sexta-feira, 31 de julho de 2015

VIAJAR É VIVER

GABRIEL VILAS BOAS
De todos os projetos que a vida, atualmente, me apresenta aquele que mais me atrai é viajar.
Viajar com tempo e sem tempo. Viajar para conhecer pessoas, lugares e paisagens. Poder apreciá-las, entendê-las, aprender com elas. Poder apreciar uma paisagem não apenas com a máquina fotográfica; captar a magia dos locais, entender as suas gentes, a sua história e costumes. Sem a fome cega de querer absorver e conhecer tudo, mas, com a serenidade de quem quer apreciar os gestos, a singular maneira de viver dos outros.

Os livros, as fotografias, as televisões permitem ao nosso espírito maravilhosas digressões. No entanto, sinto que se trata dum prazer incompleto. Um homem precisa de viajar por sua conta, não por meio de histórias, livros ou imagens. Necessita de viajar com os pés e com os olhos, para entender por si, para entender o que é seu e também o que não é.

Um escritor sul-americano escreveu um dia que “Morre lentamente quem não viaja…”. Não podia estar mais de acordo. Viajar é a grande oportunidade que temos de derrotar a solidão. Na viagem, a alma muda de roupa e procura a felicidade.
Contudo é preciso perceber que viajar é muito mais que calcorrear sítios, fazer check-in em aeroportos, colecionar carimbos no passaporte. É predispor o espírito e o corpo para aprender. Fazer concessões, não formular juízos nem impor a nossa visão do mundo e das coisas. Por vezes, é mesmo preciso despir a alma de preconceitos. Mas dificilmente não teremos retorno. Um imenso prazer de viver será apenas um dos prémios de quem viaja. Há ainda o encontro com a beleza, com o conhecimento e connosco. Talvez a mais rica de todas as recompensas, porque nos trará a felicidade.

Viajar é um projeto que não acaba. Torna-nos senhores do Tempo, cidadãos de diferentes gerações e latitudes. Quando acharmos que nada mais temos a fazer na vida, quando pensarmos que os revezes da fortuna nos deixarão cruelmente despidos, viajar é uma forma de recomeçar, de nos dar coerência. Podemos ir longe ou perto, até porque a bolsa não é igual para todos, mas temos de ir. Como diria o poeta, o importante é partir. Depois há um mundo por descobrir: as cidades cosmopolitas, as montanhas misteriosas, a solidão dos desertos, os mistérios de povos e culturas, o medo, a adrenalina, a descoberta. Por vezes, também a desilusão e o vazio.

Viajar é viver… lentamente… saborosamente.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

QUANDO AS FÁBRICAS ERAM AS FÁBRICAS

ANABELA BORGES
Este é uma matéria que me é muito cara: falar sobre as fábricas da Tabopan e das minhas impressões, de quando era pequena e vivia muito próxima delas, na verdade quase dentro delas.

Durante os anos 70 e 80, a indústria de aglomerados de madeira de Amarante exportava para mais de 50 países e até deixou a marca nos tectos do Palácio de Buckingham. Mas havia muito mais nas e com as fábricas. Havia todo um movimento de famílias que trabalhavam e garantiam o pão diário através das fábricas. Até à falência, nos anos 90.

Nasci ali, numa casa inserida nos terrenos abrangentes à fábrica. Saí. Fui estudar. Regressei. E ali vivi até casar.

Eu costumo dizer, para quem conhece Amarante – para me situarem – que sou das fábricas.

“Antigamente, as fábricas laboravam vigorosamente, dando trabalho a grande parte das famílias da região. Os operários trabalhavam com ânimo e devoção e enchiam aquela estrada nacional, numa incursão alegre, despachada, a pé, em bicicletas, ou motociclos, à hora da saída, animados para irem para os seus quintais e para as suas casas, tratar ainda de vida, antes que fosse noite. Aquela actividade preenchia a vida económica da vila. E a casa de Lisinha também. Eram os seus clientes, os que almoçavam, espalhando-se pelas mesas da loja e da adega, os que merendavam, pelas grades do grande portão vermelho de ferro das fábricas, com uma moeda, “Menina, traz-me uma cerveja e uma sandes de queijo, e fica com o troco”. E a filha da Carminha costureira fazia o recado, mais um proveito para a Lisinha. Eram também os que compravam cigarros e guloseimas e mercearia. A casa de Lisinha era uma casa farta – de gente, de géneros, de tabaco e de fritos. Às vezes, as crianças chegavam lá, “Doiskentukies, Lisinha”, e ela, a iludir-se, a fazer-se de despercebida, “Não são para vós, os cigarros, pois não”, “Não Lisinha, são para o senhor José”, “Então, está bem”. Aquilo era uma roda-viva, uma casa de muita lida. O que importava era vender, “Amealhar hoje, porque amanhã ninguém sabe”. Agora, o povo antes quer supermercados e cafés e aquelas lojas onde as máquinas fazem tudo. E os computadores também. As fábricas fecharam. E a loja de Lisinha fechou com elas. Tudo muda com o tempo, tudo muda.”*

Eu era pequenina, e entrava por aqueles altos portões vermelhos de ferro. Corria pelo meio das máquinas, os senhores a trabalhar cada um no seu labor, “Bom dia, menina”. E eu, “Bom dia”, corria até ao escritório onde trabalhava o meu pai. O meu pai a preencher boletins e facturas, a assinalar coisas com o lápis vermelho toscamente afiado à navalha. E eu mexia em tudo: o papel para fazer desenhos, os carimbos.

Depois de me dar um beijo, o meu pai terminava pacientemente a tarefa que estivesse a fazer. depois, olhava para mim e eu para ele. Dava-me a mão. Já sabia: era a hora de fazer a ronda com ele, a entregar papéis aqui e ali.


*Excerto do meu conto premiado pela editora “A Tundra (Cemitério de Memórias)”, (editora Alfarroba), o primeiro conto que publiquei.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

ANDRÉ

ANDRÉ MONTEIRO (2000-2015)
Não desejo falar sobre a morte. Quero falar sobre a vida. Diante da experiência última do ser humano as palavras são insuficientes para compreender este mistério, para compreender a dor ou até consolar aqueles que de mais perto sofrem pela ausência daqueles que mais gostam.

Hoje desejo apenas lembrar um jovem que fez, aos 15 anos, a sua caminhada para além da nossa compreensão. E faço-o através das palavras de alguns dos seus amigos, companheiros de escola, de brincadeiras, de confidências. 


“Conheci o André este ano. No início falávamos pouco porque ainda
estávamos todos a conhece-mo-nos uns aos outros, mas a partir do 2º
período foi quando a turma começou a ficar mais unida. Obviamente que
falávamos, e até era um rapaz 5 estrelas, mas eu andava mais com as
raparigas e ele com os rapazes. Mas apesar disso deu para perceber que
era um rapaz simpático, divertido e sobretudo feliz. Não merecia o que
lhe aconteceu, mas infelizmente só acontece aos melhores. Vamos sentir
todos a sua falta. Fica em paz ” (Patrícia Andreia)

"O André era um bom amigo, um bom companheiro e um ótimo rapaz ele
fazia rir qualquer um. Ele vai ficar na minha memória e na memória de
cada um de nós" (Mara)

“André: simples, ótimo amigo, rapaz simpático, alegre, rapaz que
marcou toda a gente com quem conviveu. Tu, partiste para outro mundo.
Serás sempre relembrado. Isto não é um adeus; é um até já. Descansa em
paz “ (Ana Rita)

“André, conheci-te pouco tempo mas deu para perceber que eras um rapaz
porreiro. Para além de colegas de turma fomos amigos, foste e serás
eternamente um amigo. Foi muito duro a forma como partiste, eras muito
novo para ir e ainda tinhas muito para viver e muitos sonho para
concretizar.
Juntos partilhámos momentos que guardarei sempre como recordação.
Estarás para sempre no meu coração. Até sempre amigo."
(Do teu amigo Daniel Coelho)

"André, partiste cedo demais ainda tinhas uma vida pela frente, 15 anos ninguém merece partir com esta idade muito menos de uma forma tão ruim, mas aconteceu e agora estou aqui para te fazer uma pequena homenagem, devia ter-te dito isto pessoalmente mas acho que tu sabias que tinhas aqui uma amiga para tudo e nestes últimos tempos estivemos um pouco afastados e tu, também não eras pessoa de falar eras mais de ficar no teu “canto” talvez essa fosse a razão.

“Não existe partida para aqueles que permanecerão eternamente em nossos corações!”
Até sempre…(Diana Pereira )
"Descansa em paz, André". (Renato Moura)

O André regressou a casa. Ate já


Na Mão de Deus

Na mão de Deus, na sua mão direita, 
Descansou afinal meu coração. 
Do palácio encantado da Ilusão 
Desci a passo e passo a escada estreita. 

Como as flores mortais, com que se enfeita 
A ignorância infantil, despojo vão, 
Depois do Ideal e da Paixão 
A forma transitória e imperfeita. 

Como criança, em lôbrega jornada, 
Que a mãe leva ao colo agasalhada 
E atravessa, sorrindo vagamente, 

Selvas, mares, areias do deserto... 
Dorme o teu sono, coração liberto, 
Dorme na mão de Deus eternamente! 

