quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

ANORMALIDADE QUOTIDIANA

PAULO GUINOTE
A Educação tornou-se um dos campos mais férteis para uma espécie de realidade alternativa no discurso político e na própria vivência quotidiana. Nos últimos dias, por exemplo, ficámos a saber que dezenas ou mesmo centenas de professores leccionam nas Universidades sem receber remuneração ou que têm uma relação laboral mais do que precária com algumas das instituições mais destacadas do nosso Ensino Superior. 

Logo a seguir, tivemos o presidente do Conselho de Reitores a declarar que a situação é, e cito o Público de 28 de Dezembro, “normal e pontual”, sem que pareça aperceber-se do ridículo que é considerar que algo “pontual” é normal”. Uma coisa é a normalidade, outra a existência de situações excepcionais. Para o nosso reitor dos reitores é o mesmo. Mas, como por cá são poucas as coisas que não suscitam uma catadupa de declarações públicas a roçar o surrealismo, tivemos o ministro do Ensino Superior a declarar – desta vez cito o Público de 29 de Dezembro – que a situação (docentes universitários a trabalhar sem salário ou vínculo laboral) é “normal numa sociedade aberta, autónoma e livre”. E eu fico sem perceber que raio de “normalidade” é esta que se pode justificar com uma “sociedade aberta” (será que o governante ainda consegue citar Popper a este respeito?) e muito menos entendo o que é uma sociedade “autónoma” que explica a situação laboral dos referidos docentes universitários.

Sim, claro que os indivíduos podem ser livres e autónomos para trabalharem sem retribuição. Não estando acorrentados, nem sequer podemos falar num glorioso regresso às galés romanas e dar aulas na Universidade é sempre algo que dá estatuto, o que, não colocando pão na mês para a família comer, sempre poderá permitir uns convites para cerimónias, lançamentos de livros e vernissages diversas, com portos de honra ou coisas mais substanciais para aplacar humanas necessidades básicas, mas, de qualquer modo, para uma mentalidade algo antanha como a minha, a mim isto parece algo vergonhoso.

Também sei que, quantas vezes, esta forma de oferecer serviços é um investimento no futuro, num parecer favorável para uma bolsa de pós-doc, para um apoio à investigação através de um canal privilegiado com a FCT, para uma publicação em revista de prestígio com peer review (mas sem pagamento), tudo isso que conhecemos há muito dos meandros académicos nacionais e do seu clientelismo clássico.

De qualquer modo, por muito que quem ande por lá e tenha vivido isto como “normal”, pelo que assim encara como “normalidade” que outros passem pelo mesmo tirocínio (que bom instrutor da tropa não reserva para os seus instruendos algo tão mau ou pior do que aquilo que passou em seu tempo?), isso não significa que o que é de forma evidente uma péssima prática se possa considerar como um sinal de uma sociedade “aberta” e “autónoma” ou, pior ainda, “livre”. Ou que “pontual” e “normal” sejam termos usados como concordantes numa frase.

Mas é o que temos ao mais alto nível de cargos académicos e políticos. Não se pode exigir muito. Mesmo se fosse de esperar muito mais.





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