta de que falo. Quando essa perda impensável nos assalta, quando vemos cair, uma a uma, todas as muralhas que nos protegem, descobrimos uma outra dimensão na solidão, já não a experiência banal de estarmos em ninguém que nos apoie ou defenda. Trata-se de algo bem mais radical e profundo: é a solidão absoluta de não sermos ninguém, de nos vermos reduzidos a um suspiro caprichoso num mundo que deixou de o ser.

Quem teve a infelicidade de experimentar uma perda tão excessiva não se consola com as palavras, ainda que muitas vezes se sirva delas como denúncia e aviso. O exemplo mais antigo e mais perfeito que conheço dessa denúncia e aviso pode ler-se no Antigo Testamento, no Livro das Lamentações, onde se dá conta da destruição da cidade de Jerusalém às mãos do rei da Babilónia, Nabucodonosor, em 689 a. C. Não conheço melhor testemunho da perda e do abandono, do desmoronamento de um mundo e da desistência de toda a esperança perante os terríveis desígnios de Deus:

«O inimigo lançou mão de todos os seus tesouros. Ela [Jerusalém] viu os pagãos penetrarem no seu santuário, aqueles de quem havia dito que não entrariam na sua assembleia.

«Geme todo o seu povo à procura de pão. Troca as suas joias por víveres a fim de conservar a vida. Vede, Senhor, e considerai o aviltamento a que cheguei!»

«Jazem pelas ruas as crianças e os velhos. As minhas virgens e os meus jovens tombaram ao fio da espada. Mataste, no dia da Vossa cólera, imolaste sem piedade».

Não vivemos no mundo, o mundo está em nós, somos dele parte, do mesmo modo que ele faz de nós o que somos. Não nos apercebemos deste laço profundo senão quando o perdemos definitivamente. Resta-nos, então, a memória dos dias felizes, uma memória que só agrava o nosso sofrimento: «Nessum dolore Maggiore/che recordarsi del tempo felice/ne la miséria», escreveu Dante. Também Jeremias, a quem são atribuídas as Lamentações, o diz de forma clara:

«Nestes dias de aflição e de vida errante, lembrou-se Jerusalém das delícias dos tempos idos: agora o seu povo caiu nas mãos do inimigo sem que ninguém a viesse socorrer! Olham-na os seus inimigos e zombam da sua devastação».

Inevitável procurar uma razão, algo que explique a perda e possa apaziguar os aflitos, ingénua procura de um consolo que de nada serve quando o nosso mundo nos morre e nos mata. Onde Jerónimo viu a ira divina, justificada pelos «graves pecados de Jerusalém», outros verão infortúnio ou capricho da sorte, provação tão imerecida que no final de tudo talvez nos possamos salvar, descobrindo um caminho em que se abra um novo mundo e nova esperança.

Da Jerusalém destruída por Nabucodonosor separam-nos mais de dois mil anos. Já o mundo perdido de Stefan Zweig está bem mais perto de nós, na verdade tão incomodamente perto que sentimos que uma perda como aquela nos pode tocar a nós um dia. Um mundo inteiro, solidamente estruturado que se perdeu com um breve sopro. Um mundo de muita gente, naturalmente, não apenas de Zweig. Ao seu testemunho, lavrado em palavras tanto quanto no ato final com que pôs termo à vida, juntam-se outros testemunhos dessa perda. Mal começara o novo século e bem no centro da Europa, lá onde pulsava o seu coração, lugar de cruzamento de promessas e inquietações, tudo começa a desmoronar-se. Em breve, a força da inteligência e criatividade de homens como Sigmund Freud, Walter Benjamin, Robert Musil, Thomas Mann ou Stefan Zweig, havia de ceder à força das armas. Viena, como a Jerusalém da antiguidade, morria e levava com ela aqueles que eram parte de si, peões perdidos numa voragem de destruição que varreu também outras cidades e aldeias, não poupando novos nem velhos. Como Jerónimo, algumas das vítimas puderam servir-se das palavras para tentar dizer o indizível e também, bom era que não o esquecêssemos, para que aquela tragédia servisse de aviso a gerações futuras.

Nem todos os órfãos dessa Europa em guerra tiveram o trágico destino de Stefan Zweig, mas julgo poder dizer que todos tiveram a indesejável experiência de assistir à morte do seu mundo. Todos eles, certamente, procuraram explicação e respostas para a perda que sentiam, e, nesse transe, os que puderam procuraram novos mundos na sombra do que tinham visto ruir. Joseph Schumpeter, Karl Popper e Friedrich Hayek, todos da geração de Sweig e seus «vizinhos», todos eles exilados e em fuga da Alemanha nazi, fizeram do desespero um credo. Desconfiados das ideologias que prometiam mudar o mundo, julgaram poder regressar a uma espécie de matriz original, imaginando uma forma de conciliação com a «natureza», livre e competitiva, que contribuiu fortemente para a matriz neoliberal que hoje nos governa.

Stefan Sweig procurou outros caminhos. Exilado no Brasil, viu ali a promessa de um mundo novo que convergia fortemente com a idealização lusotropical de Gilberto Freyre. Mistura harmoniosa de raças, desconhecendo o racismo, o Brasil seria o «País do Futuro», epíteto que cunhou e que viria a definir o Brasil durante décadas. Pouco importa dizer que Zweig estava errado; assinalar que nem a ausência de racismo nem o auspicioso futuro prometido ao Brasil tinham a consistência imaginada por Zweig. Tomemos antes a sua pouco lúcida análise como expressão do desejo de reconciliação com o mundo por parte de alguém que o perdera. Na verdade, a quem assistiu à morte do seu mundo, mesmo os devaneios inconsequentes são desejos toleráveis. Vendo bem, talvez no final de tudo Zweig tenha acabado por perceber que também naquele sonho se equivocara, decidindo morrer quando percebeu que a perda que sofrera só se apagaria com a morte. Suicidou-se em 1942, em Petrópolis, sendo acompanhado nesse ato pela sua mulher. Para memória futura deixou uma última obra. Nela escreveu:

«Fui contemporâneo das duas maiores guerras. Conheci a liberdade individual em seu grau e forma mais elevados, e, depois, em seu nível mais baixo em muitos séculos. Fui festejado e desprezado, livre e subjugado, rico e pobre. Minha vida foi invadida por todos os pálidos cavalos do Apocalipse, revolução e fome, inflação e terror, epidemias e emigração».

