terça-feira, 13 de dezembro de 2016

I WOULD PREFER NOT TO

LUÍS CUNHA
Cronicando sobre a preguiça entendi, preguiçosamente, estender a escrita por duas ou três crónicas, pelo que retomo agora o que da última vez ficou escrito. Um tema como este daria ainda mais prosa, bem entendido, mas isso significaria desossá-lo em demasia, dar-me ao excessivo trabalho de trabalhar com afinco, dessa forma desmentindo o que a crónica proclama. A preguiça integra hoje, em boa mas escassa companhia, o último reduto da subversão. A modernidade venceu a estática e estrita ordem medieval, em que a mobilidade social quase não existia e cada um se limitava a ocupar o lugar que a sua condição lhe permitia. Ainda que não seja exatamente verdade, esta vitória da modernidade trouxe com ela a ideia de que tudo é possível: o filho do operário pode tornar-se doutor e o filho do pedinte Presidente da República. Está bem longe de ser assim, como todos sabemos, mas o certo é que acreditarmos nesta falsa verdade nos dá imenso trabalho e um incerto proveito. 

O trabalho constante é o tributo a pagar por essa fé na infinita potência – poder de «sermos» mas sobretudo de nos «tornarmos» no que desejamos ser. Trabalho em primeiro lugar sobre nós próprios, adestrando o corpo e disciplinando a mente ao rigor produtivista e à competição com os demais. Conseguimos com essa alienação pelo trabalho uma vida obsessiva e despojada, que nos reduz a peças dispensáveis de uma máquina que devora o tempo que nos cabe viver. 

A preguiça obsessiva talvez não encontre melhor ilustração que uma genial personagem criada por Herman Melville. Falo, naturalmente, de Bartleby, um obscuro escrivão que quando tomou rumo na vida nunca mais visto a escriturar nada, nem sequer a fazer o que quer que fosse que se assemelhasse a trabalho. Atingida essa epifania, sempre que era instado a fazer qualquer tarefa respondia invariavelmente «I would prefer not to», permanecendo, depois, mudo e quedo, olhando absorto uma desinteressante rua das imediações de Wall Street. Note-se que não é propriamente a preguiça que torna Bartleby subversivo. Mais importante que a atitude é a sua proclamação: ao declarar que prefere não fazer o que lhe pedem, Bartleby desconstrói toda a lógica produtivista, e é isso que o torna subversivo. Preguiçosos todos nós conhecemos muitos, mas infelizmente poucos ou nenhuns como Bartleby. Alguns dos preguiçosos que conhecemos são, na verdade, o oposto deste escrivão: reivindicam uma azáfama que nunca têm e simulam um cansaço sem fim, como se carregassem em desprotegidos ombros incumbências própria e alheias. Um ar sofredor, ao contrário de contemplativo; cerviz dobrada às conveniências do momento; amizades cultivadas mais por interesse que por afeto; ausência de escrúpulos, ética ou pudor, são algumas das qualidades cultivadas por estes atarefados preguiçosos.

A preguiça que aqui interessa é coisa diferente. É a preguiça que vira o mundo de pernas para o ar sem que deixe de ser uma preguiça produtiva. É-o sem dúvida, só que a seu modo, pela inquietação que nos provoca, pelo questionamento das certezas que nos desabituámos de questionar. Enrique Vila-Matas escreveu um belo livro a que chamou «Bartleby & Companhia», onde discorre livremente e com acerto acerca da relação entre a escrita e a produtividade ou a sua recusa. Também a ele interessam os Bartlebys, “seres nos quais habita uma profunda negação do mundo”. Negação de um mundo e vislumbre de um outro, talvez se possa dizer também, mas em todo o caso a possibilidade de olhar e de ver de uma forma diferente. Como Pepín Bello, escritor espanhol convocado por Vila-Matas, que confessava acerca do pouco que escreveu: “Nunca escrevi com vontade de publicar. Fi-lo para os amigos, para rirmos, por troça”. Tantos livros que ficaram na sua pena, tanta escrita que não chegou ao papel; arrepelem-se os produtivistas tanto quanto se divertiram os amigos de Pepín. A preguiça é uma arte difícil, que às vezes se confunde com a consciência de impotência – e esta é outra das virtudes cardinais que têm ainda o poder de subverter a ordem malsã em que vivemos. Concluo, por isso, com uma citação do «Diário» de Kafka, repescado, também ele, da obra de Vila-Matas: “Assim passa o domingo aprazível, assim passa o domingo chuvoso. Estou sentado no quarto de dormir e disponho de silêncio, mas em vez de me decidir a escrever, actividade em que anteontem, por exemplo, teria querido mergulhar com tudo o que sou, fiquei muito tempo a olhar fixamente os meus dedos. Acho que esta semana estive completamente influenciado por Goethe, acho que acabo de esgotar o vigor de tal influência e por isso me tornei inútil”. Por aqui ficamos, mas pela parte que te toca conto continuar este inútil exercício na próxima ocasião.

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