Antero de Quental, in "Sonetos" 
Crónica de Sara Magalhães

terça-feira, 28 de julho de 2015

QUEM SE DEITARÁ NO CHÃO POR NÓS?

“Se o teu amigo está doente, oferece abrigo ao seu sofrimento, mas sê para ele um leito duro, uma cama de campanha: mais útil lhe serás desse modo.
E se o teu amigo te fizer mal, diz-lhe: «Perdoo-te o mal que me fizeste; mas o mal que fizeste a ti próprio, como poderei perdoá-lo?»
Assim fala o teu grande amor; ele sobrepõe-se mesmo ao perdão, mesmo à piedade.”
Friedrich Nietzsche, Assim Falava Zaratustra, Editorial Presença, pág. 95

Agora que escolhi a citação que me servirá de mote, percebo a complexidade de levar à prática um tal
REGINA SARDOEIRA
conceito de amizade. E contudo, dou-lhe o meu inteiro assentimento.

Recorremos aos nossos amigos para que nos ajudem, para que nos oiçam, para que nos passem a mão pelas costas e sejam, enfim, complacentes connosco. Queremos um amigo para lhe enchermos os ouvidos com as nossas desgraças, para que ele nos dê conselhos e auxílio para, enfim, o saturarmos com o nosso ego. Ele, pelo seu lado, procederá da mesma maneira. E assim, a amizade dos homens é uma espécie de fraude.

Quem, entre os amigos, sabe respeitar o silêncio do outro, os erros do outro, as diferenças do outro? E, no limite, os amigos zangam-se e fazem-se, reciprocamente, mal, porque na hora certa, no momento do perigo não estiveram presentes ou traíram, ou mentiram.

Nesse momento dizemos: “O meu amigo fez-me mal, não posso perdoar-lhe.” E contudo, ao fazer-nos mal, traindo mentindo, esquecendo, ignorando, ele fez mal a si próprio porque não esteve à altura; e nós, quando não conseguimos perdoar, fazemos mal a nós mesmos, porque aderimos ao ressentimento.

Assim, a vida dos homens, mesmo quando são amigos, é um logro perfeito e aquele que deseja escapar deste ciclo vicioso, para preservar a inteireza da sua personalidade, precisa recolher-se na sua solidão.

Por mais estranho que possa parecer ao homem actual, crente de que os seus amigos pululam por tudo quanto é sítio, nunca a humanidade experimentou semelhantes índices de isolamento, semelhantes vislumbres de ludíbrio. E a amizade é uma quimera.

Gostaríamos de amar os outros e muitas vezes julgamos sentir amor e outras tantas parece-nos que o amor nos encontrou, vindo de outrem. Porém, isso a que ingenua ou credulamente chamamos amor não passa de um simulacro. Porque os homens estão sós.

Relembro Camus e a citação do seu livro “A Queda” na qual tanto sentido descubro e noto que, de outra maneira, as suas palavras se articulam com o texto de Nietzsche, em epígrafe:

“Sabe, ouvi falar de um homem cujo amigo tinha sido preso e que todas as noites se deitava no chão do seu quarto para não gozar de um conforto de que havia sido privado aquele que ele amava. Quem, meu caro senhor, quem se deitará no chão por nós? Se eu próprio seria capaz? Escute, gostaria de ser, sê-lo-ei. Sim, seremos todos capazes, um dia, e será a salvação. Mas não é fácil, porque a amizade é distraída, ou, pelo menos, impotente. O que ela quer não pode."
Paradoxal esta atitude do amigo que dorme no chão, para, desse modo, exprimir a solidariedade com o seu amigo preso? Estranha esta sentença que diz “Sê para o teu amigo um leito duro, uma cama de campanha?”

Encontro sentido nas duas formulações: se amo alguém devo manifestar a minha adesão e, do modo que me for possível, mesmo que ele nunca venha a sabê-lo, ser companheiro da sua condição; se amo alguém devo ser dura quando o sofrimento o acossa, para que ele siga o seu caminho e se fortaleça longe da minha protecção.

É tão fácil sermos complacentes e estendermos a mão, dando aquilo que nos sobra! Mas se o nosso amigo se encosta a nós, procurando arrimo para a sua fraqueza, não deveremos expulsá-lo com veemência para que se fortaleça, nos leitos rijos e ásperos da solidão, que lhe moldarão o carácter? E se não o pudermos ajudar de nenhum modo não será nobre estar presente, mesmo de longe, e augurar um bom futuro – mesmo àquele que não nos soube amar?

Vejo caminharem por aí pares envilecidos, envenenados na suspeita e contudo dizendo: Somos amigos! Vejo hordas de solitários, caminhando em grupos, cada um submerso nas suas pequenas existências e contudo clamando: Somos amigos!

“A camaradagem existe, escreve ainda Nietzsche em Assim Falava Zaratustra, possa a amizade nascer.” Do mesmo modo, se bem que por outras palavras, Camus reitera:

“Eu aprendi a contentar-me com a simpatia. Encontra-se mais facilmente e, depois, não nos impõe nenhum compromisso. «Creia na minha simpatia», no discurso interior precede imediatamente, «e agora ocupemo-nos de outra coisa». É um sentimento de presidente do Conselho: obtém-se muito barato, depois das catástrofes. A amizade é menos simples. A sua aquisição é longa e difícil, mas, quando se obtém, já não há meio de nos desembaraçarmos dela, temos de lhe fazer frente. Sobretudo, não acredite que os seus amigos lhe telefonarão todas as noites, como deviam, para saber se não é precisamente essa a noite em que decidiu suicidar-se, ou, mais simplesmente, se não tem necessidade de companhia, se não está com vontade de sair. Oh, não, se telefonarem, esteja descansado, será na noite em que já não está só e em que a vida é bela.”

Mas, depois de citações, espero as reacções dos possíveis ouvintes (ou leitores) e percebo o constrangimento, o silêncio, o baixar de olhos (as reticências, no discurso escrito, a página vazia, as palavras vagas…)

Sei então que não há amizade, embora a palavra seja usada e abusada por todos, sei que estamos sós, absurdamente sós, num mundo atulhado de gente… e sabem porque o sei? É que quando estamos na prisão e dormimos na tábua dura, ninguém se deita em casa, no chão, por nós!

Mas, quando eu digo estas palavras, citando ainda Camus, olham-me com espanto agressivo e aí falam, para dizer: "Ora, de que é que isso serve se o amigo está preso e, dormirmos ou não no chão, não o libertará da prisão???"

Ah, esta lógica do comodismo, esta lógica cruel do nosso conforto e do direito que a ele temos, mesmo que o nosso amigo esteja em sofrimento! «A amizade é distraída, ou pelo menos impotente; o que ela quer não pode.» É isso, está claro, primeiro estamos nós e os nossos confortozinhos pessoais, depois estamos nós e os nossos problemazinhos pessoais e, quando podemos libertar-nos um pouco de nós próprios, já é tarde: porque entretanto o amigo, por quem não nos deitámos no chão quando esteve na prisão, a quem não telefonámos todas as noites, só para lhe perguntarmos se estava bem, se não era exactamente naquele dia que ele pretendia suicidar-se, saiu da prisão e reencontrou o seu caminho ou deu um tiro na cabeça e já não precisa de ninguém! E nós, nem sequer admitimos que fomos responsáveis pela dureza da tarimba do prisioneiro, pela dor solitária do suicida. Mas fomos!!!

Por isso, não me venham falar em amizade, quando o máximo de que sois capazes é de uma simpatia ténue que a nada obriga, não me venham falar de amizade quando o máximo de que sois capazes é de uma rosa virtual numa página dura, sem rosto humano!

Citações contraditórias, estas, em que sigo Nietzsche, dizendo que temos que ser duros, se somos amigos, e depois Camus que afirma termos que nos deitar no chão pelos amigos, se efectivamente o formos?

Escavem fundo, que o sentido dos textos que escrevemos para os outros está no que persiste para lá da nossa palavra: sem dúvida, lá bem no âmago, percebereis o que quis hoje dizer-vos.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

IR DE FÉRIAS

CLARA CORREIA
No hipermercado, aproximo-me da secção dos frescos enquanto, mentalmente, contabilizo à unidade o número de bananas, maçãs e kiwis que em casa serão, por estimativa, consumidos até irmos, em agregado familiar, de férias … questão de poucos dias, a não permitir, portanto, a permanência de fruta em casa sem viva alma por uma razoável temporada estival. Sou abordada por uma jovem representante de uma determinada marca de “exclusivos frutos do mar”, nas palavras dela. “Dá para congelar?”, pergunto antes mesmo de provar um dos pedaços sob os respectivos palitos num prato de papel (afinal, raramente se justifica a recusa de uma nova experiência, e menos ainda se for de degustação, digo eu); “Ah, não … mas dura vários dias no frigorífico.”, responde ela com a esperança da conquista de uma nova consumidora na voz, a sobrepor-se ao lamento inicial. Rapidamente, no entanto, compreendeu o meu argumento para adiar a compra e ainda acrescentou que o ouvia ali repetidas vezes: “ … estou quase a ir de férias.”. 