Lemos estas palavras e sentimo-nos longe e perto de Zweig. Guia-nos a esperança de viver e morrer sem ter que experimentar, como ele, uma morte que nos mata. Porém, tememos o que lemos como uma premonição e é essa proximidade que nos atemoriza como uma sombra densa que obscurece os dias que vivemos.

segunda-feira, 29 de maio de 2017

O MILAGRE DA VIDA EM ALTO MAR

JOANA BENZINHO
Nas ilhas do Arquipélago dos Bijagós, habitadas essencialmente pela etnia Bijagó, são as mulheres que mandam. É verdade. Vive-se aqui num registo matrilinear em que são elas que decidem as colheitas, que escolhem o namorado, o marido, que decidem do divórcio, ficam com a guarda das crianças em caso de separação, tomam as decisões mais importantes do quotidiano e, claro, gerem o orçamento do lar.

Verdadeiras mulheres multifacetadas, dedicam-se à agricultura, essencialmente arroz e amendoim (mancarra), andam na apanha do cumbé (bivalve muito apreciado na Guiné-Bissau), tomam conta das crianças, pilam o arroz, vendem no mercado, fazem a lida da casa e cozinham para as famílias, normalmente numerosas que caracterizam a sociedade guineense.

Nos Bijagós, a falta de cuidados básicos de saúde é ainda mais acentuada que no continente, numa Guiné-Bissau em que a taxa de mortalidade à nascença é ainda alta e em que a esperança média de vida não chega ao meio século.

Esta semana, presenciei essa realidade ao apanhar um dos barcos que agora faz a ligação entre Bissau, a capital, e a Ilha de Bubaque, uma das mais requisitadas por turistas e viajantes de negócios que se deslocam às ilhas.

Depois de meses sem ligações, em virtude da avaria do cacilheiro que partia de Bissau à sexta e regressava ao domingo, há agora dois barcos que ligam Bubaque e Bolama a Bissau numa base regular. Até há um mês, quem queria ir ou vir destas duas ilhas, tinha que recorrer a canoas, pouco ou nada seguras para chegar ao destino, o que sucedia entre uma ou outra historia de naufrágios com fins naturalmente muito pouco felizes,

Foi num destes barcos que viajei esta semana até Bubaque para uma estadia relâmpago de menos de 24 horas, entre mercadorias e os poucos passageiros. É sempre um passeio digno de registo, com o vislumbre das ilhas de Bolama e Galinhas do nosso lado esquerdo e mais tarde as bonitas ilhas de Rubane, Canhabaque e Soga a surgirem no horizonte, quando já nos aproximamos do destino final.

No regresso a Bissau, uma jovem chegou ao barco numa ambulância do hospital local acompanhada por uma menina e de um saco de soro que foi pendurado com um cordel numa viga que segurava a lona que nos dava sombra no porão. Entre peixe em caixotes, duas cabras, um porco que quase se afogava ao entrar no barco e várias galinhas como companhia de mão, atadas em cordéis qual trela, lá seguimos viagem ainda o dia mal despontava no horizonte. Destino, Bissau, onde eu esperava chegar depois de um cochilar embalado pelas ondas e de um pouco de leitura encostada às caixas que exalavam um forte odor a peixe e a mar.

Meio caminho ainda não estava feito quando a jovem mulher do saco de soro começa a queixar-se de fortes dores e se senta no chão numa tentativa de enganar o incómodo. E é aí que somos confrontados com a eminência de um parto em alto mar. No barco, sobrelotado de passageiros para os poucos bancos corridos existentes, abre-se de repente um espaço para que a mulher possa dar à luz. Quatro outras senhoras que viajavam no barco retiraram rapidamente panos da cabeça e outros que traziam enrolados ao corpo e cobriram o chão que lhe viria a servir de sala de parto bem como o seu próprio corpo. As luvas que trazia consigo no bolso são prontamente enfiadas por uma das mulheres (na Guiné, até muito recentemente, quem não se fazia acompanhar de um par de luvas quando chegava à maternidade por norma via-lhe vedado o acesso a um parto feito por um médico e/ou parteira no hospital) , outra agarra-a pelos braços e cada uma das outras segura uma das pernas. Ela contorce-se com as dores das contrações e tem ali vários braços a tentar mantê-la na melhor posição possível para que o bebé possa nascer. Os gritos da mãe são afogados pelo barulho dos motores e pelo bater das ondas no casco e este momento, que para ela parece não ter fim, prolonga-se por uns bons 10 minutos. A filha pequena que a acompanha assiste perturbada a tudo aquilo e chora, sem perceber o que está a acontecer. Puxo-a para mim e abraça-me com a força com que normalmente só nos agarramos a quem conhecemos. O medo é muito e soluça baixinho. Engano-lhe a angústia com um pouco de pão e queijo, um bem de luxo por aquelas paragens e que lhe faz nascer um brilho no olhar.

