terça-feira, 14 de junho de 2016

MARCAS DO SAGRADO NO MUNDO PROFANO

REGINA SARDOEIRA 
Quando era estudante universitária, tomei contacto com Mircea Eliade, escritor e filósofo romeno, através do qual adquiri a consciência objectiva da existência do sagrado no mundo dos homens, desde tempos primordiais, quando os mitos davam resposta à percepção inexplicável dos fenómenos da natureza, tidos como misteriosos, fornecendo explicações e aquietando as mentes. Soube também que, no correr do tempo, a filosofia, e depois as ciências, ocuparam-se a dessacralizar as respostas às grandes questões primordiais - O que é o mundo? O que é o homem? - pondo a razão e a experiência ao serviço da investigação da natureza e substituindo, gradualmente, as explicações míticas por explicações racionais, alicerçadas no testemunho da experiência e na verificação das hipóteses. 

A verdade é que nunca a razão humana conseguiu dar uma resposta cabal a esses grandes porquês - que é o mundo?, quem sou eu? - e a todos os outros que, numa teia inextrincável, a eles estão necessariamente articulados. Por essa razão, o sagrado e o profano subsistem, entrelaçados, no mundo dos homens: um - o sagrado - dando lugar ao outro - o profano - e vice-versa, numa dialéctica nunca ultrapassada. 

Mircea Eliade ensinou-me que nas comunidades primitivas o local de culto erguia-se no centro do território e era à volta dele que a população erguia as suas habitações. O símbolo de culto poderia ser, somente, um poste, uma coluna, que representavam a união do grupo e que, nas épocas de nomadismo, eram transportados para erguer-se onde quer que a tribo assentasse por algum tempo. O símbolo tinha tanta força que, no dia em que a coluna foi destruída, as pessoas perderam o rumo, dispersaram-se e deixaram-se morrer. 

Os séculos fluíram, as religiões assumiram o controlo do sagrado no mundo. E os rituais tornaram-se as práticas, pelas quais os homens reactualizavam o vigor dos dias plenos da criação do mundo, plenitude essa desgastada por todo um ciclo de ocupações profanas. 

A celebração do ano novo, por exemplo, tinha, entre muitas tribos ancestrais, o poder de recriar o tempo, anulando todo o passado e restituindo-lhe o vigor e a pureza dos primórdios. Nessa passagem os excessos eram permitidos, e, nas festas do fim do fim do ano, os homens cantavam e dançavam entregando-se à euforia pois, a seguir, dar-se-ia a reactualização do tempo, do mundo e do próprio homem, os pecados seriam perdoados e um novo ciclo, de energias revigoradas, tomava lugar.

Esta dicotomia, sagrado-profano, tempo/espaço sagrado-tempo/espaço profano, persistiu ao longo dos milénios, está enraizada em nós, cidadãos de um mundo e cidadãos de uma outra esfera intangível, cujas marcas encontraremos, se o quisermos, na vida quotidiana. 

Pouco importa que sejamos ou não fiéis de uma qualquer religião, que acreditemos em muitos deuses, num só, nomeado e nomeável, ou que alijemos de nós a carga de uma crença específica e todo o seu séquito de rituais concretos. A sacralidade, inerente a múltiplas celebrações com que vamos pontuando o nosso calendário, revela o apelo metafísico que, sem que o consigamos explicar, irrompe, em datas precisas, para nos reenviar ao passado, tornando-o presente. 

Pensemos, por exemplo, no modo como celebramos o aniversário. Reunimos família e amigos, partilhamos um bolo no qual acendemos as velas, correspondentes aos anos que completamos naquele dia, formulamos um desejo e, depois de cantado o hino tradicional de parabéns, sopramos as chamas e dividimos o bolo para ser degustado por todos. O que foi que fizemos, então? 

As velas representam os anos que vivemos até àquele momento: acendemos o passado por uns escassos minutos e depois, perante todos, extinguimos esse clarão. Apagámos, desse modo, o tempo que passou, partilhamos com os nossos próximos o seu esplendor, quando comemos as fatias do bolo saboroso, permitido-nos festejar a entrada num novo ciclo em que regressamos ao dia do nascimento, para viver de novo, desde o princípio. 

Ainda que não tenhamos inteira consciência do que fazemos nesta comum celebração, ou que apaguemos as velas, e formulemos um desejo, porque essa é a tradição, a verdade é que estamos a reactualizar o tempo, abolindo o peso dos anos transcorridos. E esta é a memoria colectiva de que todos somos herdeiros. 
No nosso universo de portugueses temos uma cultura fortemente marcada pela religião católica e respectivos rituais. As igrejas, os mosteiros, os cruzeiros, e todos os sinais visíveis do acervo religioso espalhados pelos cantos do país, são marcas expressivas da sacralidade que resiste ao vigor da profanidade, a querer instituir-se. Sem êxito. 

MOSTEIRO DE S. GONÇALO
DR
Falemos da igreja de S. Gonçalo, ali, no largo emblemático da cidade de Amarante. Vejamos como ela se ergue, esplendorosa e ressumando a história de varias intervenções e a marca de vários estilos arquitectónicos e decorativos. Há um espaço profano que a circunda - dois cafés, algumas lojas e casas de habitação e toda uma envolvência onde avulta a ponte sobre o rio e o próprio rio - e uma porta deve ser transposta para aceder ao local de transição, onde a água benta representa o símbolo da purificação para quem vem de fora. Franqueado o umbral da igreja, acedemos a um outro mundo, solene, fresco, penúmbrico, onde, insensivelmente, silenciamos a voz e afrouxamos o vigor dos passos. É o sagrado que irrompe e nos acomete, levando-nos ao recolhimento. 

