sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

O MAL TORNOU-SE BANAL?

GABRIEL VILAS BOAS
Há poucas horas, folheando um jornal fui abalroado por esta notícia: “Em 2014 havia 35 milhões de escravos no mundo; Índia, China e Rússia lideram o ranking”.

Li com atenção o corpo da notícia e levei mais uns quantos socos na minha alegria quotidiana. Tudo me parecia tão monstruoso quanto irrealista e absurdo, considerando o grau de desenvolvimento humano atingido em grande parte do planeta.

Só num ano (2014), o número da ignomínia cresceu seis milhões de seres humanos. Não consigo digerir tais factos, mas não é por isso que eles deixam de existir. Olho e volta a olhar para a notícia. Simples, fria, por ela abaixo escorria todo a banalidade do mal de que falava Hannah Arendt. E parece bem mais difícil lutar contra a banalidade do mal do que contra a própria maldade. A indiferença perante a injustiça absoluta ou a indignidade total é mortífera porque destrói o ânimo das vítimas.

Pego outra vez no jornal, procuro os donos do inferno e encontro potências económicas como a Rússia, a China e a Índia. Não consigo ganhar asco aos seus cidadãos nem me revolta a sua inação, pois conheço como há décadas são subjugados por tiranias e ditaduras. Ainda que continue chocado, ainda que me pergunte vezes sem como “Como é possível?!”, a História do século XX ensinou-me que Direitos Humanos foi um conceito banido do dicionário dos governos chinês, indiano e russo.

Não, não acho que a absurda ansiedade de poder e riqueza explique o que quer que seja, nesta atitude animalesca de fazer um semelhante escravo. Também não penso que os russos, os chineses ou os indianos sejam o pior que a humanidade tem para mostrar. O problema é mesmo da cultura e mentalidade política dos sucessivos governos destes países. Não sei se alguma vez mudarão o suficiente, mas pressinto que será um trabalho enorme no conteúdo e no tempo.

No entanto, o que mais me abale é pensar que todos os dias fazemos negócios com eles, que andamos a suspirar pelas encomendas dos russos, pelos negócios com os chineses, pelas calças de ganga produzidas na Índia. Sim, somos nós, os portugueses, os franceses, os ingleses, os dinamarqueses, os belgas, os italianos, os alemães que nos declaramos ao lado da liberdade e da democracia, que apertamos a mão que agrilhoa seres humanos e os escraviza vinte e quatro horas por dia.

Acho que sempre soubemos que eles faziam isso. Antes faziam-no com os próprios compatriotas, hoje fazem-no com emigrantes. A maldade é a mesma ou até pior, mas nós começámos por fingir que não víamos. E fingimos tão convictamente que hoje nenhuma notícia, por mais cruel que seja, nos perturba. Por vezes, tenho a sensação que a civilização ocidental é uma fraude, um simulacro de humanidade.

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