O bebé nasce, a mão geme com dores e de cansaço. É um rapaz. Ficamos em suspenso com o seu silêncio por alguns segundos. Ele não chora, apesar de uma das mulheres entrar numa espécie de transe e começar a bater palmas ao seu ouvido. É ai que ele é levantado, abanado e sujeito a umas breves palmadas nas costas que o fazem expulsar da sua pequena boca o que quase o matava por asfixia. E então chorou a plenos pulmões e nós respirámos de alívio. Uma lâmina nova ali serve para cortar o cordão umbilical e um pouco de fio dos panos tradicionais, passado por umas pingas de soro, serve para dar um nó junto do do umbigo do bebé.

Numa enorme azafama as mulheres ajudam a mãe a restabelecer-se, limpa-se a sala de partos improvisada com lixivia dada pelo capitão do barco, e a mãe volta a receber pelo cateter o soro saído do saco atado com um cordel na viga por cima dela. O bebé fica ali connosco e recebe no pulso uma pulseira que lhe é colocada pela mulher mais velha do barco, após uma pequena cerimónia em que ata a um fio preto um “segredo” que irá acompanhar o bebé no seu desenvolvimento e protegê-lo do mal. Bem sei que os bebés quando nascem não veem, mas garanto-vos que ele tinha os olhos arregalados e parecia absorver com a maior satisfação todo aquele improviso gerado em seu redor em alto mar.

A viagem ainda durou mais uma hora e, quando chegamos a Bissau com um passageiro extra, ninguém diria que aquela mulher tinha acabado de gerar uma vida em pleno porão. Mantinha-se muito direita no barco, provavelmente atordoada com tudo o que viveu, mas com uma dignidade e uma força que me deixaram siderada.

Não pudemos atracar no porto pois o cais estava ocupado, mas sim noutro barco, o que nos exigiu algum equilibrismo para sair de um, saltar para o outro vendo o mar como pano de fundo na folga entre os dois para só depois subir para um passadiço que nos permitiria chegar a terra firme. Eu precisei de ajuda, confesso, não conseguia sair dali sozinha. A jovem mulher, por si, acho que tinha superado todos aqueles obstáculos, não a tivessem amparado quase por imposição.

Finalmente sentei-me no carro e respirei fundo. Foi uma experiência única aquela que vivi. Tomei consciência quase de imediato que tinha acabado de assistir ao verdadeiro milagre da vida ali naquela travessia marítima em que a jovem mulher que entrou fragilizada no barco, me mostrou a resiliência, a coragem, a força, a dignidade e a verdadeira raça da mulher Bijagó.

domingo, 28 de maio de 2017

QUANDO O SONHO CHEGAR A VOAR E ME ESTENDER A MÃO

MIGUEL GOMES
No momento, neste, em que sinto o vazio de não escrever, ter palavras agarradas à alma, frases inteiras entrelaçadas num emaranhado novelo, é quando desejo a simplicidade de olhar o céu estrelado, ainda que me separe dele alguns pisos e uns quantos quilómetros.

Hoje, na ausência de filosofias, vou escolher retirar do forno da vida as noites mais frias, para que possa imaginar sentar-me na beira da cama, pendendo os pés para um vazio luminoso e adormecer nesta posição, para me levantar rapidamente quando o sonho chegar a voar e me estender a mão.

Poucas luzes brilham mais que uma noite sem lua. Enquanto o vento abana as lâmpadas no coreto, há uma musica tua, que se toca, corpo e sinfonia, para lá do frio que começa a cair desamparado, entre os ombros e o cigarro. 

Sou o lume que apago, pelos degraus da justiça, ascendo à boleia, literal, da compaixão metamorfoseada em casulo, hoje a vida nasceu ao contrário, não te preocupes, novo olhar poderá ter-te, novamente, nesse lugar de ninguém onde se encontram vidas passadas, há séculos, ontem.

De onde vens tu, amálgama de gente, pelo calor acima com todo este serrado às costas? 

Quererás deslocar o mundo, para que passem por ele, sobre ele, os ecos de uma morte enunciada, enumerada, designada? 

Vales pouco mais que uma rima de gado, por isso mesmo te querem submisso, parcamente alimentado, na esperança vã de um dia despires o suor e descansares sentado na beira da cova, reles buraco que tiveste que comprar, à espera de adormeceres, de tédio, solidão ou, simplesmente, até te empurrarem com um pontapé ou uma palmadinha nas costas. 

Vai que vais tarde. 

O teu tributo será o húmus que alimentará as pastagens ainda antes de serem sementes.

Se te soubesses eterno, perene, unicidade da multiplicidade, poderias virar costas e voar, sem medo e sem olhar para trás, o teu maior segredo é seres rei e fazerem de ti cravo, com que prendem a ferradura nesse teu cavalgar de equídeo bravo, selvagem.

Não... Não acredites em mim, estou cá de passagem, sem alforge, sem bordão, sem roupa, sem viagem.

Do calor faço imaginação, pelas curvas o destino, a paisagem sobe-me à mão, a palavra instrumento que desafino. 

Pudesse o Sol subir tão alto e prolongar a sombra do futuro na fachada da minha morada, mas a minha morada é pousio que habito sem dormir, as paredes do meu quarto são as luas reunidas quando por entre serenamente movimentadas plantas te vejo sorrir.

Sigo o traço da minha mão, chamam-lhe linha da vida, por ela um ribeiro secou quando Dezembro terminou sem nunca ter Primaverado. E, pelo entardecer tardio, não tarda vou dormir, sem nunca ter acordado.

CORBYN E O REENCONTRO COM O SOCIALISMO DEMOCRÁTICO

TIAGO CORAIS
Estou a viver no Reino Unido há pouco mais de três anos e um dos acontecimentos que me marcaram quando estava aqui há pouco mais de três meses foi a campanha interna à liderança do Partido Trabalhista Britânico, em especial a inesperada candidatura e eleição de Corbyn a líder do Partido, que me FEZ REENCONTRAR COM O SOCIALISMO DEMOCRÁTICO.

