sábado, 31 de outubro de 2015

OUTUBRO: MÊS DEDICADO AO CANCRO DA MAMA

ANTONIETA DIAS
O mês de Outubro é dedicado ao cancro da mama, estando sinalizado o dia 30 de Outubro como dia internacional do cancro da mama. Tendo em conta a importância desta patologia num universo em que a população feminina é de 5 milhões, o cancro da mama é a segunda causa de morte por cancro na mulher.

Em Portugal são diagnosticados anualmente cerca de 4.500 novos casos o que corresponde a 11 novos casos por dia, dos quais quatro mulheres morrem com esta doença o que equivale a 1500 mulheres.
Certo é que numa elevada percentagem de casos é a própria mulher que que o deteta, através do autoexame da mama.

Esta doença tem um impacto social enorme, não só pela sua elevada incidência, mas também pela sua gravidade.

O fato de ser uma doença que altera a fisionomia da mulher torna-se ainda mais agressiva em termos morfológicos e psicológicos, fragilizando de forma severa a mulher que vivencia esta amarga experiência.  
Embora seja uma doença que afeta predominante as mulheres os homens não ficam excluídos dela, surgindo nesta grupo populacional numa percentagem cerca de 1%.

Fazer um diagnóstico precoce é de vital importância dado que a sobrevida modifica completamente. Temos pois, a possibilidade de o fazer dado que  o rastreio do cancro da mama está muito bem implementado e orientado no sentido de se fazer a sua deteção permitindo assim um diagnóstico muito precoce, uma intervenção terapêutica atempada e assertiva que irá minimizar as sequelas que possam daí resultar.

Cabe aos profissionais de saúde a responsabilidade em ensinar a mulher a fazer o autoexame da mama, mostrando-lhes o benefício e incentivando-as a fazerem a palpação mamária uma vez por mês.
Acresce ainda a necessidade de cumprir os protocolos estabelecidos no caso em apreço e dar seguimento às recomendações nacionais e internacionais já implementadas.

Todavia a investigação não pode ser esquecida e deve ser permanente pois é imprescindível obter mais conhecimentos para poder responder adequadamente com tratamentos mais eficazes e reduzir ao mínimo o impacto negativo que esta patologia tem na vida da mulher, sem contudo esquecer a manutenção da qualidade de vida e a melhoria contínua do seu bem-estar.

Em Portugal existe um programa de rastreio de cancro da mama da responsabilidade da Liga Portuguesa contra o Cancro, cujo objetivo é diagnosticar precocemente para poder tratar rapidamente.

Sendo esta uma organização não-governamental está sobretudo direcionada para a problemática oncológica e para além de todas as suas iniciativas organiza um peditório nacional que reverte a favor da própria liga e que se destina a ser aplicado em ações especificas relacionadas com o cancro da mama.

Esta iniciativa merece o nosso maior respeito, pelo elevado mérito que tem.

Apesar de existirem alguns fatores de risco conhecidos e que estão associados aos estilos de vida moderna da mulher, não podemos esquecer a importância da genética e da hereditariedade, que surgem numa percentagem de cerca de 5 a 10% dos casos implicando uma acompanhamento e um rastreio mais precoce das mulheres.
Assim, o autoexame da mama e a mamografia são os meios mais importantes para a realização de uma diagnóstico precoce, de tal forma que permite detetar tumores muito pequenos, nem sempre palpáveis em que a ecografia e mamografia têm um papel imprescindível na sua visualização, sendo praticamente observáveis na fase inicial levando à cura de centenas de casos, ou se não curarem são controláveis de forma fácil com tratamentos menos agressivo e com cirurgias menos invasivas.

A sobrevida das mulheres é muito maior se estes cancros forem diagnosticados numa fase ainda embrionária, sendo que a gravidade vai estar dependente do tamanho do tumor (tumores inferiores a dois centímetros tem uma sobrevida aos 10 anos de 85%), enquanto se o tumor já tiver dimensões superiores a dois centímetros ou se estiver metastizado a sobrevida aos 10 anos é inferior a 15%.

Transcrevo na íntegra o que consta no Portal da Saúde sobre o cancro da mama:
“O que é o cancro da mama?
O cancro da mama é um tumor maligno que se desenvolve nas células do tecido mamário. É muito mais frequente nas mulheres, mas pode atingir também os homens.
O cancro da mama apresenta-se, muitas vezes, como uma massa dura e irregular que, quando palpada, se diferencia do resto da mama pela sua consistência.

Que cuidados se devem ter para detetar o cancro da mama?
O diagnóstico precoce do cancro da mama é fundamental, pois aumenta as hipóteses de cura. Evita que o cancro se espalhe para outras partes do corpo, favorecendo o prognóstico, a recuperação e a reabilitação.
Para que seja diagnosticado precocemente, é importante que:
  • Faça um autoexame das mamas mensalmente, após o período menstrual;
  • Vá ao médico especialista em patologia mamária uma vez por ano;
  • Participe em programas de rastreio.
O exame clínico da mama pode confirmar ou esclarecer o seu autoexame.

Quais são os sintomas mais comuns no cancro da mama?
  • Aparecimento de nódulo/endurecimento da mama ou debaixo do braço (na axila);
  • Mudança no tamanho ou no formato da mama;
  • Alteração na coloração ou na sensibilidade da pele da mama ou da aréola;
  • Corrimento pelo mamilo, com ou sem sangue;
  • Retração da pele da mama ou do mamilo.
Ao sentir qualquer alteração nas mamas deve consultar o seu médico.

Como é feito o diagnóstico clínico do cancro da mama?
Para fazer o diagnóstico, o médico submeterá a mulher a um cuidadoso exame clínico e fará algumas perguntas sobre a história familiar. Fará também a palpação das mamas com as mãos, pois só assim poderá sentir a presença de um nódulo. O médico poderá solicitar alguns exames, tais como:
  • Mamografia: o principal exame das mamas, realizado através de raios X específicos para examinar as mamas. Como é muito preciso, permite ao médico saber o tamanho, localização e as características de um nódulo com apenas alguns milímetros, quando ainda não poderia ser sentido na palpação.
    Faça uma mamografia de rotina sempre que solicitada pelo seu médico. 
  • Ultrassonografia (ecografia): deve complementar sempre a mamografia e informa se o nódulo é sólido ou contém líquido (quisto).
  • Citologia aspirativa: com uma agulha fina e uma seringa, o médico aspira certa quantidade de líquido ou uma pequena porção do tecido do nódulo para exame microscópico. Esta técnica esclarece se é um quisto (preenchido por líquido), que não é cancro, ou de um nódulo sólido, que pode ou não corresponder a um cancro.
  • Biópsia: procedimento (cirúrgico ou não) para colher uma amostra do nódulo suspeito. O tecido retirado é examinado ao microscópio pelo patologista. Este procedimento permite confirmar se estamos perante um cancro da mama.
  • Recetores hormonais (estrogénio e progesterona): caso a biópsia permita o diagnóstico de um cancro, estes testes de laboratório revelam se as hormonas podem ou não estimular o seu crescimento. Com esta informação, o médico pode decidir se é ou não aconselhável incluir no plano de terapêutico um tratamento à base de antagonistas daquelas hormonas, isto é, medicamentos que contrariam o seu efeito. A amostra do tecido do tumor é colhida durante a biópsia.
Caso a biópsia detete um tumor maligno, outros testes laboratoriais serão feitos no tecido para que se obtenham mais dados a respeito das características do tumor.

