domingo, 12 de fevereiro de 2017

QUANDO NADA SE VÊ É AÍ QUE TUDO SE TEM

MIGUEL GOMES
Não espero encontrar ninguém, no entanto, quando acabo de me desfazer da curva apertada à esquerda, enfrentando o calor, eu, a subida, o carro, um bordão alto e retorcido, negro como a ambição, apoiava-se a um homem hirto, senhor da sua idade, com uma boina sem qualquer padrão, contrastando com a indumentária quotidiana de quem se veste para proteger o corpo. A figura parece-me saída de uma encenação, acrescentando (e daí a riqueza) a pobreza de nada ter além da pose, o bordão, a mão sobre o nódulo da madeira e o queixo sobre a mão, deixando as costas da mão direita, como pude ver depois, com o picotado profundo da marca da barba rasteira como urzes e persistente como o amor.

Soluço, eu e o carro, subimos o alcatrão negro imaculado, não fosse esta estrada caminho para terras de ninguém, aqui nada deve passar além do que vai para além, entendam-se os defuntos, no último cortejo cujo negro cerrado contrasta com o colorido disperso de romarias em honra de santa qualquer coisa que Deus lhe valeu, a todos, menos eu. Em terras de cegos, todos vêm o que necessitam e por aqui, quando passo pelo homem que facilmente se confundiria com espantalho, abrando e lanço um educado boa tarde. A natureza traz-me silêncio e parcas narrativas à nascença, mas nunca falta de desenvoltura no bom “o que quer que seja”. Uma ligeira curva à direita e um pequeno largo antes do portão fechado à fé e aos ladrões. Ajeito o carro e o olhar para ficar voltado para o vale e fico ali, a ver o verde que se estendeu retalhado aqui e acolá por um pouco de castanho, pintalgado de branco, negro e castanho da vaquicidade que pasta. Ouço o cascalho ranger, uns passos. 

- O senhor vem por causa do terreno?

- Não, não venho, vim só ver as vistas.

- Olhe que vem ao melhor. Quem comprar ali a cavada não vai saber aproveitar.

Ficamos ali. Eu a fazer o que sei de melhor, calado, o vidro aberto, o calor abafado, o suor nos braços. Ele a olhar para o mesmo horizonte que eu, o corpo abafado ao calor habituado, o bordão a completar esta santíssima trindade. - Se não chegam, vou eu, tenho ali uma estufa dos tempos da minha mulher, todos os anos dá morangos e agora desde que ela partiu, dá-os fora de época. Sabe o que é saudade? Oh pá, isto enfia-se pela gente e dá às vezes um nó tão grande que se ainda tivesse forças, mandava-me a pé até ao Ermelo e arremessava-me de lá de cima só para ir ter com ela. Mas, olhe, depois vem a consciência sabe, a consciência é coisa de Deus, a gente matuta nas coisas e pensa que se o tempo não nos colheu ainda é porque não é tempo de colhedura. Não acha? - não tenho tempo para pensar em nada. - E depois, quem ia tratar dos morangos fora de época? Já viu? Vêm os inocentes a este mundo, ainda lhes pus o prástico por cima e em dias de vento ainda calco com um pau grosso. Olhe, vê este? - é o bordão onde se apoia – Estava por lá hoje, mas como estou meio cansado do calor e num há vento, trouxe-o comigo. – O bordão impassível parece piscar-me o olho – Se eu lhes faltar, coitados dos morangos, nascem e morrem sem conhecerem ninguém. O silêncio cai novamente e instala-se entre nós mais uns minutos, a olhar também para o horizonte.

- Olhe, aquilo do Ermelo, é a gente a falar sabe, eu não faria isso. Um homem se não fala não vive e se num manda isto para fora, ainda arrebenta.

Olhei-o, cruzamos o olhar por momentos e antes de eu me despedir apertando a minha mão esquerda na sua bolbosa mão, sem entender que a tarde quente me tinha feito mais homem, ainda rematou.

- A gente habitua-se a estar sozinho, mas nunca está sozinho, tem amor de Deus, sabe o que isso é? Foi ela quem mo disse. Amor de Deus, é como dizia o Cristo quando ninguém o escrevia, quando nada se vê é aí que tudo se tem.

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