sexta-feira, 19 de agosto de 2016

A MULHER NOS JOGOS OLÍMPICOS

DANIELA FONSECA
Dois extremos, duas civilizações, dois tipos de equipamento desportivo. De um lado os biquínis, do outro, algo mais protetor e compacto como um burquíni. O Rio de Janeiro continua lindo. E os jogos olímpicos também. De um lado, mulheres completamente tapadas, de outro, mulheres quase desnudas. Qual dos extremos deve prevalecer? A resposta reside algures numa terra chamada: “NIM”.

Ocidentais na forma de ver e de ler este texto, é certamente com alguma estranheza que vemos as atletas de alguns países árabes a participarem, em algumas modalidades, cobertas até ao último fio de cabelo. E, no entanto, o respeito pela diversidade deve ser mantido e honrado, tal e qual nos é proposto em diversos textos veiculados pela Organização das Nações Unidas, afirmando-se que a cultura assume diversas formas “através do tempo e do espaço, e que esta diversidade se manifesta na originalidade e na pluralidade das identidades, assim como nas expressões culturais dos povos e das sociedades que formam a humanidade”. 

Assim entendido, não vejo o porquê de as atletas desses países deixarem de usar, nos olímpicos, os mesmos trajes (embora adaptados) que usam no dia-a-dia. Quanto a mim, seria de uma suprema hipocrisia (e, de resto, impossível de contrariar) apresentarem-se de uma outra forma que não aquela a que estão sujeitas diariamente. Se se procurar observar esta realidade por outro prisma, poder-se-ia pensar que, obrigá-las às mesmas roupas das ocidentais, seria de violência extrema, uma vez que estariam submetidas a um padrão ao qual não estão habituadas na vida quotidiana (sem entrar por caminhos mais sinuosos que nos levariam à lei, humanidade/desumanidade, entre tantas outras coisas). 

Não sou, por isso, dos que criticam o uso deste tipo de vestuário, nem poderia sê-lo de resto, desde que seja desejado pelas atletas e que em nada atrapalhe a sua performance face aos adversários. 

O choque maior pode vir talvez da forma como, ocidental, vejo os equipamentos das mulheres ocidentais em quase todas as modalidades em que participam.

Sem falso puritanismo, acho um pouco exagerado que o corpo feminino seja objetivado da forma que é em inúmeros desportos olímpicos em que participam mulheres ocidentais, desde a ginástica, ao atletismo, ao voleibol de praia, à natação (o que até seria lógico). 

Estou certa de que o eterno feminino terá encantos que justificariam a extrema focalização mediática sobre as atletas, mas, como foi várias vezes lembrado nestas olimpíadas, talvez seja a hora de considerar a presença feminina por aquilo que ela efetivamente é, uma atividade desportiva desempenhada no feminino, e não pelo sentido de apêndice que representa. 

Num estudo recente da Universidade de Cambridge, sobre a forma como se têm vindo a realizar as coberturas mediáticas no desporto nas últimas décadas, em jornais, blogs, tweets e outros, sublinhou-se a diferença com que homens e mulheres são tratados pelos media, sendo que os primeiros são descritos pelas características físicas (velocidade, força) e as mulheres evidenciadas pelo seu estado civil, pela idade ou pela forma como se apresentam esteticamente em prova. 

Se melhor exemplo não houvesse, bastaria lembrar a atualidade desportiva com alguns casos. Começamos com Simone Biles, que chegou a ser apelidada de “a nova Michael Jordan da ginástica”, dizendo-se também que seria a próxima Michael Phelps, ou a próxima Usain Bolt, ao que sabiamente terá respondido, a ginasta, que era simplesmente a “primeira Simone Biles”. 

Um outro episódio insólito refere-se à atleta, medalhada pela terceira vez numa olimpíada, Corey Cogdell, cuja notícia da sua performance apareceu escrita da seguinte forma no Twitter do Chicago Tribune: “Wife of a Bears’ lineman wins a bronze medal today in Rio Olympics”. — Aí está: a mulher de alguém. Outros casos surgiram nesse sentido, como aquele que se refere à nadadora húngara, cuja vitória foi atribuída ao marido, seu treinador, assim que se fez um grande plano sobre a bancada. A esse propósito, o serviço público nacional foi replicando o que tem sido surgido lá fora, uma vez que também os jornalistas-comentadores que acompanharam a prova em direto frisaram esse facto. Eu vi e ouvi. 

Se outra questão não houvesse, que pensar da própria cerimónia de abertura em que a mulher brasileira aparece metamorfoseada na garota de Ipanema versão supermodelo Gisele!? Tenho sérias dúvidas de que haverá forma mais perturbadora de silenciar a inteligência feminina a não ser fazê-la desfilar de salto alto, pernas de fora, e fazê-la sorrir. Para a Gisele foi bom, é só uma das modelos mais bem pagas de todos os tempos, daí que inteligência seja um dos seus fortes atributos; porém, a questão que se coloca é saber como se reveem todas as outras mulheres representadas no estereótipo? — Bastará “desfilar e sorrir para que as coisas corram sempre bem?”

Sem querer fazer desta crónica uma apologia ao feminismo, torna-se significativo deixar a temática em cima da mesa, de modo a que não sejam as luzes e as cores da festa a obscurecer as nossas mentes mais ou menos anestesiadas com tanto brilho, seja no feminino ou no masculino. 

Atletas como Simone Biles, Patrícia Mamona, Allyson Felix, entre outras, merecem ser vistas como atletas e não como bibelots. Já existem demasiadas provas de automobilismo, ciclismo, em que o feminino se propõe apenas pelas minissaias ou pelos beijinhos aos vencedores. Imagine-se o ridículo que seria se, numa prova feminina do mesmo tipo de modalidade, surgissem dois belos rapazes de calção curto a beijar a camisola amarela, ou se, num qualquer salão automóvel, os mesmos modelos aparecessem deitados, em sensuais poses, em cima dos carros para incentivar as vendas das marcas. Ah pois é! 

É certo que o caminho tem sido trilhado aos poucos, basta pensar no histórico de uma prova a que as mulheres chegaram apenas em 1900, quatro anos depois da primeira olimpíada da era moderna, sendo autorizadas, na altura, a participar em cinco modalidades: ténis, regata, hipismo, golf, críquete. A verdade é que as coisas foram sendo alteradas com o tempo, passando-se de um rácio de 22 atletas mulheres/997 atletas totais, em 1900, para um quase fifty-fifty, 2016, no Rio de Janeiro. 

Sem contrariar esses indicadores, não deixa de ser curioso verificar que continua a haver uma clara desigualdade de género no que toca aos lugares de decisão da organização dos jogos olímpicos, onde o número de mulheres presentes nos corpos diretivos é sobejamente menor (aproximadamente 10%). 

Não sou a favor de quotas, mas também não considero que as mulheres devam ser tratadas com menos seriedade, apenas porque o são, seja nos olímpicos, ou em outro lugar qualquer.

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