quinta-feira, 17 de março de 2016

MARÇO, MARÇAGÃO

Ouço sempre o mesmo ruído de morte que devagar rói e persiste…
In Húmus, de Raúl Brandão.

ANABELA BORGES
Assim começa um dos meus livros favoritos, um daqueles livros que temos vontade de retomar a cada instante, ler e reler para absorver o seu conteúdo, único e feroz, sobre as fragilidades da condição humana.

Somos pó. Ela dizia, “somos pó. Morremos e pronto. Não há mais nada. O nosso corpo apodrece na terra até ficar só pó”.
Desde sempre, ela acreditara que fosse assim. Desde que percebe o que implica morrer, que entende o processo desta forma. Simples. Por isso, custava-lhe tanto que a morte viesse e fosse levando as pessoas à sua volta, uma a uma. Por parecer tão simples, era tudo mais difícil.
E quando alguém partia, ela enfraquecia sempre um bocadinho. Era o corpo que não se ajudava, não tinha forças; era a cabeça que tombava pesada e doía. A morte era dura. Era dura, escura e cruel. A morte era fria. Ficava envolta em tal onda de frio quando estivesse alguém para morrer, que as tremuras, a náusea, a palidez tomavam-lhe conta do corpo.
Tudo se tornava difícil de suportar. E, apesar de tudo, ao outro dia era preciso arranjar forças e andar – o rosto desfigurado do espanto e do choro, o rosto envelhecido e curvado. Era preciso tratar de coisas – porque, afinal, nós é que estamos vivos; é preciso ir enterrar os mortos.
Vai-se, de arrasto, enterrar os mortos. E o ruído de morte rói e persiste ainda por muito tempo. Persistirá.

Estamos em Março e eu podia pôr-me a falar dos dias mais luminosos e da Primavera que está quase a chegar. Mas não.
É Março, mas ainda me soa a Janeiro. E Janeiro é para mim um dos meses mais difíceis e tristonhos do calendário – mês longo, escuro, melancólico, frio, ausente.
Este ano, o frio prolongou-se em Março (pelo menos na 1.ª metade) – o frio da meteorologia e o frio que ronda a morte.
Desde Janeiro que ainda não deixou de ser Janeiro. Março trouxe-me momentos fantásticos com crianças (o melhor do mundo, afinal!), trouxe-me momentos de leitura e de afectos, mas trouxe-me também a morte. Levou-me pessoas e bichos – Março traiçoeiro, dá com uma mão, tira com a outra.
E o ruído rói e persiste, e o choro, o espanto, o frio.
Uma vez entre outra, a recusa da morte aplaca-se um bocadinho, atenua, trazendo alguma paz de espírito.
Não é possível aceitar a morte, mesmo sabendo, desde o início, que ela é a parte mais certa da vida. É apenas possível esperar que ela nos traga algum conformismo.

Porque…
Há um vento que zurze no fundo das janelas.
Há uma luz apagada no fundo das almas.
Há um grito que procura o silêncio arrastado do fundo da noite.

Há uma dor ungida que nenhuma boca pode calar. 

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