Quando cheguei a Oxford, desde o início tinha como objectivo envolver-me na política Britânica, mas como estava um pouco desiludido com o “pragmatismo extremo” do Socialismo Democrático Europeu, que segundo a minha perspectiva em muitas políticas tinha desistido da sua visão de sociedade, preferi aguardar um pouco para assimilar a cultura e os valores da sociedade Britânica. Quando o Jeremy Corbyn venceu as eleições, fui uma das 15.000 pessoas que se filiaram no Partido Trabalhista nas primeiras 24 horas. Foi impressionante o número de pessoas que se juntaram ao partido na primeira semana após a sua vitória. Hoje são 500.000 membros inscritos no Partido Trabalhista, antes destas eleições o partido tinha mais ou menos 200.000 militantes e o Partido Conservador ainda hoje tem só cerca de 150.000 inscritos. Aqui costuma-se dizer que o PARTIDO TRABALHISTA TEM AS PESSOAS E OS CONSERVADORES TÊM O DINHEIRO.

Uma das coisas que me fez desde a primeira hora apoiar o Corbyn, foi a sua autenticidade e a coerência na defesa das suas ideias. Corbyn defende as políticas keynesianas , as bandeiras tradicionais do partido trabalhista, é o deputado que menos despesas requere ao Parlamento e votou mais de 500 vezes no parlamento contra as proposta do seu partido, no qual se destaca a sua votação contra as guerras do Iraque. Chegou a ser preso por se opor ao regime do Apartheid e suportar Nelson Mandela e o ANC. É um apaixonado pelos valores Humanistas e um defensor da diplomacia em detrimento das guerras, ao qual muitas vezes é mal interpretado pelos mídias e por uma grande franja do eleitorado, como um líder fraco, ou mesmo um extremista. Se eu fosse conselheiro político de Corbyn, depois do que aconteceu em Manchester, eu aconselhava-o a ter muito cuidado quando aborda esta matéria, que usasse as palavras certas e sem ambiguidade, de forma a que nem a comunicação pudesse adulterar a sua mensagem , nem confundisse o eleitorado. AUTENTICIDADE SIM, INGENUIDADE E AMBIGUIDADE NUNCA.

MARCAÇÃO DE ELEIÇÕES PARA O PARLAMENTO BRITÂNICO

Daqui a duas semanas, 8 de junho, os Britânicos escolhem nestas “inesperadas” eleições ao Parlamento Britânico os seus deputados. Theresa May defendeu que os partidos estão contra o Brexit e que por isso precisa de clarificação. Os factos não demonstram isso, ela tem uma maioria absoluta no Parlamento Britânico, o seu documento para a saída da UE foi votado, não só pelos conservadores, mas por uma grande maioria dos deputados trabalhistas, mesmo tendo sido rejeitadas todas as sugestões da oposição. Sinceramente não houve nada de novo e a verdade é que ela quis aproveitar a popularidade das sondagens que lhe davam à frente com mais de 20 pontos percentuais, para que aumentassem a sua base de apoio no Parlamento e pudesse ditar as regras “sem escrutínio do Parlamento”. O que a levou a marcar eleições foi a sua perspectiva presidencialista que ela tem da função de Primeira-Ministra, como a sua interpretação de liderança forte que quer governar sem ter que prestar contas ao Parlamento. Concluindo o motivo é a sua POUCA CULTURA DEMOCRÁTICA, QUE RENEGA O SISTEMA PARLAMENTARISTA BRITÂNICO.

MANIFESTOS ELEITORAIS

O tema quente nestas eleições será o BREXIT, mais uma vez. Os Conservadores definitivamente defendem o radicalismo do “Hard Brexit”, propondo mais uma vez a imigração líquida de 10.000 pessoas, incluindo estudantes estrangeiros que estudam nas Universidades Britânicas. Já o Partido Trabalhista defendem que a prioridade no acordo com a UE será a Economia .

Mas haverá muitos outros temas que poderão influenciar na decisão do eleitorado. O Labour conseguiu elaborar um manifesto com ideias que são apoiadas pela maioria do cidadãos, como é o caso da renacionalização dos caminhos-de-ferro (suportado por 60% dos Britânicos). Outro aspecto importante é que o Partido Trabalhista no seu manifesto conseguiu na sua maioria suportar o financiamento das suas propostas ao contrário do Partido Conservador. Na entrevista dada por Theresa May na BBC1, foi tão apertada que quando o jornalista Andrew Neil lhe perguntava como financiava as suas proposta, ela assumiu que o que era apresentado no seu manifesto era uma série de princípios. Acho que quem assistiu a esta entrevista percebeu que LIDERANÇA FORTE NÃO SÃO CHAVÕES E QUE THERESA MAY É UMA POPULISTA.

SONDAGENS

Apesar de eu achar que temos que ter muito cuidado com as sondagens, pois elas são uma “fotografia” do momento em que são feitas e que para mim elas poderão influenciar o voto, acho que o que é relevante nesta matéria é verificar que antes da marcação destas eleições o Partido Trabalhista estava com 23 pontos de diferença em relação ao Partido Conservador e ontem numa sondagem da YouGov só dava uma diferença de 5% (43% para os Conservadores e 38% para o Partido Trabalhista).

Ainda faltam 2 semanas e não nos podemos esquecer que o sistema eleitoral Britânico não é um sistema proporcional de votos, ou seja, os deputados são escolhidos pelo seu círculo eleitoral o que em teoria pode acontecer que o Partido mais votado não tenha mais deputados. Por isso, a grande sondagem será dia 8 de Junho, mas já podemos tirar uma lição: EM DEMOCRACIA NÃO HÁ VENCEDORES ANTECIPADOS, A CAMPANHA PODE ALTERAR O VOTO.