Também poderão ser solicitados exames - raios X, exames de sangue, ecografia, cintilograma (exame no qual uma pequena quantidade de um produto radioativo é utilizado para obter imagens) ósseo, provas de função hepática etc. - para verificar se o cancro está presente em outros órgãos do corpo.
Todos os testes e exames solicitados e a definir pelo médico têm como objetivo avaliar a extensão e o estádio da doença no organismo.

O sistema de estadiamento do cancro da mama leva em conta o tamanho do tumor, o envolvimento de gânglios linfáticos da axila próxima à mama e a presença ou não de metástases à distância.

Há vários tipos de cancro da mama?
Sim. O tratamento e o prognóstico variam de doente para doente e em função do tipo de tumor.
Quase todos os tumores malignos da mama têm origem nos ductos ou nos lóbulos da mama, que são tecidos glandulares. Os dois tipos mais frequentes são o carcinoma ductal e o carcinoma lobular.
  • Carcinoma ductal “in situ” (CDIS): é o tumor da mama não invasivo mais frequente. Praticamente todas as mulheres com CDIS podem ser curadas. A mamografia é o melhor método para diagnosticar o cancro da mama nesta fase precoce.
  • Carcinoma lobular “in situ” (CLIS): embora não seja um verdadeiro cancro, o CLIS é, por vezes, classificado como um cancro da mama não invasivo. Muitos especialistas pensam que o CLIS não se transforma num carcinoma invasor, mas as mulheres com esta neoplasia têm um maior risco de desenvolver cancro da mama invasor.
  • Carcinoma ductal invasor (CDI): este é o cancro da mama mais frequente. Tem origem nos ductos e invade os tecidos vizinhos. Nesta fase pode disseminar-se através dos vasos linfáticos ou do sangue, atingindo outros órgãos. Cerca de 80 por cento dos cancros da mama invasores (ou invasivos) são carcinomas ductais. 
  • Carcinoma lobular invasor (CLI): tem origem nas unidades produtoras de leite, ou seja, nos lóbulos. À semelhança do CDI, pode disseminar-se para outras partes do corpo. Cerca de dez por cento dos cancros da mama invasores são carcinomas lobulares.
  • Carcinoma inflamatório da mama: este é um cancro agressivo, mas raro.
Há ainda outros tipos de cancro da mama mais raros, como o Carcinoma Medular, o Carcinoma Mucinoso, o Carcinoma Tubular e o Tumor Filóide Maligno, entre outros.

Como se trata o cancro da mama?
A escolha entre as diversas opções de tratamento depende do estádio da doença, do tipo do tumor e do estado geral de saúde da paciente. O especialista em patologia mamária é o profissional médico mais indicado para avaliar e escolher o tratamento mais adequado a cada caso.
Dependendo das necessidades de cada doente, o médico poderá optar por um ou pela combinação de dois ou mais tratamentos.
  • Cirurgia: é o tratamento inicial mais comum e o principal tratamento local. O tumor da mama será removido, assim como os gânglios linfáticos da axila. Estes gânglios filtram a linfa que flui da mama para outras partes do corpo e é através deles que o cancro pode alastrar. Existem vários tipos de cirurgia para o cancro da mama, que são indicados de acordo com a fase evolutiva do tumor, a sua localização ou o tamanho da mama. 
  • Radioterapia: utiliza raios de alta energia que têm a capacidade de destruir as células cancerosas e impedir que elas se multipliquem. Tal como a cirurgia, a radioterapia é um tratamento local. A radiação pode ser externa ou interna. 
  • Quimioterapia: é a utilização de drogas que agem na destruição das células malignas. Podem ser aplicadas através de injeções intramusculares ou endovenosas ou por via oral. 
  • Hormonoterapia: tem como finalidade impedir que as células malignas continuem a receber a hormona que estimula o seu crescimento. O tratamento pode incluir o uso de drogas, que modificam a forma de atuar das hormonas, ou a cirurgia, que remove os ovários - órgãos responsáveis pela produção dessas hormonas. Da mesma maneira que a quimioterapia, a terapia hormonal atua nas células do corpo todo.
  • Reabilitação: vem auxiliar os métodos de tratamento para que a paciente tenha melhor qualidade de vida. É feita através da cirurgia plástica de reconstrução e dos serviços médicos de apoio (fisioterapia, psicologia, etc.).
O tratamento cirúrgico é para tirar a mama?
Não necessariamente. Há diferentes tipos de cirurgia usados no tratamento de cancro da mama:
  • Tumorectomia: é a cirurgia que remove apenas o tumor. Em seguida, aplica-se a terapia por radiação. Às vezes, os gânglios linfáticos das axilas são retirados como medida preventiva. É aplicada em tumores mínimos.
  • Quadrantectomia: é a cirurgia que retira o tumor, uma parte do tecido normal que o envolve e o tecido que recobre o peito abaixo do tumor. É, pois, um tratamento que conserva a mama.
    A radioterapia é aplicada após a cirurgia.
  • Mastectomia simples ou total: é a cirurgia que remove apenas a mama. Às vezes, no entanto, os gânglios linfáticos mais próximos também são removidos. É aplicada em casos de tumor difuso. Pode manter-se a pele da mama, que auxiliará muito a reconstrução plástica.
  • Mastectomia radical modificada: é a cirurgia que retira a mama, os gânglios linfáticos das axilas e o tecido que reveste os músculos peitorais.
  • Mastectomia radical: é a cirurgia que retira a mama, os músculos do peito, todos os gânglios linfáticos da axila, alguma gordura em excesso e pele. Raramente utilizada.”
Em suma, o diagnóstico precoce do cancro da mama obriga a que a mulher esteja atenta a determinados sinais, conheça as recomendações e sobretudo que as cumpra.
É fundamental que a sua participação seja ativa dado que num número considerado de casos o diagnóstico é feito pela própria mulher.
Resta ainda fazer o apelo para a necessidade de todos contribuírem dentro das suas possibilidades com um donativo no peditório nacional organizado pela Liga Nacional Contra o Cancro.

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

HALLOWEEN

GABRIEL VILAS BOAS
Vivemos numa sociedade global. As tradições que seguimos já não são apenas aquelas que pertencem às nossas terras, aos nossos antepassados ou ao nosso país. Até porque nos tornamos muito mais críticos em relação a determinadas tradições, rejeitando algumas, deixando morrer outras, especialmente quando têm pouco que ver com os nossos valores.

Por outro lado, a vivência de qualquer tradição depende muito dos seus dinamizadores. E hoje a vida de uma tradição depende também do seu valor económico. É assim com o Natal (em detrimento da Páscoa), com o dia de São Valentim, com o Carnaval, com os Santos Populares. 

