quinta-feira, 16 de junho de 2016

OS CORPOS INTENSOS E IMENSOS DE FEDERICO FELLINI

ANABELA BRANCO DE OLIVEIRA 
Fellini é, para o comum dos cinéfilos, o cineasta das personagens inesquecíveis, dos rostos feios e estranhos, das mulheres de seios grandes e de rabos enormes, das roupas e das fantasias hiperbólicas.

Intensos, franzinos, improváveis e extravagantes, os corpos de Fellini difundem a certeza da expressão criativa e constroem um poder estético em 8 ½ (1963), Roma de Fellini (1972), Amarcord (1973) e Cidade das Mulheres (1980).

Os rostos e os corpos fellinianos nascem de uma imaginação ilimitada. Normalmente considerado como o artista da imaginação, do surreal e do transcendente, Fellini aposta numa inevitável e intensa relação entre o cinema e a vida real. E, no processo criativo, desenhos, sonhos e caricaturas inauguram os futuros alvos da câmara cinematográfica.

São intensos, em Roma de Fellini, os seios das mulheres romanas e os corpos excessivamente gordos do velho que se lava à entrada do prédio, da dona da casa altamente moralista, da mulher quase despida que seca o cabelo na cozinha e do frade que recolhe esmolas nas esplanadas.

São intensos os gestos de Saraghina em Oito e Meio: na praia, são os protagonistas de uma sequência marcante quando a câmara percorre o rosto, o peito, as nádegas e o bambolear das ancas.

São intensas as manifestações corporais em Amarcord : o avô que deixa a cozinha para se aliviar das suas flatulências na sala; as exigências sexuais de um filho adulto e desequilibrado; o peito exagerado da professora de matemática ; o corpo intenso e imenso da dona da tabacaria, na sequência com o Titta. A imensidão física da dona da tabacaria espelha o desejo carnal dos dois, valoriza o volume e o peso do corpo no jogo da sedução e enuncia o desejo de um Titta descontrolado que o leva à claustrofobia e à febre. A mesma realidade é espelhada em Cidade das Mulheres na sequência entre Snaporaz e a velha feia que o conduz na mota até à suposta estação de comboios : a exposição dos seios, os pedidos de carinho e a violência das ordens sexuais assumem uma semelhança de gestos e de movimentos de câmara. O mesmo filme projeta também a imensidão física de Katzone, um conquistador improvável e o mistério físico inesperado e surrealista de uma mulher « sugadora » de moedas e pérolas através da vagina, num espetáculo de aparente ilusionismo.

São franzinos os corpos dos professores e da mãe de Titta de Amarcord, das avós pequeninas deRoma, das prostitutas de Roma e de Amarcord, dos hóspedes da estância termal de 8 ½ e das feministas de Cidade das Mulheres.

São improváveis os corpos que denunciam contrastes gritantes, percursos de comparações inevitáveis entre o belo e o feio, reações e movimentos inesperados. Em Roma, o rapaz de branco, elegante, distinto e delicado contrasta com todas as outras personagens do elétrico e da casa numa profusão de corpos e de cores. Em Amarcord, a sensualidade das odaliscas contrasta fortemente com a pequenez e a obesidade do marajá que, por sua vez, contrasta com a imponência física dos seus guarda-costas. A extrema fealdade e ar repugnante e estranho de Biscein contrasta fortemente com a intensidade do desejo das odaliscas. A insistência obsessiva e agressiva do tio louco de Titta contrasta com a aparência física de uma freira anã sem rosto visível. Cidade das Mulheres projeta um inesperado contraste entre a fealdade da mulher da mota e o charme irresistível de Snaporaz e entre a perversidade de um corpo imponente e o aspeto franzino de uma mãe severa em termos morais.

A extravagância dos corpos fellinianos caracteriza-se sobretudo na presença em grandes planos e planos médios de seios e nádegas avantajados. Em Roma de Fellini, a projeção de diapositivos dos monumentos romanos é interrompida pelo aparecimento de umas nádegas voluptuosas que fazem as delícias dos alunos e a atrapalhação dos professores. Cidade das Mulheres projeta uma intensa relação de pesadelo e submissão de Snaporaz com belas mulheres de seios avantajados e de nádegas torneadas que ocupam, inúmeras vezes, grandes planos e planos panorâmicos e que se bamboleiam ao som de uma série de músicas diferentes. Amarcord transmite o poder da câmara subjetiva dos jovens rapazes que percorrem as nádegas sensuais de Gradisca e as nádegas de todas as mulheres que, durante a feira de San Antonio, se sentam no selim das bicicletas.

Os corpos fellinianos não são estáticos : espelham coreografias. Os corpos manifestam-se nas danças de cabaret, nas imitações de vaudeville, na ordem de entrada e de escolha inerentes ao desfile das prostitutas dos vários bordéis, e nas coreografias do desfile de moda eclesiástica em Roma de Fellini. Em 8 ½, os hóspedes da estância termal dançam e marcham graciosamente ao som da música dos palhaços na sequência final. Em Amarcord, a coreografia entra, inesperada, na sequência da Gradisca no Grande Hotel : Gradisca, o princípe e os seus conselheiros movem-se em gestos preparados, ritmados, como que num bailado. No dia daquele misterioso nevoeiro, os miúdos, à porta da igreja, dançam e imitam gestos de instrumentos musicais ao som de uma música marcadamente ausente.

Para Fellini, os corpos nunca são vazios: tornam-se incessantemente fellinianos e são pedaços anatómicos que, na construção do discurso fílmico, definem um percurso identitário.

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