CONCLUSÃO 
Continuo a achar a vitória do Partido Trabalhista nestas eleições difícil mas possível. Irei dentro da minha disponibilidade profissional e familiar fazer campanha pelo Partido Trabalhista já que não tenho direito de voto. Espero assistir em Junho ao fim de May (June the End of May) e desta forma que “ESTA MINHA VIAGEM” PELO REINO UNIDO FOSSE PREMIADA MAIS UMA VEZ COM UM ACONTECIMENTO IMPROVÁVEL E HISTÓRICO, QUE SERIA A ELEIÇÃO DE JEREMY CORBYN COMO PRIMEIRO-MINISTRO DO REINO UNIDO.

SALVADOR DA PÁTRIA

MOREIRA DA SILVA
O furacão Salvador, que se localizou no centro de Exposições de Kiev, na Ucrânia, e atingiu em cheio o Festival Eurovisão da Canção 2017 foi provocado pela canção portuguesa “Amar pelos dois”, que arrasou toda a concorrência, com uma votação histórica. Esta cantiga ternurenta que prima por uma enorme simplicidade originou um forte vendaval de emoções em Portugal, mas depressa se desenvolveu por toda a Europa e se alastrou a uma escala quase planetária.

A canção portuguesa foi uma agradabilíssima surpresa que provocou a rendição da Europa a Salvador e como recompensa ofereceu ao nosso país a vitória tão almejada e perseguida há mais de meio século. Desde 1964 que Portugal marcou quase sempre presença no certame, mas foram poucas as vezes que conseguiu colocar uma canção nos dez primeiros classificados, tendo obtido muitas classificações pouco honrosas.

A receita para conseguir trazer o troféu para Portugal foi a apresentação a concurso de uma canção lindíssima, nada “eurovisiva”, com uma bonita mistura de ritmos e influência do folk e da bossa nova, cantada em português por um cantor genuíno e simples, com uma voz doce que cruza as raízes do jazz, com as sonoridades da América Latina.

A canção “Amar pelos dois”, que obteve uma extraordinária vitória, também foi consagrada pelo público e pelo próprio júri da Eurovisão. A autora desta composição de grande qualidade é a irmã de Salvador, Luísa Sobral, que escreveu a música, que é um sentimento e não um fogo-de-artifício, como disse Salvador, e a letra inspiradora e ternurenta, que toca profundamente os nossos sentidos e os nossos corações.

Cantada em português, a canção “Amar pelos dois” magnetiza-nos de imediato, embala-nos com a sua sublime harmonia e entra em nós para massajar o nosso ego de português, que está sempre de portas abertas para receber este tipo de mimos. Também é com esta espécie de ofertas, que o nosso ego se vai fortalecendo. Sem qualquer exacerbamento nacionalista, mas com um saudável sentimento patriótico pode-se afirmar que existem muitos portugueses que são, na sua especialidade, do melhor que há no mundo, em diversas áreas do entretenimento, da cultura, do desporto, do conhecimento e outras.

É por tudo isto que temos que agradecer à Luísa e ao Salvador, pela mensagem sentida e pela verdadeira lição de amor à música, à poesia e à língua portuguesa, num festival dominado por canções em inglês. Um amor introduzido deliciosamente na canção, que os catapultou, a eles e a Portugal, para as bocas do mundo. Esta vitória portuguesa também abalou o poder quase hegemónico da língua inglesa para as canções. Que grande orgulho em ser português!

Em períodos de conjuntura desfavorável para a nação, os portugueses ficam esperançados numa aurora redentora. Portugal, ao longo da sua história, já teve muitos momentos inesquecíveis, mas também criou alguns mitos, alguns heróis, alguns Salvadores da Pátria. É óbvio que Salvador (Sobral) não chegou numa manhã de nevoeiro, não é um Salvador da Pátria, mas tão só um músico e cantor, um herói que é um anti-herói, uma vedeta que não quer ser vedeta.

Obrigado aos irmãos Sobral pela canção “Amar pelos dois”, que tem o condão de atravessar a nossa alma e alojar-se no nosso coração. A vossa vitória que também é nossa deu um forte contributo para alimentar o ego nacional.

sábado, 27 de maio de 2017

MODOS DE OLHAR

JORGE NUNO
Quando me preparava para iniciar esta crónica li a frase, citada in The Nag Hammadi Library: “Reconhece o que está à vista e aquilo que está escondido de ti tornar-se-á claro aos teus olhos”. Reconheço que o entendimento da frase não é fácil. É que a vida surpreende-nos, a cada dia, com factos inesperados, tanto pela positiva como pela negativa, sem que aparentemente possa haver qualquer controlo e previsibilidade da ocorrência para que, perante o que os nossos olhos veem, haja uma clara justificação dos factos ou do alcance dos mesmos.

Um desses factos passou-se com Nicky Hayden, americano, de 35 anos. Trata-se de uma lenda do desporto motorizado, piloto da Honda em Moto GP e campeão do mundo em 2006, nesta categoria. Foi anunciado que não resistiu aos ferimentos causados por um acidente em Rimini, em Itália. Não, não foi em corridas de moto… foi abalroado por uma viatura ligeira, quando seguia de bicicleta. Soube-se que a última dádiva do piloto terá sido a doação dos seus órgãos, desejo que terá sido cumprido pela família.