O Halloween ou Dia das Bruxas ganhou o seu espaço porque é uma mina para o comércio, mas também porque se dirige aos mais jovens e ganhou raízes na Escola, através da disciplina de Inglês. 

Não vejo nenhum mal nisso! Cada geração tem o direito a reconhecer-se em determinadas tradições e deixar no baú do esquecimento outras que pouco lhe dizem. Hoje ninguém censura o abandono da tradição taurina que Portugal teve muito arreigada durante grande parte do século XX. Não vejo porque censurar o Halloween apenas por ser uma tradição anglo-americana. As suas origens são celtas e sofreram ao longo dos séculos importantes variações, onde o pagão e o cristão se misturaram. Há, no entanto, um elemento nuclear nesta tradição, miscelânea de diversas origens: de uma maneira divertida, o ser humana quer enfrentar/afugentar a morte, espantá-la. É uma temática difícil de abordar junto dos jovens e esta festa, tão criticada por alguns por ser inglesa, acaba por fazer os jovens brincar com uma ideia que lhes podia parecer sinistra. 

Claro que a Escola foi forte dinamizadora desta tradição, promovendo atividades, eventos, festas. Mas isso nunca me pareceu mal. Mostrou uma tradição estrangeira que o marketing americano espalhou pelo mundo, como a coca-cola espalhou o pai natal vestido de vermelho e a troca de prendas no Natal. 

Gostaríamos que fossem as tradições portugueses a ter primazia? Que fosse colocadas em plano de relevância? Elas têm de valer por si e não apenas por serem portuguesas. Se os jovens não aderem a elas é porque deixaram de fazer sentido ou quem as dinamiza não as sabe promover. Mas nem sempre é assim. Por exemplo, na aldeia de Cidões, em Vinhais, que não tem mais de dezassete habitantes, são esperadas três mil pessoas durante este fim-de-semana para a festa da Cabra e do Canhoto. Com origens celtas, esta festa começa ao pô-do-sol do dia 31 de outubro e termina de madrugada com os rituais do acendimento da fogueira e a queima da cabra Matchorra num pote, com pão e vinho da terra. O ambiente é animado por música e danças tradicionais celtas e inclui a tradicional queima do bode, através do qual o povo quer simbolizar a queima das coisas más, do azar, das sombras. Como dizem em Cidões “Quem da cabra comer e ao Canhoto se aquecer, um ano de sorte vai ter!”. 

Este Halloween transmontano não se vende em lojas, não organiza bailes, mas atrai igualmente gente. Quando fazem sentido e são bem organizadas, as tradições não precisam de ter ciúmes umas das outras. Há espaço para todas e, além disso, nós pertencemos cada vez mais a um espaço cultural mais amplo.

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

PASCOAES - OS CONFLITOS ENTRE O REAL E O IDEAL


Pascoaes agradece a homenagem da Academia de Coimbra, em maio de 1951

TEIXEIRA DE PASCOAES
Um pequeno trecho do livro de Maria José Teixeira de Vasconcelos, “Na Sombra de Pascoaes”, que foi sobrinha e Secretária de Teixeira de Pascoais pode ler-se o seguinte: 

[..] No «Livro de memórias» descreve o seu doloroso encontro com o mundo da ciência:

«Lá vou, a caminho do liceu, pela rua escura e lajeada. Atravesso o Largo de S. Gonçaloe entro no antigo claustro apoaido em arcarias de granito. Ouve-se um barulho de rapazes e uma sineta: dlin, dlin, dlin! É o Zé do Hospital agarrado ao trágico baraço e a ralhar, de grandes barbas e aflitas e uma tempestade de rugas na testa espraiada até ao fraguedos do marão. Pobre velho de Deus, naquele inferno, entre caretas de demónios que não lhe permitem um único instante de sossego.

«Neste meio académico e ruidoso, eu era um ser inverosímil! Não sabia as lições, nem traçar a capa, nem
HELDER BARROS (cronista)
trilhar as ruas da vila. O estudante metera-se em mim como um intruso. Nunca me conformei com ele, com essa capa e batina talhadas para outro corpo. Olhava-me desconfiado e tratava-me por senhor: «-Quem é? Não o conheço...

«Jamais esquecerei o momento em que um novo personagem quer substituir-se à nossa pessoa verdadeira. É o momento em que nos separámos da natureza e nos adaptámos à sociedade. Essa transição do natural para o artificial é uma tragédia em certos temperamentos enraizados no âmago da terra. É uma tragédia que vai até à morte.

«Somos originariamente uma criação da nossa fantasia, como os demónios e os deuses; e depois começamos a ser um produto do meio. Isto é, dos outros. No princípio é o reino da fantasia, o período da infância, a idade de oiro, à qual sucede a idade racional em que perdemos as asas de anjo e ficamos depenados. A mocidade é já uma queda. O primeiro contacto violento da realidade, a primeira desilusão vitoriosa marca o fim da idade de oiro e abre-nos o ciclo tormentoso da mocidade. É quando Caim mata Abel e corre pelo mundo a gritar os seus remorsos.

«A sombra de um anjo vem prender-se à nossa vida e uma sombra nos persegue, dia e noite – a sombra de um cadáver. Diante dos nossos olhos desencantados decaem pessoas e coisas. Este rochedo, afinal, é pedra, nada mais. Quem o diria? Já não atingimos a verdade superior, tocamos a triste realidade. Tocámo-la, assenhoriámo-nos dela e de nós próprios. A nossa personalidade inferiorizada, limitada, torna-se mais facilmente apropriável. 

«Eu que fui um anjo sem o saber sou agora um demónio que se conhece»

Esta frase é uma revelação transcendente. Uma maravilha, um pensamento inspirado e incandescente que leva o Poeta ao encontro da Verdade e do rigor.

Ele é o mago, o visionário. De resto, esta saudade magoada da infância é uma constante na sua obra. Ele o diz como ninguém:
«Hei saudades de mim, De outro que fui, menino Que, uma vez, disse adeus E nunca mais voltou...»

Mas o estudante desajustado chumbou. E, por ironia, chumbou a português. O professor disse ao Pai: «Não sabe nem é capaz de saber!...» Mais tarde, este pobre homem veio a ser um grande admirador de pascoaes e lastimava-se, confessando o seu erro... Mas o futuro Poeta, fazendo um esforço de vontade, fez dois anos num só, na época seguinte... [..]

Pascoaes foi de facto um Escritor, Poeta e Filósofo panteísta. Neste pequeno, mas profícuo extrato de citações de Pascoaes, a que a autora brilhantemente aludiu, pode-se constatar a terrível luta interna que o Poeta sofreu, entre o ser natural e o ser social. Custou-lhe a adaptação à escola e à Vila de Amarante, pois a sua vida em Gatão foi de um constante enamoramento com as coisas simples, que o marcaram de forma indelével, estimulando a sua veia de Poeta e de Pensador.

Teixeira de pascoaes chegou a chumbar à disciplina de Português... quem diria?... os espíritos geniais são quase sempre maus alunos, pois estão seguramente numa dimensão superior, o que faz com que atalhem por caminhos diferentes, nas aprendizagens, sendo que, muitas das vezes, não se adaptam a um ensino que procura o grupo e não o indivíduo. 

