quinta-feira, 11 de agosto de 2016

A MARIA DO CORREIO

HÉLDER BARROS
Estávamos nos anos sessenta do século XX e a distribuição de correio pelas freguesias de Portugal era ainda muito deficitária, pois o correio era transportado pelos serviços postais, essencialmente, entre vilas e cidades de Portugal, ilhas e províncias ultramarinas. Em Amarante não era diferente, o grosso do correio chegava à então vila por comboio e por carro, sendo que as freguesias, designavam pessoas que por uma ninharia, iam diariamente a pé à vila e transportavam o correio para distribuir por uma, ou mais freguesias. Vivíamos então, tempos bem difíceis e o magro benefício que cada carta ou encomenda representavam para o parco pecúlio familiar, não se poderia desperdiçar.

Maria era de Fregim e servia os Correios de Portugal, no Estado Novo. Numa altura em que começou a guerra colonial, a emigração em massa para a Europa, em que Portugal tinha muita emigração no Brasil e claro, tínhamos muitas famílias a viver nas ex-colónias ultramarinas, a comunicação postal atingiu grande expressão na nação portuguesa. Daí, ser conhecida como a Maria “a carteira”, “Maria cartas”, ou como mais gostava, a “Maria do correio”...

Era inevitável, numa altura com tanta notícia, em que o telefone raramente chegava às freguesias e mesmo assim, só a alguns privilegiados, a carta distribuída pelos Correios de Portugal, assumia-se como a grande plataforma de comunicação à distância. Hoje em dia, até os serviços públicos, bancos, serviços de águas, telecomunicações e luz, evitam ao máximo o uso deste poderoso meio de comunicação na sua relação com os cidadãos que, prevaleceu durante muito tempo, no topo cimeiro do domínio das comunicações em Portugal e no mundo.

A Maria conseguia ler muito bem, apesar de só ter a segunda classe do antigo ensino primário, mas como foi sempre ajudante de catequista na freguesia, desenvolveu excelentes aptidões de leitura. Este facto, fazia com que além de trazer o correio a cada casa da freguesia, Maria fosse a leitora em voz alta de muitas delas, nas boas e nas más notícias. Deste modo, a sua envolvencia com os problemas alheios era sempre muito forte, fazendo com que Maria chorasse nas más notícias com os parentes próximos dos malogrados e exteriorizasse a sua felicidade com os demais, sempre que a notícia apontava para os êxitos, nascimentos, boa saúde e indícios de progressos e de regressos ou visitas, para tempos próximos.

Maria era assim adorada por todos. Mesmo aqueles que receavam as piores notícias, esperavam com ansiedade por ela, mas sempre com esperança que Maria, como que num passe de mágica, lhe contrariasse as piores premonições. Todos a recebiam muito bem, mandavam-na entrar para as suas cozinhas, davam-lhe de comer e de beber, e assim, Maria apesar de caminhar muito, começou a ser uma rapariga bem roliça e corada, ficando com este hábito: vicio de comer e de beber a qualquer hora, sem restrições que, mais tarde lhe haveria de ser fatal.

Além do serviço dos correios, Maria trazia igualmente os jornais locais e nacionais, para os senhores da freguesia. Como nessa altura se aproveitava tudo, tempos de escassez, ela levava para a vila as carradas de papel, jornais e cartão, para reciclar, que eram pagos ao quilo, e de que ela recebia alguns trocos, por mais este duro complemento ao seu parco pecúlio mensal. Como sabia e gostava de ler, era a anunciadora das notícias locais e nacionais, qual ponto de acesso local à rede mundial de informação. Assim, anunciava as mortes das freguesias limítrofes e os acontecimentos mais relevantes do concelho. Alguns senhores da freguesia, mormente as senhoras, preferiam ouvir as leituras de Maria, do que ler elas próprias. Maria, foi desenvolvendo uma técnica de resumir o essencial das notícias, indo de encontro ao mais apetecível das mesmas, sendo o mais semelhante nos dias de hoje, a uma capa de um jornal sensacionalista.

Há na génese do ser humano, uma curiosidade quase mórbida pelos acontecimentos violentos, mortes, suicídios, atropelamentos, todo o tipo de acidentes que, despertam verdadeiramente a curiosidade e ansiedade pelas causas de tais acontecimentos: é estranho, mas faz parte dos desígnios da natureza humana. Assim, quando o sangue era muito, as senhoras presenteavam a Maria com iguarias e até com dinheiro, tal era a sofreguidão com que a ouviam a satisfazer as suas necessidades de saberem que o mundo está para acabar, que Deus nos abandonou, que a nossa freguesia ainda era um paraíso de Deus na terra e os casos de infidelidade conjugal que acabavam em tragédia, como no exemplo clássico de Camilo Castelo Branco.

Maria começou a ter problemas de saúde, engordou muito devido aos maus hábitos alimentares atrás relatados, provavelmente sofreu de diabetes não diagnosticados durante muito tempo, tal era a sua sede que, não sendo matada com água, mas muito por álcool, depressa lhe foi destruindo o fígado. O tempo foi passando e Maria ficou acamada e entretanto os correios de Portugal criaram uma rede de carteiros que se deslocavam de bicicleta, as velhinhas “pasteleiras” e o Mundo daquela mulher ficou, inopinadamente, sem sentido, deixando-se morrer sem esperança... e assim se conta muito resumidamente a história de uma entre muitos heróis dos serviços dos Correios de Portugal ao longo dos tempos. Nenhuma guerra, nem empreendimento se faz sem comunicação de qualidade e eficaz... os CTT, já não pertencem aos portugueses, o que nos deveria dar que pensar!

“As origens dos CTT remontam a 1520, ano em que o Rei D. Manuel I de Portugal criou o primeiro serviço de correio público de Portugal e o cargo de Correio-Mor do Reino, cargo extinto pela Rainha D. Maria I de Portugal em 1798.” In https://pt.wikipedia.org/wiki/CTT

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