No exterior do Manchester Arena, em Inglaterra, logo após a conclusão do espetáculo da cantora americana, Ariana Grande, que contou com a presença de cerca de 21000 espetadores, um bombista suicida fez-se explodir. Com número de mortos a rondar vinte e dois e o número de feridos a ultrapassar os cem, dos quais vinte e três em estado muito grave e, como sempre nestas circunstâncias, o pânico instala-se e leva a que estes números reflitam também casos de espezinhamento, na tentativa de fuga. De imediato sobressai uma onda de solidariedade e gestos bonitos. Moradores a oferecerem camas às pessoas afetadas pelo atentado. Taxistas a oferecerem transporte gratuito a quem fugia daquele local. Uma senhora, de 48 anos, que estava próxima da estação de Victoria, a pedir aos jovens (que fugiam), para a seguir, tendo encaminhado cerca de cinquenta, que correram com ela para o Hotel Holiday Inn Express e onde deu conhecimento da notícia via Facebook, localização e número pessoal de telemóvel, para tentar sossegar os pais que não sabiam dos filhos. Dois sem-abrigo, um de 33 anos e outro de 35 anos, que se encontravam no local, em vez de fugir terão ajudado várias pessoas, incluindo crianças e viraram “heróis” improváveis; um deles, devido à visibilidade nos meios de comunicação social, terá agora oportunidade de reencontrar a sua mãe, com quem tinha perdido o contacto há anos; ao outro foi oferecido alojamento por 6 meses. Na manhã seguinte, estiveram juntos os líderes das várias comunidades locais, para mostrar união e solidariedade. José Mourinho – que já foi considerado o melhor treinador de futebol do mundo e que muitos têm vindo a dizer que já não tem a garra de outrora para estas lides, ao deixar o Manchester United em 6.º lugar na Premier League, nesta época, apesar de ter vencido a Supertaça e a Taça da Liga –, 48 horas depois do atentado em Manchester contribuiu para atenuar o sofrimento dos habitantes desta cidade ao conseguir com que o Manchester United ganhasse a final da Liga Europa, e tivesse entrada direta na Liga dos Campeões; tal, possibilitou que um simples jogo de futebol ajudasse a elevar o moral de quem se sente atacado. 

Mário Centeno, ministro das Finanças, foi por diversas alturas contestado e ainda se insiste com audição na AR – Assembleia da República, a propósito do caso dos “Offshore”. Foi igualmente contestado, de forma dissimulada, por algumas figuras de proa nas instâncias europeias, como é caso de Wolfgang Schäuble, ministro das Finanças alemão. Este último, em outubro de 2015, desagradado por não ficar a governar o partido vencedor das Legislativas, referiu que Portugal estava a ter sucesso até à chegada do novo Governo [liderado por António Costa]. O mesmo, em fevereiro de 2016, “encorajou fortemente” a equipa do ministério das Finanças de Portugal “a não fugir ao rumo bem-sucedido que vinha sendo seguido”, para em junho de 2016, deixar o cutelo no ar, como possibilidade de haver um segundo resgate, insistindo na necessidade de cumprimento das regras europeias. Agora, Centeno anuncia: a boa notícia (ainda sob a forma de previsão) de que a economia deverá crescer 3% no segundo trimestre de 2017; reforça a ideia do controlo das finanças públicas e estabilização da dívida pública; através da UTAO – Unidade Técnica de Apoio ao Orçamento quer antecipar o pagamento de parte da dívida ao FMI – Fundo Monetário Internacional, entregando-lhes 7,2 mil milhões de euros em 2018 e 2019, permitindo poupanças ao Estado, em juros. Durante um ano, Centeno assume a presidência do Concelho de Governadores do BEI – Banco Europeu de Investimentos, instituição que em 2016 teve um volume de financiamento de 83,75 mil milhões de euros, dos quais 1,486 mil milhões foi direcionado para a linha de crédito da banca portuguesa, para apoiar as PME – Pequenas e Médias Empresas, para requalificação urbana e para a Indústria. Depois de Mário Centeno entregar o pedido e ver concedido a saída de Portugal do PDE – Procedimento por Défice Excessivo, não deixa de ser curioso saber que Wolfgang Schäuble ter-se-á referido a Centeno como o “Ronaldo do ECOFIN”. Paira ainda no ar a hipótese de vir a suceder ao presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem, apesar de lhe ter sido pedido pelo presidente da República e primeiro-ministro para o não fazer.

Em fevereiro deste ano, no dia dos namorados, no Theatro Circo, em Braga, senti que a assistência estava rendida perante a atuação da Luísa Sobral. Eu era um deles. A meio do espetáculo apresentou uma surpresa: o Salvador. Chegado à boca de cena, com ar algo estranho, limitou-se a um tímido “olá”, provocando risos, e ainda mais quando a Luísa Sobral afirmou que tinham combinado que ele só diria aquilo. Cantou uma canção, sem letra, como quem está a trautear de improviso e saiu-se bem, embora continuando a soar a estranho para o público. Mais estranho pareceu quando venceu o Festival da Canção, que o obrigou a ir ao Festival Eurovisão da Canção e viria a ganhar com um resultado histórico – a maior pontuação alguma vez atribuída a uma canção – 758 pontos e ainda por cima cantada em português! Na noite do Festival da Eurovisão, estiveram cerca de 2,4 milhões de portugueses a ver a RTP1, tal como se fosse um dos decisivos jogos da seleção nacional de futebol. Disse que nunca tinha visto esse Festival e mostrou a sua imagem anti-vedeta. Quando foram ambos entrevistados na RTP1, a irmã disse que o “segredo foi levarmos uma coisa genuína e sem o intuito de ganhar”. Disse ainda que quando escreveu ”a canção não era para ganhar mas para a voz do meu irmão”. Por sua vez, ele afirmou que “a Luísa tem canções muito mais bonitas do que Amar pelos Dois”. Destaco, da entrevista, a frase da Luísa Sobral: “É bonito quando algo parece ser impossível para o país, e conseguimos provar o contrário!”