Quando à sua vertente mística e panteísta, nada como ler um soneto que António Sérgio dedicou a Teixeira de Pascoaes, a quando da homenagem com que a Academia de Coimbra o consagrou, em Maio de 1951: 

«Ao Teixeira de Pascoaes
As pessoas são nada, e as cousas são tudo: Ah, se o pensaste assim, e se o disseste, É que infundindo-lhe alma, às cousas deste Um coração represo, arfante e mudo!
O penumbroso monte, o tronco mudo, Vivem na névoa humana em que os puseste; Tornaste irmão ansioso o vento agreste
E carinhosa a relva em seu veludo.

Bendito o canto teu, porque desperta Essa visão de uma alma já liberta
Das cadeias da luta e da miséria.

E ao paraíso ao cabo regressada, -Porque viu, ao fulgor da «”Vida Etérea”», Que as pessoas são tudo e as cousas são nada!»

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

DIA MUNDIAL DA TERCEIRA IDADE

PAULO SANTOS SILVA
Comemora-se hoje, o Dia Mundial da Terceira Idade. A comemoração de este dia, surgiu por iniciativa das Nações Unidas que pretendeu, desta forma, chamar à atenção para as condições financeiras, sociais e afetivas em que uma parte significativa da população desta faixa etária vive. Cada vez mais penso, que o grau de maturidade de uma qualquer sociedade se mede, em grande medida, pela forma como “trata” as suas crianças e a sua terceira idade. Claro está, que as diferentes culturas lidam com a situação de forma diversa. Existem, a título de exemplo, algumas tribos em que os mais velhos (carinhosamente tratados por anciãos) são os mais respeitados e ouvidos em todas as grandes decisões, uma vez que segundo os elementos mais jovens, são os que têm mais experiência de vida, logo mais conhecimento. Não é, no entanto, o que vemos no modelo de sociedade em que vivemos, nomeadamente em Portugal.

A nossa sociedade (que se diz moderna…), exige cada vez mais aos seus cidadãos no que às questões laborais diz respeito, deixando na maior parte das vezes pouco espaço de manobra a quem tem de cuidar dos seus. Surge, pois, a necessidade de as famílias se fazerem substituir nos cuidados que têm de prestar aos seus “menos jovens”, entregando-os à responsabilidade de lares, unidades de cuidados continuados ou centros de dia. 

No contexto da oferta, ela será variada e para todas as bolsas. Não sendo a minha área de conhecimento, não vou analisar se ela é boa ou má, embora tal como todo o cidadão atento, ouça por vezes nas notícias os relatos verdadeiramente arrepiantes dos maus tratos que são infligidos aos idosos, em alguns desses locais. Apetece-me, antes, destacar as boas práticas das chamadas Universidades Seniores. 

Socorrendo-me de um estudo realizado pelo investigador Ricardo Pocinho no âmbito da sua tese de doutoramento, dir-lhe-ei que existem cerca de 500 no país, com cerca de 50 mil alunos inscritos. Segundo este investigador, os alunos “apresentam índices altos de satisfação com a vida e baixos sentimentos de solidão. Além disso, não apresentam sintomas de depressão e ansiedade.”

Uma das disciplinas que frequentemente encontramos nelas, é a Música. Seja através de um Orfeão ou Grupo Coral, seja através de uma Tuna, a Música surge invariavelmente. Os antigos diziam que “quem canta, seus males espanta”. Talvez aproveitando esta máxima que mais não faz do que a apologia das propriedades terapêuticas da mais nobre das artes, os responsáveis pela definição curricular das diferentes Universidades não perdem a oportunidade de a incluir nas suas disciplinas. A meu ver, muito bem.

Também em casos clínicos de maior gravidade, nomeadamente nos que já não têm a autonomia física e mental que lhes permite frequentar as Universidades Seniores, a Música pode ser utilizada com excelentes resultados, numa das suas vertentes que é vulgarmente chamada de Musicoterapia. Esta terapia, utilizada inclusivamente nos cuidados paliativos de diferentes patologias, encontra-se bastante estudada e documentada, nomeadamente nos países do norte da Europa como a Noruega, a Suécia e a Finlândia. Curiosamente os tais modelos de sociedade que consideramos evoluídos e que, por vezes, damos “ares” de querer copiar, sendo que a fotocópia sai sempre de fraca qualidade… Talvez um dia reflita nestas páginas sobre o porquê!...

terça-feira, 27 de outubro de 2015

DEVOÇÃO HUMANITÁRIA


O único problema do nosso tempo é saber como se hão-de guindar as massas à vida e à cultura. Mais nada. A ciência tem pés, e anda por si. A arte vai de vento em popa no seu caminho, já glorioso de resto. Mas há uma grande parte da humanidade que nem sequer sabe andar ainda. E não há dúvida que é preciso ensiná-la a saber. Como? É o que resta saber. Os quadros da nossa cultura têm possibilidades que não foram nem de longe esgotadas (…) Mas para isso não basta só uma doutrina. É preciso também uma devoção humanitária.”
Miguel Torga, Diário IV, Coimbra

REGINA SARDOEIRA 
O grande problema da humanidade não passa, segundo a perspectiva de Miguel Torga, pelo desenvolvimento da arte ou da ciência, porque qualquer uma delas tem o seu rumo garantido. O que falta ao homem de agora é o acesso à cultura; mas, para que tal possa desencadear-se, não bastam as doutrinas, sendo necessário aquilo a que Miguel Torga chama “uma devoção humanitária”.

Analisada e sintetizada a perspectiva do autor, neste excerto, é legítimo questionarmo-nos sobre o que entende Miguel Torga por cultura e em que medida é que a cultura resolve as grandes questões de fundo do ser humano.

Será que ele está a referir-se ao conhecimento puro, à especulação abstracta? Será que ele pretende afirmar que a aquisição de saber, o estudo e tudo o mais que é comum associarmos à palavra cultura são suficientes para elevar as massas à vida, ensinando-as a andar?

Sem dúvida que o autor usa o termo cultura numa acepção mais ampla ou seja: segundo a óptica que caracteriza a humanidade como sendo, simultaneamente, produtora e produto da cultura.

De facto, desde que o homem é homem (e mesmo para chegar a sê-lo) que lhe foi necessário transformar o meio, quer cultivando os campos e criando aquilo a que hoje chamamos agricultura, quer construindo habitações, instrumentos, etc. e, progressivamente, alcançando conquistas tecnológicas que foram fazendo dele o que hoje é. Nessa ordem de ideias, o homem produziu uma natureza cultural que o transformou, produzindo-o, enquanto homem.

Ora, realizando toda essa tarefa cultural, patente na transformação contínua do seu habitat, a humanidade desviou-se, cada vez mais da sua génese, a ponto de nem sempre se reconhecer nas suas próprias aquisições e produções culturais, gerando, por essa razão, atentados à sua qualidade de vida, levando tão longe a transformação cultural que acabará por não conseguir sobreviver no seu próprio mundo. Daí que surja a necessidade de educar as massas, mostrando-lhes como usar a tecnologia, como usufruir do enorme avanço de que dispõem, sem lesarem o seu próprio ambiente, lesando-se, por isso, a si próprias.

