terça-feira, 20 de setembro de 2016

A APARIÇÃO DO ARCANJO RAFAEL

ELISABETE SALRETA
Passava férias numa zona calma onde o único som da noite era o canto dos grilos e o som surdo do mar lá longe. As vivendas iguais eram muradas à volta e os passeios tinham acácias com as suas cores e cheiro característico. Era noite, madrugada. Ouvi o som de uma travagem perto do muro das traseiras e por obra do acaso, fui à janela. Uma carrinha tinha parado debaixo de uma das árvores enquanto o condutor falava ao telefone e esbracejava ferozmente. Mas o que mais me intrigou foi a visão de um gato de riscas laranja e patas brancas que estava espalmado contra a lona da zona de carga da carrinha, com as unhas cravadas como a defender a vida. Estava cheio de medo e o seu semblante mostrava que a viagem não teria sido prazerosa. Aos poucos, largou a lona e desajeitadamente subiu para um dos ramos da árvore. Era um gato gordo, e o seu traseiro rechonchudo não ajudava a tarefa. Estava cansado, esgotado até. Tinha sido uma noite longa.

Assim que a carrinha arrancou, fui direita à porta da rua e em direcção ao stressado amigo. Por incrível que pudesse parecer, não mostrou qualquer tipo de resistência e deixou que o agarrasse. Acho que sentiu alívio, até. Abraçou o meu pescoço, rodeando-o com as suas patas, sem qualquer hostilidade, dando-me turrinhas de agradecimento. Ronronava como um motor. Ao pescoço trazia uma coleira com duas medalhas. Em nenhuma delas tinha morada ou número de telefone. Apenas o nome Rafael. Seria este o seu nome? Experimentei e respondeu, olhando para mim admirado. Como saberia eu o seu nome?

Bem, era certo que pertencia a alguém. Afinal, era claramente um gato de casa. Gostava de colo e de estar à janela ao sol. Era delicado e procurava a nossa companhia. Dei por ele a olhar os meus olhos como se transmitisse uma mensagem. Qual seria?

Após dois dias de descanso pensei que seria hora de voltar à sua casa pois este gato era de alguém. Tentei conversar com as gentes da terra sobre gatos no intuito de perceber se estariam à sua procura. Nada. Até que uma senhora de idade na mercearia do final da vila contou sobre um gato laranja que pertencia a uma família que só vinha ao final de semana. Durante a semana era alimentado por ela e faziam companhia um ao outro. Era o seu descanso. A família em causa tinha várias crianças, mal-educadas e mimadas, que lhe faziam a vida negra. Brincavam com ele como se fosse um trapo e até o chutavam contra a parede. Apanhavam-no pelo pescoço, puxavam-lhe o rabo. Guinchavam aos seus ouvidos tão sensíveis o que fazia com que andasse uns dias a abanar a cabeça. Pisavam-no ou tentavam vesti-lo como se fosse uma boneca de trapos. Os pais riam e não os repreendiam. Por vezes apanhava umas palmadas quando em defesa própria, mostrava a sua dor e os arranhava. Ele só queria que parassem, que o deixassem em paz. Quando podia, fugia e muitas foram as vezes em que a sua amiga vizinha o escondeu dentro de uma arca. Tinha muita pena dele. Desde o último fim de semana que não o via. Esperava que nada de mal lhe tivesse acontecido.

Pensei rápido. Olhei os olhos da velha senhora e disse-lhe. - De certeza que está bem. Vai ver que ele conseguiu ir para um sitio melhor, onde viva em pleno. A velha senhora entendeu-me na perfeição e pela sua face enrugada, rolou uma lágrima furtiva.

Trouxe o meu amigo anjo para casa que também é sua. Agora, todos os dias são para ele, dias de semana. Dias de descanso.

Temos de educar os mais pequenos para o respeito para com o outro. Seja o outro quem for. Cabe aos adultos ensinar a respeitar. E respeitar. Porque as crianças aprendem com o exemplo.

Os animais não são brinquedos. Têm sentimentos. Sentem dor, fome e medo. Querem carinho e dão carinho a quem os trata como igual.

Existirá melhor beijo do que um beijo dado com o coração?

2 comentários:

  1. Parabéns por mais um belo texto e por chamares a atenção destas atrocidades que fazem aos animais e por vezes também fazem aos humanos, nomeadamente aos velhotes...

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