sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

O PAI NATAL ESCONDEU O MENINO JESUS

JORGE NUNO
No “Natal dos Hospitais” – programa anual da RTP1 nesta época festiva – o apresentador/entrevistador, agachado, perguntava a uma criança: “Então diz-me lá, porque gostas tanto do Natal?”. Resposta pronta, simples e direta do miúdo, com um sorriso rasgado: “Porque recebo muuuitaaaas preeendaaaas”!

Esta resposta é a confirmação do que qualquer responsável de marketing há muito sabe: “Natal – época de aumento exponencial de vendas”. Aliás, a própria RTP1, no seu “Jornal da Tarde” de 21 de dezembro de 2016, revela um estudo do IPAM, coordenado por Mafalda Ferreira, a indiciar que nesta época de Natal “o consumo com compras de Natal vai ser o mais alto dos últimos seis anos”, havendo a previsão de um aumento de 24% face a 2015. Sendo dito, na reportagem, que se houver falhas é por defeito, ou seja, o consumo poderá ainda ser maior do que o previsto.

No mesmo canal, no programa “DDT - Donos Disto Tudo”, surge um sketch humorístico que se desenrola no setor de brinquedos de um hipermercado e tem três personagens: “Gostosona” [Joana Pais de Brito, a fazer de mascote de Natal, vestida de vermelho]; “Linguadão” [Eduardo Madeira] como alternativa à Gostosona”, e o “diretor de markeking de uma cadeia de hipermercados” [Joaquim Monchique]. Em estilo hip-hop, supostamente pretendia-se cativar a atenção de crianças. O diretor de marketing fazia recomendações aos colaboradores apalhaçados e lembrava: “(…) é uma maneira de sacar a guita aos paizinhos deles”. A dado passo, destacava-se o Linguadão a cantar: “Não aceitem as peúgas. Vocês têm de aprender a ser pedinchões, umas autênticas sanguessugas. Com o Linguadão é só gastar… gastar!...” 

Recebi, do poeta amigo – Henrique Pedro –, um e-mail com votos de Boas Festas e um link com um poema de sua autoria. Coincidência… o título tem algo de semelhante com o que tinha definido para esta minha 50.ª crónica, escrita para a BIRD Magazine. O título do poema é: “Deitaram o Pai Natal na Manjedoura no Lugar de Jesus”. Comecei e ler o poema e achei-o muito oportuno e descrevo apenas uma estrofe:

“(…) Converteram-no [ao Pai Natal] em mito comercial

e deixaram-no na manjedoura

para vender o feno e a palha do berço

e o esterco do estábulo

(…)”.

Porque entendo que o poema merece ser lido na íntegra e o poeta merece maior notoriedade, deixo aqui o link: http://henriquepedro.blogspot.pt/2016/12/deitaram-o-pai-natal-na-manjedoura-no.html

Também no meu romance “As Animadas Tertúlias de Um Homem Inquieto”, o Filó, personagem central, tem esta estirada, em conversa com o Max: “(…) Antes tinha estado a fazer embrulhos do Natal e fui distribuir as encomendas e só não fiz de Pai Natal porque tinha de ficar horas a fio com criancinhas sentadas ao meu colo, a dizer coisas que elas gostam de ouvir, mas que eu não gosto, porque as mentiras não fazem o meu género. Iludir, por quê? Era melhor terem o presépio, com as figuras e pronto. E até já as ovelhas, a vaquinha e o burrinho estão a mais. E mesmo assim preferia fazer de burrinho do que de Pai Natal. Venderem ilusões a crianças, isso não se faz! Ainda por cima, no Natal é criada uma ambiência de apego material, que é precisamente o oposto do espírito natalício. Não era capaz de ter uma criancinha ao colo a dizer-me: Ó Pai Natal, eu quero uma PlayStation 3 de 320 GB, com comando Dualshock e uma consola Wii, com desportos radicais, um MP4 Player para Windows, um Smartphone Android 2.2 e mais isto e mais aquilo… Não sou mal-educado nem mal-intencionado, mas da maneira que isto está, acho que abria logo as pernas para essa criancinha cair e dizia-lhe logo, enquanto ela chorava baba e ranho “Não queres antes pedir ao Pai Natal para passar depressa o dói-dói?”.

Conheço bem o Filó e garanto das suas boas intenções, sendo incapaz de fazer mal a uma criança. Para quem não leu o livro, garanto também que aquilo era um desabafo de revolta, ao ver o ascendente do Pai Natal – o tal que traz e/ou entrega as prendas – e, igualmente revolta, ao ver tanto consumismo desenfreado (sendo certo que ele – Filó – vivia com muitas dificuldades económicas). E como esse consumismo, representado pelo Pai Natal, está a fazer desaparecer o verdadeiro espírito natalício – que tem como mote o nascimento de Jesus de Nazaré –, celebração que deveria simbolizar humildade, bondade, compaixão, solidariedade…

Por este andar, que ninguém se admire se ouvir perguntar: “Quem é esse? [o tal Menino Jesus]. Daqui, afirmo: “O Pai Natal escondeu o Menino Jesus”.

Votos de um Santo Natal.

1 comentário:

  1. Bem agarraste e discorreste sobre um assunto que incomoda muita gente (nem oito , nem oitenta) mas, cada vez mais, apetecido e induzido por diversas técnicas publicitárias: o desenfreado consumismo e a subversão (quase) total do espírito natalício. Parabéns, Jorge Nuno.
    (Também segui o link para ler o excelente poema do, também meu amigo, Henrique Pedro)
    Odete Ferreira

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