Todavia, afirma Torga, não basta só uma doutrina, ou seja, não será pelas teorias que essa educação e essa ascensão das massas poderão processar-se, visto que a nossa cultura enveredou por certos caminhos – os da investigação especulativa, os do desenvolvimento económico, os da acumulação de riquezas, entre muitos outros – atingindo patamares espantosos de progresso, mas deixando por explorar os caminhos da pura compreensão do fenómeno humano. E é por essa razão que o autor fala em “devoção humanitária”.

De facto, urge que a humanidade, individual e colectivamente, entenda que a sua sobrevivência, a médio e a longo prazo, depende, essencialmente, da qualidade que conseguir imprimir ao seu estilo de vida e então, a devoção humanitária de que fala Miguel Torga terá que brotar da própria consciência dos seres humanos que, criando bens inestimáveis, condição de melhor nível de vida, nem sempre sabem estabelecer a fronteira entre o que pode e o que deve ser feito.

Escreve Roger Garaudy :

“ Nem tudo o que pode ser feito deve ser feito. Fabricar bombas atómicas, ir à Lua, fazer viver de forma vegetativa homens, cuja degradação biológica é irreversível, manipular amanhã a herança genética, circular à velocidade do som, nada disso constitui em si mesmo um bem absoluto.” (in Palavra de Homem)

Se detivermos a nossa atenção neste excerto entenderemos o que Miguel Torga pretende exprimir quando fala em cultura e em devoção humanitária. Os exemplos que Garaudy refere – construir bombas atómicas, ir à Lua…etc. – são, sem dúvida, produtos da tecnologia e, portanto, aquisições culturais. Porém, podendo ser feitos, deverão sê-lo? Ou seja: constituirão, em si mesmos, produtos culturais inestimáveis?

Necessário se torna, então, levar a cabo um profundo exame em que todos e cada um se compenetrem da qualidade do seu estilo de vida e decidam abolir o que de negativo existe e nos vai empobrecendo, enquanto seres humanos com dignidade e direitos já estabelecidos, e incrementar acções capazes de erguerem outros valores e outros estilos de vida aptos para nos restituírem o nosso verdadeiro mundo.

Na verdade, será à educação, num futuro que ainda não chegou, que deverá competir esta pedagogia dos valores.

Diz Edgar Morin:

“Um dos principais objetivos da educação é ensinar valores. E esses são incorporados pela criança desde muito cedo. É preciso mostrar-lhe como compreender-se a si mesma para que possa compreender os outros e a humanidade em geral. Os jovens têm de conhecer as particularidades do ser humano e o papel dele na era planetária que vivemos. Por isso a educação ainda não está fazendo sua parte. O sistema educacional não incorpora essas discussões e, pior, fragmenta a realidade, simplifica o complexo, separa o que é inseparável, ignora a multiplicidade e a diversidade.”

Pouco importa que o jovem estudante obtenha elevados valores na escala classificativa usada para estabelecer hierarquias e incluí-los em classes, as mais diversas; se faltar o elo que tudo articula, revelando o humano na síntese dos saberes, nada se cumprirá, de facto. E a devoção humanitária de que fala Torga e tanto sentido faz no tempo que vivemos não chegará a cumprir-se, cumprindo o humano dentro do humano.

Se, a certos níveis, a humanidade atingiu patamares elevados de evolução, nomeadamentedo ponto de vista artístico e científico, a verdade é que, em termos culturais, ainda não há uma plena consciencialização das massas, em ordem a dignificarem o estatuto que lhes é conferido pela evolução a que conseguiram aceder.

Falta-nos a verdadeira pedagogia, eclética e coesa, capaz de formar homens inteiros e não especialistas eficientes numa área e analfabetos em todas as outras. Falta-nos a tendência humanista do Renascimento que criou o Homo Universalis, feito da mesma massa dos homens de agora, mas disposto a tocar variados instrumentos na sinfonia da vida. Tornamo-nos incapazes de ver a amplitude do todo, fechados que permanecemos nas nossas conchas de auto-suficiência, desdenhando do valor do vizinho, afundando-nos em preconceito e medo, querendo ficar à margem, num castelo de ilusões. E, enquanto assim nos deixarmos submergir neste anátema de viver, nada poderemos transmitir às novas gerações que enviesarão caminhos e nos culparão, um dia, pelos seus fracassos – de que afinal somos inteiramente responsáveis, porque nos temos demitido de, verdadeiramente, educar.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

AS ANIMADAS TERTÚLIAS DE UM HOMEM INQUIETO

- «(...) Mas se reparares, há gente demais a viver uma vida de fachada, de mentiras que julgam ser as suas defesas. Vê agora a moda das mulheres com unhas de gel ou os homens sem cabelo que insistem, há muitos anos, em andar de peruca. Andam a enganar quem? Vê as pessoas que riem e mostram cara alegre mesmo quando sentem uma enorme vontade de chorar. (...) Há muita gente a fingir ter um grande amor que não sente ou a querer parecer mais do que aquilo que é. (...) ...pessoas que ficam caladas, por conveniência, em situações com as quais não concordam, dando a entender o contrário, por falta de assertividades, de firmeza e de caráter ou as que mostram indiferença nas escolhas, quando na verdade têm opiniões formadas. Vê as pessoas que fingem arrogância, superioridade ou modéstia. Vê aquelas que a pretexto de aconselhar ou para obter algo se mostram amigas e são autênticas manipuladoras. (...) - in As Animadas Tertúlias de um Homem Inquieto (palavras do personagemFiló para a sua interlocutora Luísa.

ALVARO GIESTA 
Não se trata, aqui, de nenhum extracto de qualquer sermão de sábio santo aos incautos peixes; sequer a obra segue a estrutura clássica de tal alegoria, que em longínquo século o santo fez: contudo, não deixou a obra de ter, em forma de "Nota do Autor", o seu "exórdio", de palavras simples, como convinha, pois também a obra é gerada de palavras simples postas na boca e no credo de pessoas simples... tal como convinha, se sermão fosse de santo aos peixes. Não deixa a obra de "expor" e "confirmar" nas propostas e nos louvores. Ao contrário do aludido sermão, não repreende, antes, ensina, apenas, e só, sábias verdades do saber e do não-saber, que buscam a luz no «nevoeiro da informação» daquele que, verdadeiramente, gerou a obra - o personagem central Filó - obra que se lê, sempre e com sabor renovado. Obra que tive o ensejo e prazer de apresentar aquando do seu lançamento em 05 de Maio de 2013, na Biblioteca Municipal de Alhos Vedros.

No meu entender, e depois de ler AS ANIMADAS TERTÚLIAS DE UM HOMEM INQUIETO, de Jorge Nuno, de fio a pavio, cheguei à conclusão e afirmo que estamos perante um livro, a que o autor chamou "romance", de cenas flagrantes da vida real –desculpem-me o "plágio" que faço ao tema FLAGRANTES DA VIDA REAL e a comparação que faço com a descrição de tais flagrantes cenas, que me habituei a ler nos verdes anos da minha juventude em certo capítulo das Selecções do Reader´s Digest. O conteúdo deste livro, deixo claro, dava bem, ou melhor, dá(!) bem para ser levado à cena. Pena é que não apareça por aí encenador ou argumentista que o transforme em guião, que o adapte ao palco para ser representado...