O altar está virado para leste, onde o sol nasce; e para lá incidem as preces e os cânticos dos fiéis, na missa, como se rendessem tributo à grande estrela, condição da vida na terra. Depois, a saída faz-se pelo lado oeste, e mergulha-se, novamente e sem transição, no espaço profano. 

LARGO DE S.PERDRO, EM AMARANTE
DR ANABELA MAGALHÃES

Destaquemos a missa católica entre os rituais dessa religião. Nela tem lugar nova reactualização, que, a ser vivida em pleno, por todos os que nela participam, traz ao presente os acontecimentos da vida e morte de Jesus Cristo, esse que, pelo seu contributo no tempo em que viveu, deu origem à religião cristã (e a uma nova era histórica). Todos os crentes que realmente participam nesta celebração devem poder tornar presente esse tempo de há 2016 anos, estabelecendo um elo com o Cristo que inspira o ritual. 

Estas e muitas outras cerimónias, como a celebração do natal, cujo objectivo religioso é festejar, reactulizando -o, um nascimento, tido como sagrado, oferecendo prendas, como nesse dia remoto, e unindo a família, à semelhança da humilde família sagrada. 

O nosso tempo mantém a dicotomia sagrado/profano e não adianta dizermos que somos ateus, que não acreditamos em Deus ou nos deuses ou que as religiões não nos interessam, enquanto culto pessoal. 

Celebramos datas e efemérides: fazendo-o, evocamos, presentificando-os, tempos e personagens de outrora; os feriados pontilham o calendário e, neles, desligamo-nos do ritmo ordinário do trabalho, acedemos a um hiato de diferença - mesmo que não saibamos muito bem, ou nos seja indiferente, o motivo da comemoração. 
IGREJA DE SANTA MARIA, MARCO DE CANAVESES
DR 

Todas as semanas interrompemos por dois dias a rotina e, mesmo não celebrando o domingo cristão /católico, entregamo-nos a actividades só nossas fazendo desse dia um hiato, no seio da rotina. 

Inevitavelmente, decerto porque insatisfeitos com a nossa finitude individual e colectiva, tendemos para horizontes metafísicos, queremos transcender -nos, mesmo não percebendo, racional e cientificamente falando, porque aspiramos ao infinito, ao absoluto, mesmo ao sobrenatural - ainda que a razão não seja capaz de compreendê - los. 

Kant, filósofo racionalista, formado no Iluminismo e profundo estudioso dos poderes e limites da razão humana, deparou-se com o problema insolúvel, no plano teórico ou especulativo, de conhecer fenómenos metafísicos, tais como Deus, a Alma e o Mundo. Percebeu, contudo, que a razão humana tem o singular destino de aceder a ideias, que não consegue explicar, por lhe faltar o fundamento empírico capaz de dar-lhes a necessária interpretação cientifica. 
CRUZEIRO, EM CASTELO BRANCO
DR
Por essa razão, e crendo firmemente que tais ideias da razão, existindo nela, teriam que ser levadas em conta, chamou-lhes postulados da razão prática, essa que fundamenta a ética e dá ao homem, pelo próprio homem, as regras da conduta no mundo. 

Também ele, à semelhança do que fez Mircea Eliade, ainda que com outra terminologia, criou a separação entre as funções da razão humana. Uma, a pura, teórica ou especulativa, parte da experiência e formula as leis da natureza; outra, a prática, desliga-se da função cognoscitiva e orienta-se para as normas da vida moral, tendo, como horizonte, a vocação metafísica do homem. 

Podemos ser ateus, pragmáticos, utilitaristas, pessoas que apenas aderem ao que podem ver, sentir, palpar (...); no entanto, se quisermos ser verídicos e observarmos, com honestidade, o nosso comportamento individual e colectivo, não poderemos deixar de perceber esse fluxo do sagrado, em nós, essa vocação metafísica que, seja na fruição estética ou na celebração das festas, nos transporta mais para além. 

Que o nosso tempo surja como uma amálgama, quantas vezes aberrante, de ritos sagrados e exibições profanas ou que seja cada vez mais difícil estabelecer a linha divisória entre as duas realidades, isso não invalida que, querendo nós, não seja possível perceber e aceitar que o mistério persiste e derrota cada vez mais o desejo humano de tudo conceptualizar, de tudo reduzir a fórmulas. Sabem-no os grandes cientistas, soube-o Einstein quando intuiu uma nova ordem do universo que apenas a matemática (essa ciência repleta de enigmas e contudo a mais certa de todas) permite justificar, e para a qual a experimentação não conseguiu ainda reunir os dados necessários. 

(Falei de Mircea Eliade, tendo por base, principalmente, a obra O SAGRADO E O PROFANO e de Immanuel Kant, com referência à CRÍTICA DA RAZÃO PURA e à FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS COSTUMES. O leitor pode verificar, nelas, o rigor das minhas palavras, já que, pela minha parte, abri mão de compulsar os livros respectivos.)

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