“Ir” de férias é, antes de mais, um “luxo” por estes dias, ou melhor, por estes anos, para o cidadão português médio que, de “médio”, numa comparação com os congéneres europeus, já “só” terá, com substancial sorte, o seu próprio estado de saúde; “estar”, sem “ir”, de férias implica, por muito fértil que seja a imaginação, permanecer nas imediações do trabalho (do qual se está de férias), das chatices & chaticezinhas e, eventualmente, das pessoas que, durante o ano, de alguma forma, “ajudaram à festa” das tais chatices ou chaticezinhas, com substancial sorte, em número suportável e de grau remediável no stress e na rotina que se adoça com humor, com amor e com o que estiver à mão para não sermos por ela esmagados até irmos de férias! De modo que … por esta bendita altura do ano, bem digamos a possibilidade que, eventualmente, tenhamos de “ir de férias” e congelemos o que restar no frigorífico e puder ser congelado mas, sobretudo, congelemos o que mais nos desgastou e ponhamos “ao fresco” o nosso entusiasmo pueril (nada ingénuo, porém, e único) que só se atinge com a maturidade constatada na atribuição do estatuto de “preciosidade” às férias e às “idas” a elas devidas. 

Boas Férias!

domingo, 26 de julho de 2015

NO DIA DOS AVÓS

MIGUEL GOMES
Mãe há só uma, verdade, ainda que omisso, pelas muitas mães que não o sendo, biologicamente falando, se encarregam de carregar na vida filhos e cadilhos, seus e de outrem. Já avós, que me lembre, assim de cabeça, de todos aos que chamei avô ou avó, trago sete, sim sete. Quatro avós e três avôs. Porque avô ou avó é toda a pessoa idosa, daquelas que conhecemos desde velhas e que, por isso, não envelhecem. É um fenómeno que nos assiste no quotidiano que se partilha com quem atravessa já os gastos dias enquanto nós, de joelhos esfolados, nos vamos rastejando enquanto os passos não possuem suficiente passada para nos levarem a um destino. 


Sabe Deus, e quem me conheça mais ou menos bem, que nada me separa de todos os outros e outras que fazem parte do espectro electromagnético que é o meu olhar semi cerrado e quase cansado, em suma, de quem amo. Tive sete avós, sim, sete. Na verdade continuo a tê-los, não sei se algum deles poderá já ser o neto de alguém, grande mistério o dos passos contados entre vidas, e por isso carrego a perfeição do número e a certeza de poder ter olhado para corpos cravejados de rugas, de movimentos tão tolhidos e prisioneiros, que cheguei a ouvir da voz funda e trémula, o desejo de morrer.


 Os avós pela proximidade da barreira física, são quase o nosso contacto primário com a morte, o descer do caixão e a lágrima de saudade, mas não de tristeza. No dia dos avós, há um brinde que se ergue cristalino até atingir o fundo do cálice da recordação que mora onde as nuvens se fazem chover. Enquanto tento abstrair-me do não muito calor que se encosta a esta tarde, começo a ouvir os passos de cadência certa, o chinelo a bater no chão, o respirar mais pesado e profundo de quem aproveitou todo o ar que lhe entrou como primaveras quando no peito viviam dois pulmões já usados. 


Quatro avós, na linhagem do genuíno, dos que se traçam e entrelaçam na árvore biológica de uma família, foram meus, paternos e maternos. Dos meus paternos, as recordações esbarram com as mãos grossas e grandes de quem me içava criança e me sentava no carro de bois, a caminho do mato para cortar, as rodas a esmagarem o chão, o cajado no chão como um outro passo que sustenta o cansaço. O brincar com a pequena e velha bola amarela com losangos pretos, a bater despreocupadamente no chão de lousa, terra e merda que compunha o pátio, a porta enorme de madeira a arrastar-se pelo chão, desenhando quartos de círculos e o aviso, guardem isso que vou passar com o gado. 


E se canalha tem virtude essa é de não obedecer a regras, posto que foi preciso pegarem na bola, colocarem-na numa prateleira de lousa, baixa e inatingível a alturas de gente com três anos, escorada por um vaso barrento e um espelho raspado de ver tanta cara escanhoada, erguerem os netos e sentando-os nos degraus de pedra que davam acesso aos quartos acima das cortes do gado, não saiam daqui que vou passar com o gado. Quiseram estas escadas serem uma das duas rememorações da avó paterna, os seus passos lentos amparados pelas filhas, minhas tias, rumo ao quarto e a cara beneplácita no topo da mesa, olhando para um panelão negro, a sopa de cebola e ovo a fumegar e vertendo-se no prato, o meu olhar a baixar para a pequena malga que me deram e, talvez pelo calor, pelo vapor, quando ergui os olhos acabaram-se-me as recordações dela. 


Dos meus maternos, vão mais longe as memórias, a viagem de comboio, o frio inicial dos passos à saída da estação de S. Bento e o calor afogueado quando por Faria Guimarães, já a chegar a Damião de Góis, virava à direta numa rua que terá nome, mas que me fugiu sempre pois sempre foi a rua dos avós, subia uns paralelos, contornava a garagem do mecânico e depois seguia em frente por entre uma ilha, até encontrar uma porta, a minha mãe tocar à porta quando não a reconheciam antes as minhas primas na sua rua de catraia, as portas feitas de cortinados, o cheiro intenso a não sei o quê e o beijo da minha avó. Sabes avó, não sei outro que não o sabor do rectangular pedaço de marmelada envolto num papel fino e transparente que colocavas nas minhas mãos. Acho que por saber que nada mais havia a oferecer, tudo me sabia a riqueza. O meu avô deve ter nascido velho e com corpo franzino, com uma barba branca que me picava a face, é assim que o recordo nos livros que desfolho mentalmente, arrancando páginas em busca de um grão de letra dourado. 

O teu corpo na cama, o olhar impotente, os sulcos fundos que pareciam rugas escarpadas pelos anos, sei-te a história, mas facilita-me a narrativa quando passo de carro em Faria Guimarães e ainda te consigo ver sentado na esquina de um café com montra redonda envidraçada, a fumar, os dedos amarelados, o acatar dos dizeres da minha mãe, tua filha, como sendo tua mãe, a cabeça baixa e aquela vez em que te fomos buscar a casa e tu, enaltecendo a qualidade de volante do meu pai, passaste um domingo inteiro em nossa casa, na aldeia, e embora me falhe o dia, o mês ou o ano!, sei que foi num domingo, de tarde, tu sentado no sofá esverdeado forrado a napa rasgada, a televisão a mostrar imagens de um clube vermelho campeão contra o teu clube azul e branco. Depois disso, desculpa, já só a imagem de um caixão aberto, quase ninguém na capela, a minha mãe que se debruça sobre ti, diz pai, soluça, enquanto o meu pai me toca no ombro e diz-me, vamos lá para fora. 

E eu fui, sem perceber muito bem porque chorava a minha mãe, se tu estavas por ali a afagá-la enquanto ela chorava. Fora dos avós e avôs que se ergueram cedo ao firmamento, guardo o carinho profundo pelos velhinhos a quem chamava avós sem perceber porquê. Talvez pela sonoridade acompanhada dos meus primos, talvez por não lhes saber o nome. Tive uma avó que fazia barulho ao andar sobre o soalho de madeira e quando na cave, a ajudar o meu tio na pós-vindima, podia vê-la a andar de um lado para o outro, devagarinho, apoiando-se nos móveis e cozinhando algo que o meu palato esqueceu. A minha outra avó, depois percebi porque não era minha avó, deu-me um calduço bem dado com os nós dos dedos das suas mãos que tremiam e emitiam um barulho semelhante a um guizo por causa da pulseira dourada que trazia sempre, quando a tratei pelo nome e não por avó. 


Quis o tempo que fosse a que visse mais tempo, mais vezes, na força dos passos e na aspereza das palavras, no ligeiro andar que me fazia correr para a acompanhar até ao Bolhão, no raro sorriso e na gargalhada farfalhuda de quem sorria só quando o tempo se fazia espaço. Vi-a pela última vez numa cama, que não a dela, conheceu-me e olhava-me já por detrás do corpo idoso, imóvel, os olhos vivos ainda na retina fugidia que parece ensombrar os corpos que se aproximam do término. Eu ficava poucas vezes a olhar. Desviava a atenção para a janela e para as árvores cujos nomes não conheço, olhava ligeiramente e ocasionalmente para ela apenas para me aperceber da nebulosidade que teimava flutuar sobre o horizonte diário dela. Chegava a hora de ir embora e não sabia ser a última vez que a veria ali. Baixei-me sobre ela, dou-lhe um beijo na testa, outra na cara, a face dele treme e numa espécie de suspiro disse-me, eu queria era morrer. Ah, a vida é justa, fez-lhe a vontade e acredito seres mais feliz agora que te libertaste do colete sufocante que não permitia ouvir-te o som da pulseira dourada na tua mão trémula. 


