domingo, 4 de dezembro de 2016

VAI DAR ENTRADA NA LINHA N,º2

MIGUEL GOMES
Puxo o mais que posso as mangas da camisola para os pulsos. Tento evitar o contacto da pele com o frio inox do balcão do bar da estação de comboios.

Saboreio, ainda antes de sorver, o cheiro quente do café em espuma misturada com o leite. 

- Está muito quente?

Respondo que não com a cabeça, apenas por educação, pois já a língua me ardia e doía e os lábios, de gretados, passaram a uma espécie de carne mal passada num braseiro de noite de Natal.

Um senhor titubeia até ao meu lado, parece uma folha que cai e não sabe que já é Outono.

- Esta merda de doença. Tem Parkinson, fala comigo ao mesmo tempo que tenta controlar o corpo.

- Já está pronta? O senhor do outro hemisfério do balcão responde afirmativamente e diz-lhe para trazer a outra. De repente pára, olha-me e encolhe os ombros um pouco envergonhado, parece apenas agora reflectir sobre o que disse.

- Deixe estar, eu vou buscá-la. E dirige-se para a cadeira/veículo eléctrico, levando a bateria que tinha desligado da alimentação. Esta exibia orgulhosamente vários led's verdes, numa pujança electrónica que só os indivisíveis parecem mostrar. Regressa o produto de uma dúzia com cinco segundos depois já com a bateria que tirou da cadeira/veículo e liga-a a uma tomada. Com a face a tremer, a voz oscilante soluça algo para mim, a meio de um sorriso vencedor, de quem não se resigna ao corpo.

- Está sem bateria. – E aponta com o queixo para a cadeira/veículo. – A cadeira e eu também. Deixo escorregar, do fundo da chávena para a boca, a espuma da meia de leite e com ela tento limpar internamente a boca, massajando as queimaduras que me vão custar alguns tempos de ardor.

Recordo com alguma saudade o colorido dos painéis de azulejos, os tectos baixos, os bancos de madeira e as caras estranhas, quase amedrontadoras, que se moviam sobre corpos quase humanos.

Desço as escadas, deixo os degraus seguirem o seu percurso sobre os meus pés e continuo, mãos nos bolsos, a percorrer com não menos indiferença as dezenas de passos que me distanciam da escada rolante que me levará à linha dois.

Faço um esforço para não fechar os olhos e vou oscilando entre o olhar em frente e a fuga dos obstáculos em que se tornam as pessoas quando saem do comboio a correr, talvez com pressa de serem obstáculo noutro local. As paredes mortas, sem vida. 

As lojas soturnas ostentam orgulhosas pequenos papéis pendurados nas vitrines cegas. "Fechado", dizem-me e a quem quer ler.

Lá dentro, pó, pequenos pedaços de plástico, escuro e semi-escuro, luzes onde não entra a luminosidade. Em tempos em que se vende tudo, até as memórias parecem querer ser vendidas, pedindo que alguém as compre e as leve para outro local, uma galeria com luz, sol, pessoas e não obstáculos.

De que tanto necessitamos? Porque nos dizemos ainda mercadores quando de mercado conhecemos apenas o pregão e esse, coitado, vai caindo como as folhas de papel amarelecidas, sozinhas, no chão: - Vai dar entrada na linha número dois…

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