É com uma crua, real e nua evidência, tão actual, que o seu autor conduz os personagens – principalmente o personagem central da obra – a vias de facto, que nos inspiram ânimo para ultrapassar as contrariedades da vida, assente na transformação interior de cada um de nós, que ele mesmo nos propõe. Estamos perante um livro de cenas, segundo a minha perspectiva:

· Há no livro AS ANIMADAS TERTÚLIAS… toda uma repercussão social das causas psíquicas da sociedade, no entendimento do principal personagem, que o autor definiu como sendo a peça central da obra;

· Há, contudo, a incerteza do mundo na intervenção das peças secundárias intervenientes no leitmotiv da obra, a que responde, sempre, a sábia certeza do personagem principal – o Filó;

· Há um fervilhar de ideias nas suas acções conturbadas e emocionais (refiro-me ao personagem principal) e felizes momentos de invenção e criação literária.

Filó, é assumidamente um poeta, um sonhador… Filó, chega a ser, às vezes, quase um lunático sonhador envolto no «nevoeiro da informação» – "lunático", no bom sentido do termo, peque, porém, o termo pelo exagero. Um saudável louco sonhador que sonha sãs loucuras no seu interior com que pretende transformar o mundo, ultrapassando todas as barreiras nesses momentos de louco lúcido e sonhador.

Confesso que me custou "digerir" este livro. Não por ser prosa, mas também, pois me sinto mais à vontade em falar, sobre um livro escrito em poesia. É que, em poesia, estou na minha área de conforto, melhor dizendo, na minha posição de ataque; aqui, em prosa, tive que jogar à defesa. Mas a dificuldade não foi no entendimento da obra na sua leitura – que é um livro construído num português fluente e vernáculo – mas sim, porque é um romance em que não vejo nele aquela história que foi delineada, estruturada, obedecendo às regras que são impostas pela classificação literária do romance. Vejo nele, isso sim, uma história em permanente construção, ou melhor, várias histórias que se vão construindo e desenvolvendo ao longo do processo narrativo. Contudo, há uma personagem principal que se vai desmultiplicando consoante as situações vivenciais que lhe vão surgindo, mas que jamais perde a sua identidade e individualidade.

Neste processo criativo, de Jorge Nuno, parece-me que a criação literária se dá em quatro tempos:

· Casa/café/esplanada/tertúlia e boémias culturais na sociedade;

· A transposição dos lugares atrás citados (e das pessoas) para outros lugares mais longínquos no espaço e no tempo (guerras coloniais) ou até para cadeiras governamentais (ex: ministério da defesa) com a devida crítica que lhe subjaz;

· A intenção de fuga para lugares outros (imigração, por ex. ou centrais nucleares) na perspectiva de uma vida melhor, sempre sob a expectativa e a crítica;

· O regresso ao primeiro tempo com a tal sensação, generalizada, de um país tão ou mais apagado que no princípio. «Cada vez mais cinzento», como nos diz o autor. O que não é bem verdade porque, se há pessoas que pouco ou nada progrediram devido àquele desencanto total com a vida, outras fizeram de si o melhor, ou antes, tomaram, como exemplo, as inquietudes aventureiras de Filó e melhoraram nas suas perspectivas de vida. Quanto à peça central do livro – o inquieto Filó – até ele ultrapassou os seus medos e se aplicou mais no emprego e na criatividade, ainda que, por falta de tempo, tenha perdido o encanto pela escrita.

Este romance não é de fácil leitura até final; ou antes, não leva o leitor ao encantamento se pensa que vai encontrar no seu percurso aquele rosário de acontecimentos coloridos, que abarcam apenas a parte exterior dos seres e das coisas, num processo descritivo simples. Não. Aqui o autor, no seu processo narrativo, vai ao fundo da questão, ao fundo do ser, ao cerne das coisas. Uma das possibilidades de olhar este "discurso literário", é vê-lo como uma ferramenta de leitura e escrita do mundo que move conceitos e influências, que desloca identidades do seu meio para outro meio e que problematiza as relações humanas.

Há na obra um significado colectivo com a intenção de mover projectos (o projecto cultural) ligados à sociedade colectiva – tendo como colectivo a Associação onde os vultos, com pretensões literárias sãs, se reúnem. No fundo, em meu entender, é a tentativa de criar os valores que contribuem para a construção daquilo que se poderá chamar, na aspiração e sonho do personagem principal, a sua «comunidade imaginada». Esta obra é um produto de cultura política, económica, social e histórica – na acérrima tentativa do pseudo-culto Filó defender a sua aspiração a escritor, mas também aquilo pelo que luta e se luta no tempo actual que, afinal, é o tempo de hoje e de todos os dias.

Impõe-se agora a pergunta: - não será a transposição do escritor Jorge Nuno, nas suas aspirações legítimas, para a pele do inquieto sonhador Filó, que sonha quase sonhos de louco, com uma sã e contagiante loucura, pese embora a dificuldade que tem em impor os valores que propõe e defende?! Estou convicto que sim! Talvez esta literatura de Jorge Nuno seja o produto final das suas andanças ao longo da sua vida e da sua capacidade singular de observar o movimento das coisas, dos seres e do mundo, que passam ao lado duma sociedade que vive apenas a fugacidade do momento num processo de vida efémera.

Aqui o escritor Jorge Nuno não confunde o branco com o preto nem o preto com o branco – leia-se o que quero dizer no sentido figurado. A sua narrativa, por isso mesmo, é enxuta, seca, directa, fere como uma lâmina quando tem que ferir. Expõe quando tem que expor. Some-se-lhe a sagacidade intelectual de metaforizar a linguagem com a ironia, a síntese, o paradoxo, neste saber construir o texto, e mostra-nos o autor a sabedoria pretensiosa do personagem central da obra, com as suas pretensas incursões que faz em vários ramos do saber, deixando os seus interlocutores abismados com tal sabedoria de que se mostra ufano e vaidoso.

Da leitura da obra, uma certeza: da ignorância estamos apenas à distância de um passo.

E, com o Filó, rumámos aos caminhos do saber ficando-nos, contudo, pelos carreiros da aspiração. Obra que aconselho a ler e nela meditar, pois ela nos remete para a outra face do saber. Ou antes, do não-saber; da ignorância. Bem visível num breve apontamento do Filó quando dá a ler, à leitora Luísa, duas versões de poema que considera ter que levar à oficina da palavra para o passar à perfeição. É no desabafo da leitora, que lê o escrito, ou antes, os escritos sobre a mesma versão, que se vê que, afinal, a sociedade em que vive este «homem inquieto», de nome Filó, é bem maior na sua ignorância que no seu saber.

domingo, 25 de outubro de 2015

MUDA DANÇA

MIGUEL GOMES
Não existem, pelo menos palpáveis, necessidade súbitas de poupança energética que nos façam valsar um passo atrás no tiquetaqueado tempo que vamos pivotiando na ponta dos dedos. O tempo, essa invenção dimensional, vai-nos presenteando com a ilusória crepusculosidade de dias que se parece amontoar no vago espaço entre as orelhas humanas.