As recordações começam a esgotar-se, agora que me vejo no ladrilhado branco e negro em frente ao Imperial, tu a dares-me a mão, alguém com um cigarro no canto da boca pergunta, quem é? E tu respondes, é meu neto, filho da Vira, e passas-me a mão na cabeça, sorris e piscas o olho quando o outro responde, neto, tens cada uma! Quando conduzo há o cheiro a Toyota Corolla no ar, um odor a viagem do Porto a Cête, o barulho das tuas mãos a baterem uma na outra e o raspar caraterístico de tu as esfregares uma na outra, o típico “foquinhas” que me habituaste a dizer quando ultrapassavas alguém. Ah, fazes-me rir agora, mesmo depois de te esquecer as feições na totalidade, apenas o cabelo grisalho puxado para trás, a cara longa, o olhar forte, o beliscar as tuas mãos e ficar entretido a ver a pele flácida lentamente voltar ao original. 


Desculpa-me se não recordo mais, são muitas, variadas, mas apenas algumas parecem querer florir e nada mais me emudece quando me lembro do teu corpo sentado no sofá a olhar para uma televisão desligada, o barulho da cidade lá fora, a botija de oxigénio e as cânulas no nariz levando-te o ar que anos de fumador te tiraram, eu chego, avô, tu olhas-me e sorris e quando me vanglorio de ter entrado (para algo que viria a abandonar brevemente) tu ergues-te lentamente, ofegante, e agarrado ao braço do sofá fazes-me uma continência e piscas-me o olho, como se estivéssemos os dois numa manhã fria em frente ao Imperial a vermos os autocarros passarem. Dos que não partiram resta-me a saudade de uma manhã de escola, a chuva torrencial, as calças molhadas sobre uma cadeira perto o suficiente da lareira para secar, enquanto nasce fumo da caneca de café quente e só a pobreza me poderia dar a riqueza de uma boroa caseia com meia cebola e vários grãos de sal. 


Os avós são imortais, sei-o, dos que partiram estão todos aqui, comigo, a rirem-se e a anuírem com um acenar a veracidade dos factos narrados. Se calhar é de mim, a imaginação, talvez sejam já eles corpos noutros corpos, algures, a olhar para os mais velhos como sendo avós. Mas sei, apenas, uma coisa, o olhar inocente da criança é o testemunho a Deus da reverência do avô, do idoso, pois foi quando foram olhados, eles, avós e avôs, novos ou velhos, no amor, inocência e verdade única que todos somos.

sábado, 25 de julho de 2015

AVALIAÇÃO DO DANO CORPORAL

ANTONIETA DIAS
A Avaliação do dano corporal é indiscutivelmente uma área de intervenção pericial de particular exigência é que irá facultar ao magistrado as informações imprescindíveis para que o exercício da justiça seja correctamente cumprido.
O perito deve exercer a sua actividade pericial de forma competente, sem pressupostos prévios ou juízos de valor sobre o Examinando.

Para ser perito é absolutamente necessário ser imparcial, justo, sério, conhecedor, experiente, com sabedoria para poder basear as suas decisões com conhecimento técnico científico e sem nunca esquecer a unicidade e dignidade humanas subjacentes a uma correta avaliação do dano corporal.
O silêncio doutrinário ou normativo não pode ser omisso quando o direito / prejuízo fica esquecido.
As perícias medico legais quer sejam feitas no âmbito do Direito de Trabalho (acidentes de trabalho), no âmbito do Direito Civil (acidentes de viação, doença natural) são enquadradas no campo de visão global e as decisões devem ser suficientemente claras para que não existam dúvidas na sua avaliação.

Assim, exige-se um espírito de harmonização na realização das perícias médicas.
Para além das particularidades concretas e da complexidade das perícias médico legais o conhecimento científico, a preparação técnico científica associada à experiência profissional são aspectos fundamentais para se poder desenvolver uma actividade pericial credível, isenta, idónea, rigorosa e sensata.

O perito médico-legal ao averiguar e apurar os fatos que irão servir como elementos disponíveis para a decisão da existência ou inexistência dos pressupostos, da responsabilidade processual e das consequências do evento, tem em seu poder a possibilidade de elaborar a prova pericial indispensável como meio auxiliar de avaliação do dano, sendo- lhe por isso exigido que faça a sua apreciação de forma criteriosa e livre de acordo com os recursos técnico científicos existentes a data, as regras da experiência e a sua livre convicção na decisão para posterior análise judicial.

Acresce ainda que os pressupostos valorativos têm de ser baseados na obediência a critérios da ciência, da experiência e da lógica.
Importa ainda referir que a livre convicção " é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade", na conclusão pericial.

Em circunstância nenhuma se podem admitir que haja.

desrespeito pelas regras próprias da valorização legal ou da violação das normas do direito.
Assim, a avaliação do Dano corporal no âmbito do Direito do Trabalho ou do Direito Cível constitui o instrumento fundamental para a decisão judicial.
Em suma, face à constatação de fatos susceptíveis de configurar a prática de atribuição de uma incapacidade cuja conduta do perito médico na avaliação do nexo causal, atenta a sua relevância para efeitos médico-legal terá de ser exemplar.

Tendo em conta que o dano corporal exige múltiplas avaliações a que o Examinando terá de ser submetido até obter a conclusão final, existe evidência que o mesmo tem repercussões psicológicas, morais e sociais importantes que não podem ser menosprezadas, sendo por isso muitas vezes incompreensível a tentativa de eliminar estes danos sendo algumas vezes agravando pela forma como o interrogatório é orientado, pelo exame objectivo efectuado e nalguns casos pela prévia conceptualização de que o Examinando é um potencial angariador de benefícios e não uma vítima.

Quanto à questão relacionada com a afectação da capacidade para o trabalho o perito terá de proceder a uma valorização específica e particular da actividade profissional do Examinando.
Nesta perspectiva, a intervenção pericial médico-legal tem que possibilitar a vítima segurança e certeza da isenção e capacidade técnico científica do perito que a avalia.
Resta ainda acrescentar que a atribuição de uma indemnização ao ofendido pelos danos sofridos é um direito.

Assim não se vislumbra clareza de princípios éticos quando um perito desenvolve a actividade pericial representado umas vezes Examinando outras vezes a entidade responsável pela atribuição da indemnização.
Em suma, tendo em conta as discrepâncias existentes nas várias avaliações efectuadas as vítimas, na minha opinião como perita médica o lesado deveria ser submetido apenas a uma avaliação pericial onde estivesse representado pelo perito do tribunal (perito medico legal), pela entidade institucional responsável e pelo perito do examinando, sendo que o perito do tribunal e o perito do examinando estariam condicionados ao impedimento de exercerem funções em entidades responsáveis pela atribuição das indemnizações.

Não é compreensível no meu entender que o perito que realiza a perícia nos Institutos de Medicina Legal não seja o representante da mesma aquando da realização da junta médica no Tribunal.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

QUANDO FORES GRANDE, O QUE QUERES SER?

GABRIEL VILAS BOAS
Normalmente, isto queria dizer Que profissão gostarias de ter quando fores adulto? Cada um falaria dos seus gostos profissionais, tendo em conta as suas aptidões, o prazer que determinada tarefa lhe suscitaria e… o retorno financeiro dessa profissão. Nas últimas décadas secámos tanto e tão cedo os nossos sonhos que a maioria das respostas seria: “Aquela que me der mais dinheiro e fama!”.
No entanto, a famosa pergunta encerra outra questão, mais subtil, mas que também vale a pena discutir: O meu projeto de vida é a minha profissão?

“O que queres SER…?” tem que ser muito mais que uma profissão, porque somos Pessoa e o trabalho é só um instrumento e não um fim. Todavia, desde crianças somos condicionados a construir uma identidade através do trabalho. De uma maneira sub-reptícia ou declaradamente, procuram engavetar a nossa vida no espartilho de uma profissão, especialmente no caso de termos algumas qualidades profissionais que nos aconselham determinada opção.

O problema é que não estamos preparados para contrariar este paradigma na altura devida, porque, raramente ou só muito tarde, pensamos no que somos e no que queremos de nós, como um todo.
Quando a mecanização da ditadura do trabalho nos desumanizou, quase por completo, de tal maneira que deixou de haver amigos, percebemos, claramente, que não queríamos ser nada daquilo em que nos tornámos.

E então sofremos! Sofremos muitíssimo, porque nos dirão que a escolha foi nossa. E, na verdade, foi… e não foi, porque, neste mundo tão diverso e tão democrático, só havia uma escolha. Desde as primeiras conversas em família às opções escolares.

Ninguém pergunta na escola ou em casa: “Olha lá rapaz, que tipo de pessoa queres tu ser?” Se esta pergunta fosse feita a uma criança ou a um adolescente ou até a um jovem adulto, em 90% dos casos, o interlocutor gaguejaria, surpreendido. 

E há tanto para ser além do tradicional e esperado “Quero ser boa pessoa! Quero ser feliz!”

Quero ser tolerante, decidido, audaz, fraterno, simpático, paciente, trabalhador… E cada um poderia ir construindo a sua personalidade a partir dos seus valores de base. Seria uma escolha sua e consciente, onde a profissão se haveria de enquadrar, mas nunca impor.

