terça-feira, 18 de outubro de 2016

BOB DYLAN E O PRÉMIO NOBEL DA LITERATURA

REGINA SARDOEIRA
Bob Dylan foi laureado com o Prémio Nobel da Literatura. Ia escrever que ele "ganhou o Prémio Nobel da Literatura" ; mas percebi que "ganhar" não era a palavra certa. 

O prémio é, como todos sabemos, uma soma considerável de dinheiro - e esse é um dos ganhos; é, ainda, uma honra que prestigia o laureado e o torna conhecido e reconhecido em todo o mundo. Creio que Bob Dylan não tem necessidade de dinheiro ou de fama, conquistou ambos há muito pelo que não sei muito bem o que lhe acrescentará este prémio. 

O certo é que o júri sueco entendeu atribuir-lhe o prémio. E, muito embora possa haver um número considerável de escritores com obra susceptível de granjear este reconhecimento, a verdade - que muitos, ao que parece, desconhecem - é que Bob Dylan é um deles. 

Curiosamente, deste artista ( vou chamar-lhe assim, para evitar equívocos) não há um acervo grande de obras, em livro, com as quais possamos encher as estantes da nossa biblioteca. Só conheço dois livros da sua autoria - Tarântula, de 1966, e Crónicas, Volume I, de 2006; mas, se quisermos pôr em páginas impressas o conjunto da sua extraordinária obra poética, obteremos, sem dúvida, um vasto conjunto de volumes. 

São, pelo menos, 37, os seus álbuns musicais, dos quais, maioritariamente, escreveu a letra das canções. Se cada álbum for constituído por dez faixas, são 370 poemas - e é perfeitamente possível contabilizá-los com maior exactidão. 

Chamei "letras" às palavras das canções porque com esta espécie designação tem sido minimizado o trabalho deste artista; mas eu sei que tais letras são poemas de grande qualidade lírica, de grande valor literário, de imenso poder social nos mais diversos campos que compõem a estrutura do mundo humano. São hinos políticos e religiosos, elegias românticas, homenagens, apelos, sons íntimos de um homem que sente e sofre, análises e críticas, visões apocalípticas ou ecos surrealistas...tudo isto e muito mais perpassa ou afunda-se na obra poética deste génio. 

O problema de quem tão levianamente tem atacado a legitimidade deste prémio de literatura, dado a um músico - dizem -, é nunca terem perdido tempo a ouvir os seus textos ou a procurar as palavras das músicas e a lê-las. 

Quando ele era muito jovem e se tornou, de um momento para o outro a voz de uma geração, o profeta e outros epítetos análogos, quem o idolatrou, até o ídolo não suportar mais semelhante endeusamento, ia escutar-lhe as palavras, ia ouvi-lo religiosamente. Quem conhece esses primeiros anos do artista sabe que ele tocava, sozinho, uma guitarra e uma harmónica, cantava com uma voz apenas razoável, mas inflamava as multidões com o poder das suas palavras. Quem conhece esses tempos do artista também sabe de que modo os fãs se revoltaram quando ele decidiu levar consigo uma banda e substituir a guitarra acústica pelo poder da electrónica. E a queixa principal desses ouvintes é que doravante já não poderiam ouvi-lo e às suas palavras - e chamaram-lhe Judas! 

Por isso, e desde cedo, foram a palavra, o contexto literário, a mensagem (se assim quisermos) que deram a Bob Dylan a fama e o estrelato. Creio poder afirmar que a música subjaz às palavras, acrescentando-lhes encantamento, sem poder desvanecê-las, enquanto palavras; e que é por causa delas que o artista, já com uma voz muito cheia de catarro e pouco agradável, continua o seu périplo pelos palcos do mundo. 

Claro que Bob Dylan é um músico, toca mais do que um instrumento e compõe as suas próprias melodias. Acontece que este prémio - o Nobel da Literatura - foi atribuído ao poeta e não ao músico. Este prémio - o Nobel da Literatura - reconheceu o valor humano universal das centenas de poemas que o artista escreveu e podem (devem?) ser lidos, degustados, interpretados, talvez. 