Ainda ontem trajava a mochila às costas e, já hoje, ou, na exactidão do relato, amanhã, terei como companhia na travessia até casa os fugazes pirilampos alados que se movimentam no zénite na rapidez de milhões de anos luz que medeiam os milímetros que separam o agora e o daqui a pouco.

O relógio atrasa-se, ou atrasamo-lo, mas acredito que ele poderia atrasar-se até infinitamente parar no momento exacto em que o tempo, acompanhado pelo eterno, descansaria cansado nos braços de um criador que o apraz fazer-se sentir criado, não na subserviência, mas no acto de ter sido criado no propósito que apenas um criador terá e, não obstante curiosidade, não é permitido saber à criação e à criadagem.

Contigo, tempo, no descalçado horário, virá arqueado um Outono adulto que trará pela mão, chutando o tapete colorido de folhas caídas que se estende no solo feito de nós, um petiz Inverno pouco habituado e fadado a telúricas tradições, querendo e crescendo saraivar e trovoar o quanto possa até se render ao novamente colorido trajecto da sua irmã, Primavera.

Os dias ficam mais pequenos, dizem-me, e eu sorrio. Pequenas ficam as pessoas, e as espigas que não são colhidas, porque os dias, esses, encerram ainda na sua inocência mãos cheias de caruma que se atiram para uma fogueira enquanto outras carregam golpeadas castanhas, ensalgadas, e as vazias, mãos, voltam a palma para o lume e, ocasionalmente, esfregam-se no rebuliço de um calor que lhes aquece, dentro, o erguiço.

Vamos tão rápido que até a frequência que nos pauta os momentos, o segundo, chega primeiro e faz-nos abrandar, tenta suster-nos não pela rédea, curta, mas pelos fugidios compassos entre o tempo em que nos sabemos e em que nos aprendemos, para nos direccionar para a ombreira de lousa, para a velha pia baptismal que faz agora a vez de lavatório, para nos baixarmos um pouco ao empurrar o velho portão que nos saúda resmungando no rangido quando lhe levantamos o ferrolho e o abrimos para entrar, ainda de cabeça baixa, não nos fuja a altura para uma parede deslocada pelo peso dos dias que descansaram no telhado. Ali, com a hora extra, permaneceremos sem dizer nada apesar das falas, dos risos, das castanhas que estalam e do pequeno puto que as segura na mão, quentes, e antes de as descascar agradece ao tempo o tempo que ele teve para, com os dois pés, debulhar o ouriço e tirar lá de dentro, não sem antes se espetar num espinho, uma castanha castanha.

Há uma propositada intenção de duplicar, sentidos e frases, acredito que seja dele, do tempo.

Os dias vãos nascer já altos, as noites cairão cedo e já formadas de estrelas, arrastando sobre todos uma espécie de película apaziguadora, a paz que o frio nos faz procurar no calor de casa, da roupa ou, nos mais felizardos e atentos, nas pessoas. 

De quando em vez, vá lá eu saber se é do tempo, da estação ou não, invisíveis golpearão as persianas e as portadas com arrufos ventosos e água condensada que escorregará no vidro como os dias por entre os meus dedos. Este tempo é um tesouro que só valorizamos depois de perder. Assim, ainda antes de o vermos contornar aquela curva ali ao fundo, há quem lhe chame destino, a providência humana faz-nos relembrar na infinidade de milésimos de segundo que existe entre cada inspiração, há quem lhe chame hora, que mesmo sem tempo há um tempo que se avizinha e nos quer ver, na pacatez de uma noite invernosa, a suster corajosamente o tempo, escondendo-o atrás das costas como se fossem a mais preciosa castanha, neta do outeiro.

Este tempo é nosso, façam-lo de muda dança, inteiro.

sábado, 24 de outubro de 2015

EM DIA DAS NAÇÕES UNIDAS

JORGE NUNO
Estamos perante o Dia das Nações Unidas, precisamente no mesmo dia e mês, em que se comemora os 70 anos da fundação da ONU – Organização das Nações Unidas, a qual foi criada logo após o fim da 2.ª Guerra Mundial. O seu surgimento, ainda debaixo de um forte clima emocional, teria (e ainda tem) como objetivo: “facilitar a cooperação em matéria de direito internacional, segurança internacional, desenvolvimento económico, progresso social, direitos humanos e a realização da paz mundial”, fazendo parte dela praticamente todos os Estados soberanos existentes.

Como forma organizativa, possui: um Secretário-Geral, que é o “rosto visível” da ONU; um Secretariado, responsável pela área administrativa e que promove e fornece os estudos necessários, assim como outras informações relevantes para o funcionamento desta complexa organização mundial; uma Assembleia-Geral, que tem fins deliberativos, onde se tomam, coletivamente, as mais importantes decisões; um Conselho de Segurança, onde era suposto assegurar-se as resoluções de paz e de segurança, já que há um caráter obrigatório no acatamento dessas resoluções; um Conselho Económico e Social, para “fomento da cooperação económica e social e promoção do desenvolvimento dos Estados”, particularmente dos mais carenciados de recursos próprios; um Conselho de Direitos Humanos, com o intuito de “fiscalizar e proteger os direitos humanos”; um Tribunal Internacional de Justiça, que funciona como órgão judicial. A complementar, existe: a OMS – Organização Mundial de Saúde, agência especializada em saúde, que tem por missão “elevar os padrões de saúde de todos os povos; o PMA – Programa Mundial de Alimentação, a maior agência humanitária do mundo, que “fornece alimentos, em média, por ano, a cerca de 90 milhões de pessoas em 80 países, as quais 58 milhões crianças”, sendo muito utilizado na ajuda em situações de catástrofes, que conduzem à existência de refugiados; a ACNUR – Agência das Nações Unidas para Refugiados; a FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, para “aumentar a capacidade da comunidade internacional para, de forma eficaz e coordenada, promover o suporte adequado e sustentável para a Segurança Alimentar e Nutrição global”; a UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância, que promove a “defesa dos direitos das crianças, ajuda a dar resposta às suas necessidades e contribui para o seu desenvolvimento”.

Como organização internacional, com sede em Nova Iorque, parece irrepreensível a intenção com que foi criada. Com esta estrutura, o alcance das suas medidas e os meios envolvidos, bem podíamos estar descansados quanto a um hipotético colapso da Terra, e fazer-se dela um lugar bem melhor para se viver em paz, em segurança, com melhor saúde, educação e pão para todos. Tendo decorrido sete décadas, podemos questionar: “Então, o que tem vindo a falhar?”, uma vez que ligamos o televisor, em horário nobre dos noticiários, e ficamos a par de todas as atrocidades cometidas impunemente pelos “senhores da guerra” e pelos “donos do mundo”, que respondem com: “mais bombas”, “mais extorsão” e “que se lixe os direitos humanos”.