Provavelmente evitaríamos interrogações angustiadas do género “Quem sou eu fora do trabalho?”, por volta dos quarenta. Saberíamos que somos o projeto de vida que quisemos ser, que não nos conhecem apenas pela profissão, porque o trabalho que exercemos é só o trabalho que exercemos.

Então as pessoas que cruzarem a nossa vida apreciarão as nossas qualidades profissionais, intelectuais e físicas do mesmo modo que valorizarão as nossas qualidades pessoais. Nessa altura seremos grandes, como estava destinado a ser, e seremos a Pessoa que quisemos ser.

quinta-feira, 23 de julho de 2015

A FREGUESIA DE FREGIM E A ORDEM DE MALTA

Os ancestrais de Fregim (Amarante)

HÉLDER BARROS
São inúmeros os documentos ancestrais que fazem referência a Fregim, como tendo a honra de ter pertencido à Ordem de Malta, ou dito de outra forma, Fregim foi uma freguesia portadora da Comenda e Baliagem da Ordem de Malta, como pode ser facilmente comprovado no livro: “Nova Historia Da Militar Ordem De Malta, E Dos Senhores Grão-Priores della em Portugal – Volume III”.

(…) “Comendas da Ordem actualmente existentes ou conhecidas em Portugal Seus nomes ou títulos dispostos alfabeticamente, com a lembrança das outras antigas que ficaram Ramos annexos e são estas 32 álèm das unidas ao Grão Priorado do Crato Abreiro; Acre e Fregim Balliagem.” (…)

(…) “Igualmente não poderia ser na referida occasiáo contemplada a Igreja de Santa Maria de ffrogim, ffrochim, ou Fregim, do mesmo Arcebispado e no Julgado de Santa Cruz de Sousa ou de Riba-Tâmega: na qual já pelas Inquirições do presente Reinado, feitas no anno de 1220 (a s. III y. do Liv. I das de D. Affonso II., ou a f. 71. do Livro erradamente chamado V. das do Sr. D. Diniz) se achou e diceram Joáo Annes Capellanus, e os outros perguntados, como nao havendo ahi Reguengo, ou fôro algum; não era EI Rei Padroeiro, sem o declararen (a f. 90. Y.; e estavam sendo da Ordem de Malta (xviii.j cafalia) 19 cazaes sómente.“ (…)

A Freguesia de Fregim está descrita igualmente nos registos paroquiais da seguinte forma:

“(…) História administrativa/biográfica

A freguesia de Santa Maria de Fregim era Vigararia e Comenda da Ordem de Malta, no antigo concelho de Santa Cruz de Riba Tâmega, na antiga comarca de Guimarães, passando mais tarde a reitoria. Pertenceu ao antigo concelho de Santa Cruz de Riba Tâmega, extinto pelo Decreto de 24 de Outubro de 1855, tendo passado para o de Amarante pelo Decreto de 31 de Dezembro de 1853. Da diocese de Braga passou para a do Porto em 1882. Comarca eclesiástica de Amarante - 4º distrito (1907). Primeira vigararia de Amarante (1916; 1970).” (…)

Desde 1991 existe em Fregim o Centro Cultural e Recreativo de Fregim – Os Malteses”, que tem na vertente desportiva a sua grande forma de afirmação, dado que a equipa de futebol de Fregim que participa no campeonato concelhio da FADA, adoptou de forma feliz a denominação “Os Malteses”, o que tem vindo a fazer com que se aguce o apetite a algumas pessoas, sobre a origem desta designação.

Como já referi numa postagem anterior, o cronista do Jornal “A Flôr do Tâmega”, José Diniz, de Fregim, fez um trabalho de pesquisa notável que urge recuperar, sobre a ligação da freguesia de Fregim, à Ordem de Malta. Na minha modesta opinião seria importante aprofundar este relacionamento com o Ordem de Malta e tentar que Fregim volte a figurar de forma efetiva, como membro oficial da mesma, um facto, que é seria motivo de grande honra orgulho para Fregim e por extensão, para Amarante. Como se pode ler no blogue: http://expressodalinha.blogspot.pt/

(…) “Para além de funções militares, a Ordem dava acolhimento e assistência a sãos e a doentes (os mouros pagavam taxa moderadora). Também contribuiu para o povoamento e colonização interna, baseada no princípio ecuménico de horror ao vazio. Criaram-se diversas freguesias que pouco a pouco se foram enchendo de fregueses (fillii aeclesiae).” (…)

Atualmente, a Ordem de Malta já não tem a sua sede pequena ilha mediterrânica com o mesmo nome, mas num pequeno Prédio em Roma e seu jardim, numa área total de 6 Km2 tendo celebrado no dia nove de fevereiro passado, 900 anos. Quanto a Fregim, muito há a fazer, começando por dignificar a existência da localização dos marcos norte e sul da ordem, na freguesia e realizar todo um trabalho de aproximação à Ordem, através de um trabalho diplomático, sério e seguro de incorporação na mesma.

“A Ordem de Malta, uma ordem religiosa de elite, para os membros da nobreza europeia, celebrou os seus 900 anos de existência com uma procissão, uma missa e uma audiência com o Papa no Vaticano, este sábado. Bento XVI também é membro desta ordem que, em tempos, foi de cavaleiros.

Actualmente, a ordem já não luta contra os muçulmanos em nome da fé cristã, mas é detentora de cantinas sociais, lares para idosos, hospitais e outros serviços de saúde e assistência social em 120 países. É ainda uma entidade soberana com poder para imprimir passaportes e emitir moeda. É membro observador nas Nações Unidas e tem relações diplomáticas com 104 países, apesar de não ter qualquer estado a que possa chamar de seu – em 1798, Napoleão expulsou-a de Malta.” http://www.publico.pt/

Penso que pertencer à Ordem de Malta, constitui uma honra e privilégio que os nossos bravos antepassados de Fregim conquistaram por virtude e nobreza na ação; não deveríamos nós continuar na sua senda gloriosa, tentando uma reintegração em tão nobre Instituição?...

quarta-feira, 22 de julho de 2015

DIVAS, ÍDOLOS DA JUVENTUDE OU PRODUTOS DE MARKETING?

PAULO SANTOS SILVA
Procurando tema para a escrita da crónica desta semana, deparei com o facto de a atriz e cantora Selena Gomez comemorar hoje, 23 anos de idade.

Para os menos familiarizados com a atriz, direi que se tornou conhecida pela interpretação da personagem Alex Russo, na série Os Feiticeiros de Waverly Place exibida no Disney Channel. Esta série, além de a tornar conhecida, ganhou inclusivamente um Emmy, que é como quem diz o equivalente a um Oscar da televisão.

Selena Gomez, nascida na cidade de Dallas no Texas, além de atriz é cantora, dançarina, compositora e estilista. Entre outras, define como a sua principal influência a cantora Britney Spears, que tendo tido um início de carreira fulgurante, passou a ser mais conhecida e falada por aspetos da vida pessoal do que pela sua vida artística.

Aqui chegados e sendo Selena Gomez um produto da “Fábrica Disney”, tal como foram Vanessa Hudgens (High School Musical) e Miley Cyrus (Hannah Montana), surge a pergunta:

Estaremos perante divas ou produtos de marketing?

No primeiro caso, certamente que seriam cantoras e atrizes para perdurarem durante anos e certamente que o leitor que está a ler esta crónica, independentemente da sua idade, as conheceria. Não me parece que seja o caso. Serão então a segunda hipótese – produtos de marketing que se esgotam num determinado período de tempo, dando lugar a outros (as) que se lhe seguem e que terão o mesmo período de validade (ou até menor…). 

A menos que… 
Exatamente!!!

A menos que “rompam” completamente com aquilo que é esperado dessas personagens e façam o que Miley Cyrus fez (o único nome que certamente alguns leitores conseguiram identificar nesta crónica), ou seja, transformou-se no completo oposto da personagem que interpretava na série que a celebrizou. Somou escândalos atrás de escândalos, deixando porventura de interessar a uma franja mais jovem e conquistando a atenção de uma franja mais adulta. Novamente outra questão se coloca:

Haverá espaço para outro fenómeno igual?

Parece-me que haverá sempre espaço para tudo o que for polémico. Se assim não fosse, certamente que não haveria tanto paparazzi e tanta imprensa cor-de-rosa. Agora, que exemplos ficam para os nossos jovens e para as nossas crianças? Devemos preocupar-nos em demasia? Não me parece. Se por um lado, sentimos saudades de séries como “Heidi”, “Marco”, “As Misteriosas Cidades do Ouro”, “Verão Azul”, apenas para citar algumas e não ser muito extensivo na lista que advém dos tempos em que a televisão se resumia a 1 canal (RTP), não devemos ser demasiado fundamentalistas ao ponto de pensar “no meu tempo é que era…”.

As séries atuais, continuam a dar bons exemplos aos nossos jovens e a dar a conhecer atores e atrizes preocupados em usar da melhor forma a sua notoriedade, como é o caso da nossa aniversariante.
Não é por acaso que Selena Gomez tem estado envolvida no Disney’s Friends for Change (uma organização que promove comportamentos amigos do ambiente) e que foi oficialmente nomeada em 2009, Embaixatriz Internacional da UNICEF.

