terça-feira, 6 de dezembro de 2016

REGRESSOS

SÉRGIO LIZARDO
Quando é que se começa a voltar? Quando saímos do lugar para onde fomos ou quando saímos do lugar de onde partimos para o lugar para onde iremos?

É doloroso, fazer o caminho que se terá que fazer de volta, especialmente quando o fazemos por obrigação. Às vezes, há quilómetros que doem mais na ida, e essa é uma dor que se começa a tratar nos quilómetros de volta. E isso acontece por uma única razão: porque somos uma espécie de planta de carne, osso, alma e sentido que cria raízes num lugar e sofre do acto de ser arrancado da terra. Somos autóctones onde vivemos, indígenas em família, nativos de amor, de amizade, de vizinhança. Não nos damos em terreno estranho e, ao contrário de outras “plantas”, desconfiamos das propriedades do solo para onde somos levados. E sofremos. Por antecipação, até. Sofremos na ida, na estada, na demora, e só começamos a curar-nos à entrada de um avião, de um comboio, de um carro ou de uma estrada com placa que indica um nome que nos diz muito. Normalmente, a cura vem com pés no chão – no nosso chão. E com um abraço, peito com peito – com o nosso peito tocando num peito que também é nosso. Por isso, quando partimos, partimos com vontade de voltar. Começamos, inconscientemente, a curar-nos logo ali. Começamos a voltar no momento em que partimos.

Mas… e quando o nosso lugar é o lugar ao lado de uma pessoa que nos deixa porque morre? O nosso lugar morre também? Ficamos sem lugar? Ficamos impossíveis de curar? Ou acreditamos que um dia voltaremos a ver quem perdemos e começamos a curar-nos logo ali, até um dia sabe-se lá quando, num lugar sabe-se lá se existe mas oxalá exista mesmo? 

Acredito que, sempre que nos afastamos de um lugar ou alguém nos leva o nosso lugar para longe, a solução para o mal de saudade é a memória. Devemos lembrar-nos – embora não logo ali, porque é preciso a ajuda do tempo – de uma qualquer vivência boa, de uma qualquer convivência que o tempo não poderá apagar, da maior prova de amor ou de amizade ou da menor das coisas que, só porque aconteceu, valeu por uma raiz que nos prendeu, em modo caseiro.

Se todas as plantas tivessem memória, talvez viajassem e se lembrassem do jardineiro que as cuidou ou do vento que as levou, ainda sementes. E não morreriam. Nós, esta espécie de planta de carne, osso, alma e sentido que cria raízes num lugar e sofre do acto de ser arrancado da terra, e que tem dias, horas ou momentos em que se sente morta, respira memórias, e assim sobrevive. Mas sai de si muitas vezes, para deixar só a dor que sente, e assim sofre de novo, sem saber que o motivo da dor é saudade de si mesmo. Quem sofre porque perde alguém sofre por um lugar que sente perdido, ausenta-se, e sofre da sua própria ausência. Jamais alguém evitará cair nessa lonjura, mas deve começar a voltar quando parte apenas acompanhado de memória que dói, certo de que irá regressar com ela mas já sem doer tanto.

O tempo ajuda, mas não anda mais depressa quando se precisa. Não é ele que nos leva de volta a um lugar, nem nos trará de volta quem foi como se nos levasse o nosso lugar, mas devemos começar a regressar à pessoa mais parecida que pudermos ser com a pessoa que fomos antes de termos perdido chão. A memória começa a ajudar desde o início. Lembrem-se da vida! Não esqueçam ninguém, nenhum lugar, nenhum acontecimento feliz; não se esqueçam de vocês mesmos. Regresse-se.

[Este texto é dedicado a pessoas que, como eu, este ano perderam alguém e um pouco do seu chão. E para lembrar que lembrar é sempre voltar à terra, de sorriso que também volta.]

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