quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

A AMÉRICA DOS MEDOS

ARTUR COIMBRA
Curiosidade: em 4 de Novembro de 2004 publiquei num jornal local, na sequência das eleições que deram a vitória a George W. Bush, o texto que reproduzo a seguir.

Volto a ele porque, relendo-o, encontro demasiadas similitudes com o que se passa em 2017, uma dúzia de anos depois, como se a História se repetisse, ou não aprendesse com os erros.

Onde se escreve George W. Bush, que também falava na “grandeza da América”, deve ler-se Donald Trump. 

O resto, a América dos medos e a incerteza do mundo, voltam a ser perfeitamente actuais.

O mundo perdeu 12 anos da sua modernidade e tornou inútil e despiciendo o que um civilizado, simpático, humano, culto e inteligente Barack Obama, pesem os seus erros e defeitos, andou a fazer ao longo dos últimos oito anos!

Aí fica o texto de 2004, para se aquilatar como andamos permanentemente a desperdiçar o tempo, a cultura e a inteligência:


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Confesso que me atemoriza a expressiva vitória do republicano George W. Bush, nas eleições desta terça-feira. Por todas as razões e mais uma: não se sabe do que é – ainda mais – capaz a estratégia do terror do cobói ianque, agora que não tem que governar para sondagens nem para uma reeleição.

Horroriza-me porque as eleições para a presidência da América não são apenas para a presidência da América: são para o país que actualmente domina o mundo a seu bel-prazer. São para a maior potência internacional, que não tem pejo em invadir qualquer país, pelos motivos mais fúteis, a pretexto da chamada “guerra preventiva”, desde que tal signifique o controle das matérias-primas, sobretudo energéticas e dentro destas, do petróleo. Apavora-me o facto de o mundo estar à mercê dos bons ou maus humores de um indivíduo ou de um pequeno clã, que dispõem da força dos arsenais militares para impor as suas visões estratégicas.

É evidente que George W. Bush foi escolhido democraticamente pela maioria dos eleitores americanos: 51% (quase 59 milhões de votos) contra 48% (mais de 55 milhões de votos) do democrata John Kerry. Ou seja, a América dividiu-se quase a meio... Não está em causa, assim, a sua eloquente e significativa legitimidade para governar a nação americana. Embora me choque a perspectiva de um líder mundial que se afirma “inspirado” por Deus, numa aproximação perigosa aos maniqueísmos religiosos que tanto mal têm espalhado pelo planeta. 

O que sobressai é a derrota da esperança do mundo numa solução mais civilizada para a comunidade internacional e que seria protagonizada por um Kerry aparentemente mais aberto, mais tolerante, mais dialogante, menos prepotente.

George W. Bush triunfou por um conjunto combinado de razões, a mais evidente das quais tem a ver certamente com a ânsia de segurança dos eleitores, com o combate ao terrorismo, na América e no mundo, após o 11 de Setembro e com a posição relativamente ao Iraque, pesem as tremendas baixas que se têm registado no último ano e o facto de aquele país estar hoje por hoje bem mais inseguro e destruído que antes da chegada dos aliados. 

Quem venceu na terça-feira foi a “América profunda”, interior e rural, a América dos medos, a América religiosa e ultraconservadora, a América fundamentalista, a América intolerante, a América arrogante e imperial, que se julga dona e senhora do mundo. A América mais odiosa, mais repugnante, mais violenta.

Quem venceu nas eleições de terça-feira foi a América da guerra, cujos tambores ganharam legitimidade para soar por todo o mundo que não se vergue aos ditames do “imperador” ou que ouse levantar a voz do inconformismo e da revolta. O que se agrava se o país prevaricador for rico em matérias-primas que interessem aos negócios da Administração das terras do Tio Sam.

Aí é que residem o perigo e a ameaça dos americanos à paz mundial. Sabemos que, nos últimos quatro anos, Bush governou para a “grandeza” política dos Estados Unidos, não respeitando as convenções internacionais quando tal não lhe interessava, do Tribunal Penal Internacional às questões ambientais, dos direitos humanos (Guantanamo é o símbolo da barbárie num país que se diz civilizado...) à promoção da “democracia à força” mesmo aos países cuja tradição histórica não tem nada a ver com esse sistema político.

A mim não me interessa minimamente o que pensa ou o que decide George W. Bush a nível interno: se é contra o aborto, se aumenta os impostos, se é a favor da pena de morte, se despreza os recursos ambientais, se é contrário aos casamentos entre homossexuais, se protege os fabricantes de armas, se é a favor da privatização da segurança social. Os americanos é que têm de se preocupar com tais questões e votar em conformidade.

Como português, como democrata, como ocidental, estou mais apreensivo em saber o que é que nos próximos quatro anos George W. Bush vai fazer ao nível do relacionamento dos Estados Unidos com o resto do mundo, como é que vai respeitar a soberania dos povos, ainda que incómodos para o seu poderio ou se vai continuar a ignorar e a esvaziar importantes órgãos da legitimidade internacional, como a ONU ou a NATO, que não podem ser correias de transmissão dos interesses e posições americanos. Também importará saber se o presidente americano se decide, finalmente, a intervir na espiral de violência do Médio Oriente, colocando Israel no lugar que deve ser o seu e respeitando a Palestina como nação com direito a vida própria, e ordenando, se for capaz, os judeus a derrubar o vergonhoso muro de Berlim que construíram a separar os dois povos. Uma palavra americana a condenar Israel (se a América não fosse fortemente dominada pelos hebreus...) e acabava o conflito, cujos fundamentos têm sido a base reivindicada pelo terrorismo internacional.

E, outrossim, qual vai ser o papel da Europa no contexto do mundo, se vai continuar a ser capacho americano ou se, finalmente, se consegue consolidar ao nível da unidade politica e do poderio económico, reforçando estratégias consistentes em termos militares e de segurança. Será que George W. Bush deixa a Europa libertar-se da sua tutela? 

Aí estão alguns dos temores e terrores que me assaltam, nesta altura, como certamente a milhares e milhões de cidadãos do mundo, perante os resultados eleitorais desta terça-feira.

Só o futuro poderá certamente responder às incertezas, perplexidades e inquietações do presente.

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