segunda-feira, 17 de agosto de 2015

NOITE DE VERÃO

MIGUEL GOMES
O calor vem endiabrado outeiro acima ainda o diabo esfrega um olho, o sono ainda não se lembra de acordar e o silêncio sai estremunhado pelo cacarejar de um galo madrugador, sem receio de ser transformado em cabidela. Esta terra parece ter bafo de bicho, bravo, uma tríade de maldade, humanidade e oportunidade. O mato vai seco como mato se quer, espinhoso afasta quem dele se quer aproveitar, das viagens fugidias de um jovem casal que se desprende aos iniciáticos prazeres do mundo corporal, do pastor que pé lá é coisa que não lhe apetece colocar ainda que lhe fuja uma outra mais tresmalhada, de todo o resto que vigia o terreno com receio de lhe ter que chegar a enxada à mão e esta à terra. 

Só não afasta a mão falheira, o olhar tolhido de tudo o que lhe possa ser ocasião, diria que não era ladrão, mas vai já lá dar tudo ao mesmo, verão, a ponta do cigarro virada para a palma rugosa e agreste, o bocado de jornal que se fez atrás companheiro de retrete, a brasa, o sopro, o papel, a chama. Daqui a pouco, já o sino por eles chama. 

O lume vai estranhar a liberdade, olhará para todos os lados, sensoreando, saboreando antecipadamente a secura por onde se possa espreguiçar e pé ante pé, ou chama ante chama até se metamorfosear labareda, subirá encosta acima, desacostumado a cansaços mundanos, isso é lá para aqueles fulanos!, até ser já um bicharoco jocoso que à boleia do vento salta de poiso em poiso como uma pandemia que se alastra aleatoriamente pela fraqueza sem dono a quem governantes corjados votaram ao abandono.

Correm de calças na mão, no sufoco aflito de quem ouve no peito a árvore e o seu grito, de enxada, ancinho, sachola, pá, gravetos secos aos ombros e enquanto não se faz a chamada, já o dia é alvorada, correm esbaforidos como pastores adormecidos no posto, ladeira acima, chamando a si à força de braços um gado flamejante tresmalhado. - Ai se chega ao centeio!

Acodem-se uns aos outros, deixando no lenço sobre a cara o suor e o expectorado sufoco do fumo, o veneno que sabe a morte rápida de outrens e lenta, nossa. Atrás, a apreciar o espectáculo em vésperas de noitada, já com o calor do bagaço a invejar-se do braseiro carvoado rubro, sentado numa pedra onde adormeceu o orvalho nas noites frias, com o resto do cigarro a queimar o lábio gretado, descansa com as pernas esticadas e os braços atrás das costas, cruzados. É o doido, chamam-no, assim foi eleito por todos, até por quem nada quis saber dele. - Aqui d'El Rei!

Mas longe vão tempos monásticos, quem lhes rouba agora é democrata, as mulheres correm com as enfusas a vomitar água, os putos espreitam com as ceroulas ao fundo do cu o espectáculo dantesco, embora não saibam ou venham a saber quem foi Dante. Dante apenas o dia de ontem. O sino pica alto, o badalo sobressaltado e de olhar assustado vai-se soltando ao puxão forte de quem se apressou a subir quatro degraus na escada improvisada, semi-enferrujada, e vai puxando na cadência certa o baraço carcomido pelo tempo, sol e chuva, calor e frio.

O mato seco, o silvado misturado, meia dúzia de fetos, dois ou três casais de raposas e ratos a perder de vista, não pelo número, mas por serem minúsculos, saltam pelo monte abaixo confundindo-se com a massa de gente armada de medo monte acima. 

O dia amanhece. - Parece impossível o fogo dar-lhe assim de madrugada. - Isto tem dedo do diabo! 

O cabresto sufragiado sorri na pedra. Os homens à força de braço aram o fogo como quem planta receios do futuro e antes que se chegue o calor a terra onde não deva lamber, já o cabelo, as pestanas e sobrancelhas adquirem nova coloração, essência de fuligem. Uma ou outra cinza semi-incandescente escapa como pequena estrela cadente na noite, mas sobram ainda forças de quem amamenta, para ceifar o lume ainda antes de ser faúlha com as enfusas, jarros, baldes, tinas e bacias prenhes de água.

Por esta escapa, o lume andou a lamber as bordas da sorte, aqui já só nasce morte. - Pelo menos com esta jeira não nos preocupamos agora. - Para o ano há-de dar pastagem.

Aos poucos recolhem-se cada qual a seu pátio, uns comprovam no dedo o buraco que uma faúlha mais afoita fez nas calças, ali junto à ferramenta, dando lugar à gargalhada desatenta de quem se vê na vida como quem se lamenta. Os lenços sobre o queixo secam o suor da testa e sacodem o carvão da mão. É Verão.

Reza a tradição.

Se sempre foi assim, porque não continuar, melhor, maior? Pouco nos valha, ainda que nos arda a dor. É Verão e assim reza a tradição.

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