Deixo-lhe uma sugestão de audição – o tema “Send It On”, que é o Hino do Disney’s Friends for Change!

terça-feira, 21 de julho de 2015

VAIDADE DAS VAIDADES, TUDO É VAIDADE

Túmulo de Heinrich von Kleist
REGINA SARDOEIRA
Heinrich von Kleist, escritor alemão (1777-1811), teve um percurso existencial singular. Educado na rigidez prussiana do imperativo categórico kantiano, quis pautar a sua vida pelo rigor ético-religioso do pietismo. Mas o seu espírito turbulento, inquieto e timorato, a sua vontade indómita de ser o maior ou não ser nada, precipitaram-no em abismos dos quais não lobrigou encontrar saída.

Contemporâneo de Goethe e Schiller, percebeu que o génio que bafejara, esses a que a História saberia render tributo, nunca iria sobrevoar a sua figura, mesmo sendo escritor e poeta, mesmo sentindo em si os arroubos da criação.

Decidiu então que a vida não se justificava, no lodaçal intermédio das pequenas realizações; e querendo celebrar a morte, porque para ela quis lançar-se, procurou os meios de sair em festa, tornado glorioso, de um mundo que lhe traíra o génio. Daí em diante – tinha 33 anos de idade – sempre que se entretinha em diálogo com um amigo, atirava-lhe de chofre: “Queres vir e morrer comigo?”

Horrorizados, esses presumíveis companheiros de suicídio, abanavam a cabeça e desapareciam para sempre da vida de quem assim lhes propunha um pacto de morte.

Um dia, porém, o seu apelo, decerto monstruoso, encontrou a solidariedade e uma amiga, Henriette Vogel, condenada à morte nos trâmites de uma doença incurável, aceitou o repto e marcaram a celebração.

Juntaram-se, nas margens do Lago Kleiner Wannsee, no dia 21 de Novembro de 1811, riram, conversaram, beberam vinho. Ao fim do dia, dois tiros – Heinrich atirou em Henriette e depois nele próprio – concluíram a missão na terra daqueles dois foragidos.

Esta, decerto, não é uma história para narrar a um adolescente, dizendo-lhe: “Procura ser grande e se o não conseguires, suicida-te!”; e contudo marcou os meus pensamentos mais juvenis quando a conheci na obra “O Combate com o Demónio” de Stefan Zweig. Tal como Kleist, eu sentia que pouco importa ser medíocre na arte que estabelecemos como sendo a nossa vocação; e também que se não conseguirmos ser grandes mais vale mergulhar no mais profundo dos abismos e ser nada.

Apesar de tudo, fui confiando no talento que me foi atribuído – porque o génio da escrita, diga-se o que se disser, não se aprende em cursos especializados ou segundo fórmulas infalíveis. O génio sussurra em nós e é tão imperioso enquanto sussurro que, mesmo inaudível para os outros, ecoa, feito grito, no mais recôndito de nós. E foi por isso que eu soube que teria que ser escritora, que sempre fui escritora, logo que a técnica me foi dilucidada, e que apenas necessitei de dar corpo ao manancial de palavras que perante mim se desdobravam, logo que agarrava papel e caneta.

O certo é que, mesmo sendo grande por dentro, mesmo sabendo que o meu talento é verdadeiro, forte e vigoroso, as obras saem-me das mãos e perdem-se no tumulto deste tempo, recheado de génios palavrosos. Em qualquer lado esbarro com autores de livros, a cada momento leio que alguém se auto-apelida de escritor, por toda a parte se fazem lançamentos e apresentações de obras. 

Perante semelhante surto de gente que escreve e encontra meios de ser publicada, perante a prodigiosa avalanche de escritores cuja produção, afinal, se compara a coisa nenhuma de que valha a pena falar, eu hesito, tartamudeio e não publico.

Quando me dei conta desta espécie de destino que me outorgou o génio sem me dar, ao mesmo tempo, as armas e o engenho para lhe dar uso em pleno e elevá-lo ao triunfo, lembrei-me de Heinrich von Kleist e decidi, não terminar a vida ao som de um tiro nas margens do Tâmega, mas reservar, para mim apenas, a voz que me pertence, sem sujeitá-la à triste condição da propaganda, do auto-elogio e do embuste. Sim, escrevi livros, sim, escrevo livros – mas serão meus, apenas. E assumi-me como póstuma.

Não contava, porém, com o bloqueio, este que me faz adiar, quotidianamente, a conclusão dos meus livros, a publicação dos que estão escritos, o estrangulamento de ideias para novas euforias criadoras. E é então que o fantasma de Kleist volta a assombrar-me: valerá a pena continuar esta missão que em tenra idade criei para mim? Devo resignar-me à luta pela sobrevivência, apanágio deste nosso cinzento século XXI, e deixar para todos esses que ousam abrir a boca e dizer: “Sou escritor, olhem, vou apresentar mais um livro!”, todo o campo disponível?

Leio-os e sinto de que modo se iludem com os elogios fáceis e a fácil divulgação, num mundo em que todos, sem excepção, podem subir à ribalta e opinar. Leio-os e só aqui e ali sinto latejar o génio e incandescer a chama da verdadeira criação. O resto é fumo.

E lembro o Eclesiastes e a sentença que, há muito tempo, aprendi em grego: Mαταιότης ματαιοτήτων, τα πάντα ματαιότης (ou Vaidade das vaidades, tudo é vaidade), cito-a baixinho, enquanto me calo.

Não pertencerei jamais a esse incómodo bulício de artífices, que um dia decidiram aproveitar um ou dois trunfos e jogá-los nas arenas da celebridade literária. Tenho trunfos, mas não são os publicitários e não ouso fazer propaganda de mim: por isso, o mais certo é ficar na sombra enquanto se erguem todos aqueles que não tem suficiente modéstia para ficar escondidos na penumbra do seu ser medíocre.

Retorno a Heinrich von Kleist para dizer que, sendo decerto pouco falado a nível mundial, obteve a grandeza a que sentiu não ter direito, face aos grandes já instalados, e hoje o seu túmulo e o da malograda companheira de morte podem ser visitados perto do Kleiner Wannsen, às portas de Berlim. Dele pude ler alguns contos entre os quais o magnífico Michael Kohlhaas, O Rebelde de que Volker Schlondörf realizou um excelente filme, em 1969. E nessa obra, tornada afinal grande e imortal, percebo a cintilação do génio e a obstinação de carácter de quem não recua perante uma injustiça e prefere a morte à cedência da honra. 

segunda-feira, 20 de julho de 2015

NO DIA DO AMIGO


CATARINA PINTO
E a felicidade também é a amizade… laço que une almas e seres perfeitos ou imperfeitos… Não importa é ela a amizade, mais forte que as tempestades da vida e está presente na tranquilidade dos silêncios. A amizade é tão importante na nossa vida que inclusive se criou o dia para se homenagear esta relação. Hoje, dia 20 de julho e tudo graças a um argentino, que foi inspirado com a chegada do Homem à lua, precisamente a 20 de julho de 1969. Este senhor decidiu enviar cartas para diversos países para que celebrassem esse dia, já que ele acreditava verdadeiramente, que com a chegada do homem a lua, estes deveriam se unir. Em honra da amizade não podemos deixar de assinalar este lindo dia… Os amigos verdadeiros só fazem bem ao nosso coração e saúde. São eles que nos ajudam a superar a dor, a desilusão, os problemas, afastam a solidão e nos fazem rir… Vamos cuidar deles como preciosos diamantes. Não importa se são amigos reais ou virtuais, estes últimos que cada vez mais vão ganhando o seu espaço… Vamos cuidar deles com todo o nosso carinho…nada melhor que a amizade ser reciproca. Para finalizar não podia deixar de partilhar um pequeno poema que fiz para a minha melhor amiga, que está do outro lado do oceano mas sempre presente no coração….

“No jardim da vida
Nasceu, cresceu, floresceu
Uma linda rosa
Que por ser tão bela e delicada
Tinha mil e uma cores…
A cor da verdadeira amizade.”

