terça-feira, 6 de setembro de 2016

FUI COMPRAR UNS SAPATOS DE MULHER

SÉRGIO LIZARDO
É ainda de manhã. Recebo um telefonema: é ela.

– “Preciso de um favor teu!”, diz.

– “Diz lá…!”, respondo.

– “Pedi que me reservassem uns sapatos no Shopping, mas só mos guardam até hoje. Podes ir lá buscá-los?”

Respondo que sim. Ela não pode ir e, afinal, eu até estou umas dezenas de quilómetros mais perto. Ela agradece, e logo me dá as indicações necessárias: o nome da loja, e o tamanho, tipo de pele e cor dos sapatos e até a particularidade de eles terem um metal dourado. E até o preço! Anoto tudo para não esquecer, porque só irei de tarde, depois do trabalho…

Minutos depois, recebo um SMS: é ela de novo, que diz: “está em nome de… (o nome dela)”. Como se eu não o tivesse decorado ainda neste tão curto espaço de tempo de dezanove meses menos uma semana, mais coisa menos coisa… [Encolho os ombros, e escrevo o seu nome na cábula e desenho uma seta a apontar para ele – pelo sim pelo não!].

Saio do escritório ao final da tarde, tal como previsto. Chego ao Shopping e deixo, antes, um envelope nos correios – aproveito para o fazer. Dirijo-me então às escadas rolantes para subir de piso e sou, antes, abordado por uma menina que faz promoção de algo que não me interessa. Para, literalmente, a despachar, digo-lhe: “Agora não, desculpe. Vou comprar uns sapatos à… (nome da loja “feminina”)”. A menina, não só não insiste como recua um passo.

Subo, procuro a loja, encontro-a, e entro. Caminho para a área das caixas, onde não está ninguém que atenda nem ninguém que ali esteja para ser atendido. Olho à volta, vejo uma funcionária ao fundo e levanto a mão para a chamar – e espero que ela venha. Entretanto, chega uma senhora com um cinto dourado na mão e cara de desilusão, que me pede licença e me passa à frente. Chega a funcionária e, quando mal abro a boca para começar a falar, ela pergunta, não a mim que a chamei, mas à senhora do cinto, se a pode ajudar. Deixo-me estar. A senhora, muito triste, diz que o cinto não lhe serve. A funcionária pega nele e diz que é do tamanho maior que tem. A senhora fica mais triste, mas tenta de novo. A funcionária sai de trás do balcão, e sobe-lhe o cinto para a cintura, colocando-o lá, e não na anca onde a cliente insiste em colocá-lo. “Tem que o usar assim. Está bem, não está?”, pergunta ela, enquanto olha para mim como quem me faz uma pergunta – aproveito logo para interromper. “Desculpe! Eu venho buscar uns sapatos que ficaram reservados em nome de… (o tal nome...)”.

“Peço perdão! Pensei que fossem um casal, que estivessem juntos…”, desculpa-se a funcionária, apercebendo-se da ignorância que involuntariamente me dedicou (certamente não me achou fora do meu habitat, naquele lugar).

“Não faz mal!”, respondo.

E ela pergunta-me, então, enquanto já termina de atender a senhora e recebe o preço do cinto que se usa à cintura e não mais abaixo, sobre como são os sapatos que eu desejo levar. Digo-lhe a cor, o material de que são feitos, e que têm um metal dourado. Ouço risos atrás de mim. Risos de mulheres. De mulheres machistas. Aquelas eram machistas!

Sorrindo, a funcionária vai buscar os sapatos, logo volta, e coloca-os sobre o balcão. E ouço risos de novo, atrás de mim.

“É o 36?”, pergunto, referindo-me ao tamanho.

“Sim. Não é este o seu número?”, pergunta, por sua vez, a funcionária.

“Não!”, respondo – e digo-lhe o meu número… o meu número mesmo!

“Não temos esse tamanho…”, informa ela.

“Não faz mal! Levo só esses!”, exclamo . E risos se fazem ouvir, mais uma vez.

Pergunto o preço. Pago. E saio.

O saco é quase transparente. Por isso, enrolo-o com jeito. No fundo, porque sinto que ela não quer que mais nenhuma mulher veja os seus sapatos assim, e os cobice, e queira uns iguais – claro que é por isso!

Chego às escadas rolantes, no caminho de volta. Desço. Viro para a direcção por onde entrara, e vejo a promotora do produto que eu não quero mesmo comprar nem sequer ouvir falar sobre ele. Ela parece ter vontade de insistir. O olhar que me joga nos olhos, e a caneta que tem numa mão, e com a qual bate, ritmadamente, na palma da outra mão, assim me dão a entender.

Desenrolo o saco. Olho para ele. Vejo que se notam perfeitamente os contornos de sapatos de salto alto e o dourado do aplique, e prossigo. A promotora continua a olhar, ora nos meus olhos ora para o saco e, na frente dela, antes que ela me diga de novo que “é só um minuto”, desculpo-me, despachando-a de vez, balançando o saco: “Tenho uma festa!”.

Nem tudo é o que parece.

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