Reconheço o mérito e o trabalho incansável daqueles que, dentro das várias organizações que compõem e dão visibilidade e utilidade à ONU, prestam um inegável serviço aos povos mais desfavorecidos e àqueles que fogem das guerras e da fome. No entanto, não posso deixar de referir o problema a montante e que poderia, atempadamente, evitar ou, pelo menos, não deixar alastrar a escalada dos conflitos bélicos, sejam quais forem as causas que os originam. Sempre me preocupou a constituição e forma de funcionamento do Conselho de Segurança, senão vejamos: “É composto por 15 membros, sendo 5 membros com poder de veto” [EUA, China, França, Reino Unido e Rússia]. Assim, dez desses Estados são eleitos pela Assembleia-Geral, de dois em dois anos. Uma resolução deste órgão, por mais ou menos importante que seja, só “é aprovada se se registar uma maioria de nove”, em quinze possíveis. Mas, pelo Art.º 27.º da Carta das Nações Unidas, basta o voto negativo de um único membro permanente e a resolução será bloqueada, ou seja, simplesmente não será aprovada, e o problema que lhe deu origem continua a arrastar-se e a agravar-se. Isto faz com que os países representados, como membros permanentes, são juízes em causa própria. Especificando, com um caso concreto, e porque é conhecida a importância estratégica (e bélica) dos EUA, da Rússia e China, quase sempre com posições antagónicas em relação aos reais problemas mundiais, aponto a “primavera árabe” e as consequências atuais na Síria. Houve encorajamento, em muitos países do norte de África e do Médio Oriente, contra os “eternos ditadores” que dirigiam os seus países com mão de ferro. Por simpatia e por vontade e rebelião dos povos, foram sucessivamente depostos. Foram encorajados os opositores ao regime sírio, do presidente Bashar Al-Assad, e apercebemo-nos que tiveram treino e receberam armamento dos EUA, além de estes largarem, declaradamente, bombas sobre aquele território, a pretexto do avanço do autoproclamado Estado Islâmico. Por seu lado, a Rússia apoia estrategicamente o presidente sírio – que tudo faz para “silenciar”, à bomba, a oposição –, com a Rússia a intervir com aviões militares, dizendo que destruiu centenas de alvos do Estado Islâmico e ocultando que faz o mesmo com os “rebeldes”, sendo o próprio primeiro-ministro da Rússia, Dmitri Medvédev, a negar publicamente, no canal da estação de televisão pública, esse apoio ao regime sírio. Como se isso não bastasse, é incrível o número de países “aliados” em ações militares no espaço aéreo sírio a despejar bombas, fazendo com que as populações procurem refúgio, e a Europa, mesmo com todos os perigos mortais até lá chegar, continua a ser o destino preferido, enquanto outros ficam em “campos de refugiados” na Turquia, que irá receber da União Europeia 3 mil milhões de euros para “estancar, temporariamente, o fluxo migratório”. Estrategicamente, interessa à Rússia, EUA e China que a União Europeia saia enfraquecida e descaraterizada.

No site do Centro Regional das Nações Unidas pode ler-se que “o Conselho de Segurança não conseguiu aprovar uma resolução que teria ameaçado com sanções contra Damasco [regime de Bashar Al-Assad] devido aos votos negativos dos membros permanentes – Rússia e China”. Parece estar tudo dito. Mas acrescento que se tivesse havido uma ação séria, responsável e coletiva, este conflito estaria mais próximo do fim e evitaria todo este drama e a morte de muita gente inocente, levando ao começo de uma transição política.

Assim, não há OMS, PMA, FAO, ACNUR ou UNICEF que aguente e a ONU acaba numa gigantesca instituição, sem força nem credibilidade. Gostaria de dizer, convictamente: “Parabéns ONU”.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

PROPOSTA INDECENTE

GABRIEL VILAS BOAS
Há pouco mais de uma semana, Merkel reuniu os seus parceiros europeus para lhes falar seriamente sobre o problema dos refugiados sírios na europa. Na sala instalou-se o silêncio dos cobardes. A chanceler queria saber quem estava disposto a receber refugiados e quanto estavam dispostos a contribuir para tamanha empresa humanitária. O incómodo sucedeu-se ao silêncio.

Verdadeiramente ninguém quer receber dos sírios nem está interessado em gastar mais de um punhado de euros para a sua salvação. Merkel deve ter pensado lá com os seus botões “O monstro que eu criei!”. E, realmente, este monstro de insensibilidade, arrogância e desumanidade, que se chama europa, cresce de uma forma assustadora.

Como sempre acontece no reino do fingimento e das conveniências, em que se tornaram as relações entre os países desenvolvidos, há sempre uma solução clean para qualquer problema. Os burocratas de Bruxelas já propuseram e Merkel teve de aceitar, a maioria dos Presidentes da EU até suspirou de alívio e o primeiro-ministro deve ter sorrido à Estaline: o problema dos migrantes resolve-se através da Turquia. A proposta é simples: os turcos ficam com os dois milhões de refugiados sírios nas suas fronteiras, servindo de estado-tampão à sua entrada na europa dos pseudo ricos e em os turcos trocam recebem três mil milhões de euros, ou seja, seis vezes mais do que aquilo que se pensava gastar com todo este problema dos refugiados. No entanto, o mais interessante da proposta da União Europeia à Turquia está na vontade da UE em acelerar o processo de integração turca na UE, passando por cima de todas as desconfianças em relação à qualidade da democracia da Turquia e da defesa dos direitos humanos. Para começar, a europa dará 75 mil vistos aos turcos para estes poderem, desde já, entrar livremente no espaço europeu, quando ainda há poucos meses isso estava fora de questão por questões de segurança.

Ao que parece os turcos já não são perigosos, já se tornaram em verdadeiros democratas, já não chacinaram os curdos, deixaram de ser uma ameaça islâmica e Erdogan deixou de ser o agente duplo que Berlim e Paris tanto temiam.

A proposta que a UE fez à Turquia é indecente, indecorosa, imoral. Humilha a europa antes de humilhar os sírios e traduz polidamente aquela triste frase que o primeiro-ministro inglês, David Cameron, quando comparou a vaga de emigrantes ilegais que tentavam entrar no Reino Unido a uma praga de mosquitos que urgia afastar para bem longe.

Acredito, sinceramente, que a Alemanha estivesse disposta a receber quase um milhão de migrantes e que também estivesse disposta a custear grande parte das despesas, mas Merkel sempre foi, antes de tudo, uma pragmática que privilegia a eficácia. Por isso foi a Ancara falar com o primeiro-ministro turco e apresentar-lhe uma proposta indecente dos valores em que a europa, em que me revejo, se fundou: democracia, solidariedade, humanidade.

Erdogan deve aceitar, acrescentado ainda mais uma quantas exigências para disfarçar o seu contentamento. Depois sorrirá como Estaline o fez em Yalta, quando Churchill sarrabiscou um esboço de uma europa dividida em dois grandes blocos políticos, dando o pontapé de saída para uma guerra gelada de quarenta anos.

Felizmente, agora a História demora menos tempo a acertar contas com estas figurinhas armadas em figurões.