domingo, 19 de março de 2017

P A I

MIGUEL GOMES
Aperto as mãos e faço força para que os braços não me escorreguem. 

Encosto a cara ao blusão velho, cujo cheiro consigo distinguir na memória e fecho os olhos. O barulho da mota soluça pela noite, tenho uma lágrima presa pelo frio e o sorriso congelado na felicidade de imaginar, ainda hoje, a mota negra a ribombar por uma estrada imaginária em direção ao céu.

Nada há que prenda mais à vida do que as mãos calosas de um pai, o cheiro a barba desfeita, o pegar no pincel às escondidas e imitar o gesto paternal, afagar a face barbeada e olhar, de baixo para cima, a imensidão de um ser que, saberemos depois, imitamos os gestos mesmo quando, muito mais tarde, nos confundem como irmãos. O tempo encarrega-se de nos parir para a vida, vamos subindo os dias como que se fossem ainda aqueles muros de pedras mal amanhadas e musgosas, cuja integridade se dilui um pouco como a espuma da barba quando a água se esvai pelo lavatório. 

“Ali ao fundo, vês?” Pergunto-te como se estivesses ali mesmo ao meu lado. Não o estás da mesma forma que os outros transeuntes, mas para mim é como se estivesses, ali e em todo o lado, porque me habituei a ver esta irrealidade que nos tenta içar ao infinito como se pelos teus olhos vislumbrasse e, mesmo assim, como os pequenos presentes de Natal ou os sacos de amêndoas de chocolate que escondias nas mangas do sobretudo, todo o insondável mistério da vida se augura como uma longa, por vezes lenta, caminhada de descoberta das nossas próprias mãos, das nossas próprias mães, dos nossos próprios pais. Sei bem a que sais, nas cãs e no silêncio em que pronuncias todas as milhares de páginas que leste e eu, filho, que nem sei como entrar nesta coisa a que chamam vida, ainda tímido sou a tarde de sábado que te convida: “Como é, vamos ao café?”

“Ali ao fundo, vês?” Pergunto de novo. Há um pai com os pés na água fria do mar, um sorriso que oscila na maré deste sábado de manhã, uma criança, talvez eu, que experimenta a areia fina cujo tempo depositou com carinho e caminha, não com medo, talvez curiosidade de sentir entre os dedos dos pés a facilidade com que foge de nós o momento em que juntos, pela cumplicidade, parecemos sós.

Sabes o quão estreita parece a vida, mas é por isso mesmo que, no crepitar sôfrego da vela sobre o pavio onde ouvíamos as noites sem electricidade, me faço mais homem. 

De eterno temo-lo a Ele e d’Ele, os olhos, os teus, são a porta de entrada para a recordação do que serei quando a vida me vier trazer mais Vida e, como tu, me pegar ao colo e me deixar adormecer porque a noite caiu e a maré terminou. É agora que sei quem sou, os dias ásperos de quem a própria transpiração suou, a terna carícia que surgia quando me fazia adormecido. Este mundo é pequeno demais para sermos pai e filho.

“Sem nada para falar, para tudo te dizer”, escreveste um dia como se todo o conhecimento se resumisse às vezes em que olhamos juntos, ainda hoje, páginas distintas de um só livro. De quanto vazio precisaremos todos para apenas assim sentirmos, sabermos, que é de facto desta forma que temos tudo?

Assiste-me a circular tendência de me ver família de mim mesmo. Sei que no início era o verbo e este, no infinitivo, conjuga-se assim pai: eu amo. Eu, pai, amo-te.

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