In Idilio, Catarina Dinis

domingo, 19 de julho de 2015

VER/TI/CALMENTE

MIGUEL GOMES
O ruído resume-se ao roncar resignado do aspirador, ao arrastar arranhado das rodas de plástico no chão, ora soalho de madeira, falsa, ora alcatifa. Uma ou outra criança reclama algo imperceptível e os pneus dos carros martelam a borracha contra os paralelos, simetricamente caóticos, os pneus e os paralelos. E as pessoas. A tarde, embora ainda não seja tarde, parece querer afastar-se do dia. Talvez por ter nascido cedo, ainda o dia se virava na cama destapando o corpo nu da noite, e os pés terem-se enterrado na terra fria, ressuada, enquanto as mãos desabituadas moldavam descalejadas o cabo da enxada. Se o dia nasce cedo, na boca tem que estar a fermentar o sabor do café, subindo palato acima até se encontrar com as recordações dos desejos de ver nascer o resto do dia sentado num tufo verde e ainda orvalhado. Quedo-me um pouco, a enxada apoia o meu corpo semi-sonhador, o suor exagera a quantidade trabalhada, fruto do despreparo do corpo, a Terra girou e a terra não voltou, espreita o Sol que sobre as nuvens teimosamente reluz sob um Universo que, teimosamente, inocentemente, acriançadamente teimo em querer ver girar nas pontas dos meus dedos como se fosse um berlinde, tal e qual ao que encontrei e apanhei raspando com os dedos por entre os paralelos a terra que o prendia. Minimizo a janela do processador de texto, a música continua a tocar, a criançada joga futebol num estádio imaginado por entre paredes de tijoleiras mal assentadas, a bola bate uma e outra vez no separador de metal e, uma e outra vez, assusto-me e espero um impropério do vizinho. Nada, silêncio. Quando um carro surge na estrada, imagino, não o vejo, o barulho é similar a uma chuvada repentina. Na minha ânsia de me sentir árvore, de novo, imagino e desejo que caia uma bátega. Sei-me egoísta, na vontade de cada um morará uma ânsia diferente, mas porque sei que não é possível o céu desnublado parir um aguaceiro que levanta a poeira que trago agarrada aos olhos, continuo a imaginar e a deixar que a chuva caia e eu corra a abrigar-me, patetice minha, porque correria eu que estou aqui, abrigado, agarrado, a esta grafia que pulula nos cristais líquidos do monitor. Não falta nada para deixar tolher os olhos molhados, sabes, por aquela chuva que sai de dentro, e vislumbrar a estrada esburacada, onde moram meia dúzia de poças, rasgada na encosta deste cabeço transladado do Sul para o Norte, com um muro natural de terra xistosa por onde nascem matos, giestas que amarelarão um dia, mato seco onde teimo picar-me, e uma escarpa separada do precipício por uma e outra árvore que germinou como muitas pessoas, no limite do caminho e no infinito da queda, pendendo ramos para o caminho e sombra para o resvalado esverdeado solo que vai guiando o tempo até ao fundo, bem lá ao fundo, onde se esgueira um regato por entre fragas e onde algumas urzes e pessoas sonham beber. Pensei que poderia sentar-me aqui contigo, mesmo no meio da estrada, não interessa se não me leres, talvez seja melhor assim, sentir o corpo enregelar enquanto a água se evapora para dentro do corpo, cruzar as pernas e sonhar ascender como o fumo do café numa cozinha improvisada numa casa construída ao redor de uma lareira. 

Quem surgir terá dificuldade em perceber o que fazemos ali, no meio de um caminho que não sabemos onde vai dar, mas como transmontano de um mundo sem espaço para sonharonhos, neologisticamente falando, os sonhadores de sonhos, passará por nós, desviando-se, levantando a aba do chapéu grisalho e pastoreando um bom dia, ainda que seja noite. Eu vou cansar-me, como sempre, de estar na mesma posição e vou querer levantar-me e partir por aí, mas tu vais, pacatamente, pousar a mão fria no meu braço húmido e enquanto viras a cabeça para mim sei que me vais falar com o olhar e, serenamente, com o sorriso, convencer-me a ficar mais uma eternidade no local onde parirei horizontes, aqui, ou em Trás-os-Montes. Sem sabermos de que lado nasce o Sol forçaremos o mundo a rodar no sentido que quisermos, peregrinando-se numa sideralidade de movimentos ao redor de uma galáxia ou, então, se desejares, se não te assaltarem os medos, poderemos confinar o infinito ao ondular do cabelo entrelaçado nos teus dedos.

sábado, 18 de julho de 2015

ESTUDOS E CONTRADIÇÕES

JORGE NUNO
Habituei-me a olhar para a comunidade científica, ao nível da investigação, com muito respeito e até admiração; ainda mais pelos inúmeros prémios e reconhecimento internacional, particularmente em relação a jovens investigadores portugueses, com vários no patamar dos melhores a nível mundial, o que leva que este pequeno país seja considerado um país de grandes investigadores.

Julgo saber distinguir a diferença entre: estudos relacionados com investigação – a que aludi no primeiro parágrafo –, com pessoas e/ou entidades credíveis; recolha e tratamento de dados estatísticos, e apresentação de resultados, normalmente por entidades independentes, estando os seus membros imbuídos de uma cultura ética que confere credibilidade aos resultados obtidos; estudos científicos manipulados, indo ao encontro de quem promove esses estudos, na forma de cliente ou sponsor, algumas vezes camuflado de mecenas; evocação e realce de aspetos particulares dos estudos ou, pior, adulteração de dados, conforme circunstâncias do momento e conveniências políticas; e o meu próprio feeling, baseado na minha experiência de vida, com toda a subjetividade que isso acarreta, e crença na minha capacidade de ir à procurar de respostas e formular uma opinião pessoal. 

Temos tendência a alinhar no senso comum – por parecer tão óbvio –, e por ser isso que se espera; mas fundindo muito do que acabei de referir, reparo que me sinto algo confuso com algumas conclusões provenientes de estudos diferentes, pelas evidentes contradições que nos chegam e pelo que o nosso olhar (mais ou menos) atento nos revela. De uma forma simplista, numa primeira abordagem poderia pensar em métodos e técnicas diferentes, a que recorrem pessoas e entidades diferentes. Mas vamos por partes…

Comecemos pelos investigadores. Chegam-nos relatos de muitos jovens investigadores que se sentiram “forçados” a sair do país, ou ficaram no desemprego, por não terem sido aprovadas as respetivas bolsas de investigação ou, sendo-o, foram-lhes atribuídas valores mais baixos do que o esperado, criando um natural desespero e um evidente acréscimo de dificuldades a quem sonhava fazer carreira nesta área, falando-se, com alguma insistência, num desinvestimento anormal na investigação. Segundo o estudo, com atualização recente (2015-06-26), baseado em dados da DGEEC/MEC – Inquérito ao Potencial Científico e Tecnológico Nacional e dados do INE – Inquérito ao Emprego, tendo como fonte a Pordata (da Fundação Manuel dos Santos), a proporção – em permilagem – dos investigadores em atividades de investigação e desenvolvimento (I&D), equivalente a tempo inteiro por 1000 ativos, foi sempre em crescendo de 1982 (0,9 ‰) até 2013 (8,2 ‰), com um ligeiro decréscimo apenas em 2012 (7,9 ‰). Tendo ainda como fonte a Pordata e a FCT, haverá 52.000 investigadores em Portugal, 322 unidades de investigação e foi de 80 milhões o valor das bolsas atribuídas nos últimos cinco anos.

Pobreza, abandono e obesidade. Tem soado o alarme em muitas autarquias, as quais vão tomando iniciativas avulsas, como seja: manter abertos os refeitórios das escolas em período de férias escolares, devido ao considerável número de crianças e jovens que passam fome. São preocupantes os números divulgados pelo MEC, com base no relatório da DGEEC, face às elevadas taxas de abandono dos cursos nas Universidades e ainda mais nos Institutos Politécnicos. Também algumas universidades efetuaram estudos; a Universidade do Minho aponta como algumas dessas causas de abandono: a atividade laboral (não era suposto estarem a estudar?) e constrangimentos familiares (falta de recursos financeiros?). Segundo dados do INE, através do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (2014), existem mais de 1,96 milhões de portugueses em risco de pobreza. A responsável do Banco Alimentar contra a Fome anunciou que receberam alimentos 355.749 pessoas (em 2013), das quais cerca de 120.000 são crianças, que teriam passado fome se não se tivesse recorrido ao Banco Alimentar. A ONU, baseada em dados da UNICEF, alertou que em 2011 estariam 28,6 % das crianças portuguesas em risco de pobreza. Tendo como fonte a OMS – Organização Mundial de Saúde, a obesidade está a ser um problema sério tanto nos países desenvolvidos como nos emergentes, apontando que em Portugal têm peso a mais: 38% das crianças de 7 anos; 32% das que têm 11 anos; e 24,5% das que têm 15 anos. A mesma OMS, que tanto apregoa a virtude da Dieta Mediterrânica, deixou o aviso que Portugal, logo [estranhamente] a seguir à Grécia, é o segundo país europeu em que há maior prevalência de excesso de peso infantil. O estudo MUN – SI (2014) elaborado nos municípios de Viana do Castelo, Fundão, Oeiras, Montijo e Seixal, revelam que 44% das crianças estão “mal nutridas” e 4% apresentam “magreza extrema”, sendo que 39,4 % apresentam excesso de peso e 15,8 % são mesmo consideradas obesas, concluindo ainda que, na grande maioria, as crianças obesas eram oriundas de “famílias com rendimentos mais baixos”.