Na verdade… estamos sempre a ser surpreendidos. Já dizia Wayne Dyer (autor americano, com vários livros de auto-ajuda): “Mude o modo como você olha para as coisas, e as coisas que você olha mudarão”.

sexta-feira, 26 de maio de 2017

REGIME DE ACESSO AO DIREITO E AOS TRIBUNAIS – PROTEÇÃO JURÍDICA DA SEGURANÇA SOCIAL

ANA LEITE
Artigo 20.º n.ºs 1 e 2 da CRP: “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.

Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.”

O direito de acesso aos tribunais e ao direito é como se vê, um direito fundamental, assim ninguém pode ser prejudicado no acesso à justiça e aos tribunais por razões económicas. A lei garante apoio ao cidadão no acesso à justiça quando demonstre insuficiência económica, e estabelece, como forma de acesso, a informação jurídica e a proteção jurídica, a qual abrange as modalidades de consulta jurídica e de apoio judiciário.

Em suma, a consulta jurídica é essencial para que todos os cidadãos possam conhecer os seus direitos e deveres, através da consulta com um advogado.

Já o apoio judiciário é atribuído consoante o grau de carência económica e o processo a que se destine, na forma de dispensa do pagamento das despesas do processo e dos honorários do advogado, na possibilidade de pagamento em prestações, ou na atribuição de agente de execução. 

Dito isto, tem direito a proteção jurídica os cidadãos nacionais e da União Europeia, bem como os estrangeiros ou os apátridas com um título de residência válido em Portugal ou num Estado membro da União Europeia. As pessoas coletivas sem fins lucrativos têm apenas direito à proteção jurídica na modalidade de apoio judiciário. As pessoas coletivas com fins lucrativos e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada não têm direito a proteção jurídica. 

Todos têm de demonstrar que não têm capacidade económica para suportar as despesas associadas com a ação judicial. Nos termos da lei de acesso ao direito, encontra-se em insuficiência económica aquele que tendo em conta o rendimento, o património e a despesas permanente do seu agregado familiar, não tem condições objetivas para suportar pontualmente as custas de um processo. Qualquer pessoa pode verificar se tem direito à proteção judiciária através dos simuladores de proteção jurídica disponíveis na página online da Segurança Social.

Este apoio pode ser acumulado com outro ou outros apoios que eventualmente estejam a receber. O requerimento para solicitar apoio judiciário deve ser entregue pessoalmente ou enviado por correio para qualquer serviço de atendimento ao público da Segurança Social ou pode ainda ser enviado para o endereço eletrónico deste serviço.

Por último, convém referir que o advogado oficioso ou patrono é escolhido pela Ordem dos Advogados, sempre que os tribunais, os serviços do Ministério Público, os órgãos de polícia criminal ou os serviços da Segurança Social o solicitem, mediante um sistema eletrónico gerido pela Ordem.

O COMBUSTÍVEL DO SUCESSO ALEMÃO

JOÃO RAMOS
Num artigo de apoio, barry eichengreen criticava abertamente o elevado excedente da balança de pagamento da economia alemã, salientando que o seu governo deveria adotar um orçamento expansionista. Concluindo, defendia que existem vários sectores com necessidades de investimento, como o sistema de ensino, que não possuía uma única faculdade no top 50 das melhores do mundo. Este último dado confere informação relevante em relação ao crescimento económico e sobretudo à potência do seu motor produtivo. Assim sendo, apesar do sistema de ensino profissional constituir a principal mais-valia do sector industrial alemão, não me parece, que seja por si só suficiente para sustentar o principal motor económico europeu. Desta forma, muito do sucesso das indústrias alemãs de alta tecnologia foi alimentado pelos emigrantes altamente qualificados dos países do sul da Europa. Aproveitando-se da qualidade do sistema de ensino e da crise de economias como a Portuguesa, a Alemanha apropria-se de importante recursos humanos, sem contribuir com os custos para a sua formação.

Ao contrário do que muitas das vezes é passado para a opinião pública, o ensino universitário nacional situa-se na vanguarda em várias áreas tecnológicas, contribuindo para a formação de profissionais extremamente competentes, que por falta de oportunidades são obrigados a rumar a outras paragens.

Como é sabido, no seculo XXI, o conhecimento e o capital humano são condições sine qua non para garantir um futuro promissor para a nossa economia e próximas gerações. Desta forma, para além de investir num amplo programa de fixação de jovens formados, o governo deveria propor a criação de um mecanismo europeu de compensação, para os países exportadores líquidos de mão-de-obra qualificada, sobretudo procurando reaver parte dos custos associados à componente educativa.

EA: SENTIR-SE SEGURO

GABRIELA CARVALHO
Em várias crónicas tenho abordado o EA com algumas especificidades.
Na crónica de hoje a especificidade será sobre a importância do idoso se SENTIR SEGURO para um bom envelhecimento activo.

“Sentir-se seguro” é uma necessidade fundamental sendo um direito proclamado pela Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Nos dias actuais, esta sensação de segurança é facilmente amedrontada pelos acontecimentos, também exacerbados pelas notícias.

No entanto, o tema que se pretende nesta crónica não é propriamente a (in)segurança noticiada, mas a insegurança associada às alterações biopsicossociais inerentes ao processo de envelhecimento e que aumentam a vulnerabilidade do idoso aos acidentes, nomeadamente domésticos.

Se por uma lado, o sentimento de insegurança tem repercussões na qualidade de vida do idoso, também é verdade que é sempre possível alcançar maiores níveis de segurança, quer pela redução dos riscos associados aos determinantes pessoais (ver crónica do dia 06.01.2017 sobre o Envelhecimento Activo), como por exemplo, o risco de queda; quer pela redução dos riscos associados ao ambiente físico (por exemplo: barreiras arquitectónicas).