Mas os escritores, esses que têm uma obra feita e se sentem dignos do Nobel, ficaram indignados. Viram um estranho - "Pois Bob Dylan não é um cantor fanhoso com fama de antipático e com um passado de álcool e drogas?" - entrar no seu território; e sentiram-se melindrados. Sentiram-se feridos no âmago do seu preconceito elitista e, pior do que tudo: o anúncio do prémio apanhou-os desprevenidos. Nunca se tinham lembrado de ler os poemas de Bob Dylan, passaram ao largo dessa importante dimensão da sua obra e jamais levaram a sério as sucessivas nomeações para este prémio Nobel que vêm sendo feitas e o visam, exactamente! 

Inveja e ignorância - eis o que têm manifestado à saciedade as críticas idiotas à pertinência da identidade do laureado. E eu entendo, de novo, como podem ser mesquinhos os próprios escritores, esses que foram agraciados com o dom supremo da palavra e que, por tal razão, se crêem os melhores de todos, não tendo a humildade de reconhecer a excelência dos outros. 

Evoco o laureado Maxwell Coetze, ignorado e desprezado no seu país ( África do Sul), para ser erguido em grandes parangonas, logo que a Academia sueca o anunciou como Nobel da Literatura, em 2003. E contudo a sua grandeza de escritor já dera frutos - e ainda bem que ele ganhou o prémio pois foi, de imediato, traduzido para português e eu pude fruir de páginas ímpares! 

José Saramago, de quem fui lendo tudo, à medida que ele ia escrevendo e publicando, foi também um dos laureados. E eu assisti, atónita, a uma espécie de crucificação do escritor - que já havia desertado para as Ilhas de Lanzarote - pelos próprios portugueses que até hoje reclamam da justeza do prémio e, estupidamente, afirmam que Saramago escreve mal, porque não usa virgulas! E eu, que li a sua obra integral, e sei que as vírgulas estão lá, só posso pasmar para tão grande ignorância - não o leram, é claro, senão tinham visto esse e outros sinais de pontuação! 

Outros exemplos haverá da inveja e da ignorância dos que criticam ou falam do que nem sequer conhecem. Citei estes dois casos porque vieram a propósito, na corrente do meu pensar e me permitiram estabelecer a conexão com a enorme avalanche de comentários absurdos e ridículos que tenho lido, a propósito, desta vez, de Bob Dylan. 

O problema será, por acréscimo, das editoras livreiras, habituadas a editar rapidamente as obras dos prémios Nobel? Como vão fazer agora, já que os poemas também são canções e essas estão gravadas em disco? Conseguirão, de repente, inventar e fabricar, uma dúzia de livros de poemas da autoria de Bob Dylan? E haverá tradutores à altura para palavras tão especificamente sonantes em língua inglesa? 

Por outro lado, o laureado nada disse, até ao momento. Estava em concerto quando o anúncio foi feito e em concerto prosseguiu, sem dizer palavra sobre o assunto. 

Se bem conheço Bob Dylan, nada irá dizer, muito menos proferirá seja que discurso for e talvez nem compareça na cerimónia, no dia 10 de Dezembro, em Estocolmo. Ou, se bem o conheço também, talvez desperte um dia destes com vontade de dizer qualquer coisa sobre o assunto - que será, exactamente o contrário do que todos estaríamos à espera. Poderá rejeitar o prémio, se o conheço; mas também poderá aceitá-lo com regozijo e dizer meia dúzia de monossílabos, à sua maneira. 
Contradições? Exactamente: Bob Dylan é um homem cheio de contrastes e dotado de inúmeros modos de ser. 

Desistiu de ser Robert Allen Zimmerman e registou-se Bob Dylan; sendo judeu, veio a ser cristão e ao judaísmo regressou depois; casado e pai de filhos, quis abandonar os palcos e ter uma profissão das nove às cinco; trocou o folk pelo rock, foi para o blues e recusou ser a voz de uma geração e o profeta dos novos tempos; ganhou muito dinheiro, mas afirmou que, caso tal não acontecesse, continuaria pela vida fora a fazer o que ainda faz. Quando Todd Haynes quis fazer um filme inspirado em Bob Dylan, precisou de recorrer a seis actores diferentes, para encarnarem as suas diferentes faces... e o filme chama-se " I'm not there". 

E é por todas estas razões, e por muitas outras ainda ocultas, que poucos entenderão o valor deste homem complexo, mas reconhecidamente genial, e terão dificuldade em aceitar que, sem fazer nada para isso, sendo apenas um músico, cantor e autor, empenhado em continuar a gravar álbuns e envolvido numa existência pertinaz, própria daqueles que conseguem chegar a ser quem são, tenha vindo, afinal, a conquistar o mais alto galardão da literatura.

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