Desemprego jovem e trabalho precário. Segundo a CGTP, foi destruído um total de 617.000 postos de trabalho, entre 2008 e 2014. Os dados do INE apontam que terá havido um decréscimo de 298.000 pessoas empregadas, entre o 1.º trimestre de 2011 (em que se registava um desemprego jovem de 28%) e o 1.º trimestre de 2015 (com aumento do desemprego jovem, passando para 34,4%). O INE indicou também que, no mesmo período, se agravou o desemprego de longa duração. Já o CIES – Observatório das Desigualdades, tendo como fonte Labour Force Survey (Eurostat), revela que, entre os 27 países da EU, Portugal situa-se em terceiro (a seguir à Polónia e Espanha) quanto à maior incidência de casos de trabalho precário, registando-se, no 1.º trimestre de 2010, cerca de 23,2 % dos casos entre trabalhadores por conta de outrem, agravado em 3% face a 2005, sendo que o trabalho precário jovem era de 54,6%. Daí para cá, há a perceção que a situação ainda se agravou mais, com o aumento da precariedade laboral de profissões qualificadas e a consequente desvalorização salarial e degradação das condições de trabalho. Entretanto, em 2015-07-13, o membro do Governo que tutela o Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, referiu no Algarve: “Desde o início de 2013, e até hoje, conseguimos criar 175.000 novos postos de trabalho. Sobretudo, postos de trabalho com qualidade e efetivos”, dizendo também que “por cada contrato a termo [precário] são gerados três postos de trabalho permanente nos quadros das empresas”.

Festivas de Música no Verão. Neste cantinho à beira mar plantado, em período de estio e de férias (para quem tem ocupação profissional ou estuda), singram, um pouco por todo o lado, os festivais de música. Aponto alguns dos mais emblemáticos (passe a publicidade dos principais promotores): NOS Alive (Algés); MEO Marés Vivas (V. N. de Gaia); Vodafone Paredes de Coura; Sumol Summer Fest (Ericeira); Super Bock Super Rock (Lisboa); NOS Summer Opening (Funchal); Sol da Caparica; Marés de Agosto (Açores); Festival do Crato. De uma forma geral, são apelativos os programas apresentados em cada ano. Se tivermos em atenção que o público-alvo da quase totalidade destes festivais são os jovens, e que é relativamente elevado o valor de cada entrada (ou mesmo o pacote completo) face ao nível de vida dos portugueses, não podemos deixar de estranhar o sucesso destes festivais em tempo de crise, realçando, como mera exemplificação, o NOS Alive 2015, que com um mês de antecedência já não era possível comprar o passe de 3 dias e/ou o bilhete diário de 9 de julho – por ter esgotado – com uma assistência de 55.ooo pessoas, sendo os bilhetes dos restantes dias a € 55 /cada. Estranha-se ainda mais, por ter acabado agora esse festival e já estarem à venda os bilhetes para o NOS Alive 2016 – com um ano de antecedência – ficando o bilhete diário por € 56, e o passe de três dias por € 119. Fico perplexo! Se calhar… o membro do Governo que tutela o dito ministério terá razão; será por haver tantos novos postos de trabalho, com qualidade e na situação de efetivos nos quadros das empresas que tudo isto é possível!

sexta-feira, 17 de julho de 2015

SER PAI É...

GABRIEL VILAS BOAS E AS FILHAS
Ser pai é uma aventura extraordinária que torna o homem um ser humano mais realizado e feliz. Infelizmente, muitos homens não olham para a paternidade desta maneira, o que os priva de descobertas maravilhosas sobre si e sobre a sua relação com os outros e com o mundo.

Antes de ser uma descoberta, ser pai tem de ser um desejo. Ser pai não é cumprir o desejo da nossa companheira, como se lhe estivéssemos a satisfazer uma vontade ou um capricho, mas um forte compromisso com um ser que vai nascer e precisa de nós para o guiar no mundo. E este é um compromisso que não podemos falhar. Para isso temos de nos preparar convenientemente.

Temos cerca de um ano para isso, por isso convém não desaproveitar o tempo. Ganhar consciência que as nossas prioridades e hábitos mudam. Não é coisa que devamos lamentar, porque resultou de escolha nossa. 

O facto de a mãe assumir um papel fundamental nos primeiros meses não nos deve intimidar nem nos autoriza a ausentar para parte incerta. Devemos construir desde o primeiro momento a nossa particular relação com o nosso/a filho/a, aprimorando-a através do tempo. Ter consciência da nossa ignorância é o primeiro passo para alcançar a sabedoria. Na verdade, podemos ter 30 ou 40 anos de idade, mas a nossa idade de pais só começa a contar quando o primeiro filho nasce. Observar, aprender, ir fazendo… 

Obviamente as exigências aumentam a um ritmo tão veloz como o do crescimento da criança, mas também o prazer de viver com um ser que se afirma no mundo com a nossa ajuda. Há tanto amor, tanto agradecimento que brota dum olhar ou do riso de uma criança que é fácil sentirmo-nos pequenos deuses. O mais fantástico é que esses momentos ameaçam intensificarem-se e prolongarem-se até ao fim dos nossos dias como uma espécie de rendimento afetivo perpétuo. Apesar do investimento que temos de fazer ser permanente, ele é sempre inferior ao retorno. 

Do compromisso à entrega, da entrega à dedicação. A dedicação é própria do amor, por isso não pesa na vontade, embora nos possa esgotar fisicamente. Mas isso é o que acontece a todos os projetos grandiosos que decidimos abraçar na vida. E ser pai é um projeto estruturante na vida de qualquer homem. 

Quando assumimos de corpo e alma a paternidade ganhamos uma relevância social inesperada. Somos facilmente alvo da admiração, do elogio de homens e mulheres, pouco habituados a ver os homens a assumir a paternidade como um elemento fundamental das suas vidas. A admiração e o elogio trazem o respeito e o poder. Um pai que se assume na sua plenitude raramente é afastado do convívio dos filhos, ainda que os pais sigam caminhos diferentes. 

O poder que uma relação forte com um filho dá a um pai nunca deve ser usado com maldade. Um filho não é arma de arremesso nem objeto de disputa. Um filho é uma honra que devemos glorificar.

Hoje faço treze anos de pai. E ser pai tem sido a aventura fabulosa que a vida me proporcionou.

quinta-feira, 16 de julho de 2015

PERGUNTAR (NÃO) OFENDE

ANABELA BORGES 
Passamos a vida a receber e a formular perguntas. Acredito mesmo que as perguntas assaltam-nos desde o primeiro sopro que deitamos ao mundo, isto já para não falar do estado em que somos seres uterinos, a apreender todo um mundo de luz e sons a cada dia mais desperto e misterioso. E desde que somos crianças e nos apropriamos da fala, começa a chamada “idade dos porquês”.

Por que fazemos tantas perguntas? Quantas vezes, as formulamos na nossa inocência e outras para lançar uma crítica, para ofender duramente? Quantas vezes não usamos as perguntas como meio de satisfazer a mera curiosidade? Como forma de esclarecer a latejante ou instantânea dúvida? Em razão de obter uma informação? Quantas vezes, as perguntas, adagas afiadas? 


“Perguntas são como mercadoria: há para todos os gostos.

Quase toda a gente tem o hábito de dizer, numa sequência de palavras fixadas pelo uso – com a boca cheia de bilabiais, alveolares, guturais, dentais, fricativas, e sons vocálicos todos misturados no meio, com um valor lógico de verdade e um valor lógico de falsidade –, que perguntar não ofende. E quase toda a gente sabe que isso não é verdade. Muitas vezes, por querer e sem querer, perguntar ofende. Muitas vezes, lança-se a pergunta com o firme propósito, muito embora escondido entre dentes, de ofender. São perguntas que soltam picos, espinhos, gumes, fios de navalha afiados das descidas das bocas de quem as formula; constrangedoras, provocatórias, intimidatórias e desdenhosas para quem leva com elas. Há perguntas que são cobardes, que influenciam a resposta – tipo, esperas ouvir um sim ou não, claramente. Há também as perguntas difíceis, as que nem sempre são formuladas para ofender, mas são, assim mesmo, perigosas, embaraçosas, de resposta dolorosa, imprópria, ou adversa. Não raras vezes, as perguntas chamadas de algibeira obrigam-nos a mentir, cumprindo apenas parcialmente a sua função, porque, vejamos: a pergunta obtém uma resposta, mas falsa. Há perguntas que escusavam de existir, meras fantasias de vontades retóricas: lança-se a pergunta com a resposta dependurada na ponta da língua; pergunta-se a saber já a resposta, nítida, clara como a água. Quase podíamos dizer que são perguntas estúpidas, mas seria um exagero, porque, parecendo embora desnecessárias, elas podem ter um bom propósito: por vezes, são perguntas inseguras que precisam apenas de um consentimento para se sentirem mais à vontade na sua existência pergunta-não-pergunta; outras vezes, são perguntas poderosas, formuladas para nos fazerem refletir, a porem-nos a pulga atrás da orelha, uma cisma na cabeça. E há as perguntas inofensivas, genuínas, articuladas no desejo de, verdadeira e simplesmente, obter uma resposta – a resposta a uma dúvida, uma curiosidade, uma informação.

As perguntas pedem, são pedinchonas, interrogações ansiosas por respostas, e quem as recebe sente-se obrigado a responder. E é pouco recomendável ficarmos calados quando nos fazem uma pergunta, já que isso pode ser visto como falta de educação, desinteresse, embaraço, ou consentimento, porque quem cala, consente.”*

* Excerto do conto “A Pergunta”, anthologia de contos ATÉ SER PRIMAVERA, 2014.