Importa portanto, existir a consciencialização de que a segurança apresenta reflexos directos na participação activa do idoso no seu domicílio, mas também na sua vivência social, isto é, «na vivência cívica e de cidadania activa» e também nos relacionamentos interpessoais e na procura de estilos de vida saudável.

Por exemplo, nos espaços exteriores, se o idoso não se sentir seguro, vai evitar as saídas do domicílio (apesar de que volto a alertar que o próprio domicílio apresenta riscos à segurança, por exemplo, pelo risco de quedas em tapetes/móveis; intoxicações por trocas de substâncias/medicamentos; pouca luminosidade; falta de barras de apoio; …). Por isso, deve existir a preocupação da pessoa idosa se sentir segura na rua, para que mantenha a vontade de se envolver na sua comunidade local.

Cabe à sociedade, criar oportunidades e eliminar barreiras, permitindo a igualdade de acesso, tal como preconiza a Organização Mundial de Saúde ao criar em 2005 o projecto “Cidades Amigas das Pessoais Idosas” (tema que será abordado na próxima crónica).

“Mais do que acrescentar anos à vida, a Terapia Ocupacional proporciona vida aos anos.”

Referências Bibliográficas:
- Organização Mundial de Saúde (2005). Envelhecimento ativo: uma política de saúde. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde.
- Ribeiro, O., C. Paúl (2011). Manual de Envelhecimento Activo. Lisboa, Lidel - edições técnicas, lda.
- Torres, M. & Marques, E. (2008). Envelhecimento activo: um olhar multidimensional sobre a promoção da saúde. Estudo de caso em Viana do Castelo. Lisboa: VI Congresso Português de Sociologia.
- Vasconcelos, K. R. B. d., Lima, N. A. d., & Costa, K. S. (2007). O envelhecimento ativo na visão de participantes de um grupo de terceira idade. Fragmentos de cultura, 17, 439-453.

quinta-feira, 25 de maio de 2017

A CULTURA COMO INVESTIMENTO

ARTUR COIMBRA
Ciclicamente, por uma razão ou outra mais ou menos plausível, essa ave rara chamada “cultura” vem ao de cima do discurso mediático, bem mais propenso às vicissitudes da política mais ou menos centrada nos governantes e nos partidos políticos.

Nos últimos dias, os media têm dado significativo destaque a questões ligadas ao universo da cultura, em especial da música, por virtude da fantástica conquista do Festival Eurovisão da Canção por esse cantor improvável e em quem poucos acreditavam chamado Salvador Sobral, ainda por cima cantando em português uma canção sem o habitual aparato festivaleiro. É o cantor que tem colocado o dedo na ferida, referindo que seria interessante que, à boleia daquela inesperada conquista da Europa das canções, “o orçamento para a cultura aumentasse”. Um recado para o Governo de António Costa, esperando-se que não caia em saco roto, como é tão normal neste país, em que as coisas habitualmente abrigadas no chapéu da cultura (artes plásticas, cinema, teatro, música, bailado, literatura, exposições, concertos e tantas outras) são tratadas como a última prioridade de qualquer programa político, o que se lamenta em absoluto, porquanto um povo culto é um povo mais activo, mais empreendedor, mais criativo, mais livre.

Basta ver a quantidade de vezes que os jornais televisivos abordam questões culturais. Quase se podem contar com os dedos de uma só mão e, quando acontecem, são relegadas para os minutos finais do telejornal e emitidos muito a contragosto…

É claro que falar-se de cultura é, já de si, um achado, tão menosprezada anda pelos órgãos de comunicação social e pela população em geral, anestesiada por doses cavalares de telenovelas e de futebóis, que não sabe há quanto tempo viu um filme no cinema, que já não se lembra da última peça de teatro a que assistiu, e que nunca mais acaba de ler aquele pequeno livro que começou há mais de um ano.

Mas as estatísticas e o pensamento dos últimos anos vão no sentido de se concluir que a cultura não é, nos nossos dias, algo que funcione apenas como adereço, como coisa supérflua, como desperdício irrecuperável. A cultura é considerada, justamente, um investimento, que movimenta já milhões de euros e que tem retorno, embora mais lento que outras actividades, como é natural. As indústrias culturais na Europa, por exemplo, representam já maior impacto no produto interno bruto que a têxtil ou a indústria automóvel, por mais incrível que possa parecer.

É reconfortante saber que o investimento cultural começa a ser reconhecido, pelas autoridades, pelos agentes culturais e pelos agentes económicos. A cultura tem de constituir uma aposta estratégica, do Estado e das autarquias, porque é aquilo que, a par da educação, pode contribuir para tornar os povos mais livres, mais conscientes, mais evoluídos, mais felizes e mais humanos.

Até porque, ao contrário do que supõem os imensos pretensos e incultos pragmáticos, para quem a cultura não passa de um vastíssimo regabofe despesista e sem pingo de importância, está demonstrado que a cultura tem um forte peso na economia europeia. Em Portugal, o sector contribui com 1,4% do produto interno bruto, sendo o terceiro principal contribuinte para o PIB, a seguir aos produtos alimentares e bebidas. Por isso, deve passar a ser vista como uma prioridade para os governos dos países, e também para os responsáveis municipais. A cultura é para ser apoiada, dinamizada, subsidiada, porque é ela que eleva espiritualmente a humanidade. É a cultura que distingue os homens da animalidade. Os discursos contra a cultura, venham de onde vierem, não passam desse estádio de atraso e desse apego à barbárie...

Em suma, está, então, na hora de os políticos e os fazedores de opinião se consciencializarem da importância fundamental e do peso específico deste importante sector para a economia e para a qualidade de vida dos cidadãos.



E já não é sem tempo.