terça-feira, 31 de março de 2015

À MINHA MANEIRA

REGINA SARDOEIRA
Vou ousar exprimir algumas reflexões acerca do “Acordo Ortográfico”, mesmo sabendo que a palavra “acordo” não será a mais oportuna, neste contexto. 

Conhecendo o latim e o grego, línguas mortas que estudei em tempos, percebo que o português deriva delas, essencialmente da primeira, sendo que, procurando a etimologia, as encontramos, invariavelmente. Mas também podemos descobrir outras origens tais como o árabe, o francês, o inglês e, em suma, uma prodigiosa “babel” de línguas a servir de estrutura às nossas caras palavras portuguesas. Agora mesmo, que falo em “babel”, não resisto a efabular um pouco.

Parece que no início dos tempos os homens falavam uma só língua e que, no auge da arrogância ou da temeridade, acharam por bem construir uma torre tão grandiosa que tivesse o poder de perfurar as nuvens, alcançar o céu e surpreender Deus no seu trono supremo. Porém, o criador não gostou desta ousadia (como antes não gostara das pretensões de Adão e Eva) e decidiu subverter o acordo entre os homens, confundindo-lhes o linguajar; de modo que, em breve deixaram de conseguir comunicar entre si, dispersando-se por toda a terra e deixando a Torre de Babel inacabada.

Interessante metáfora linguística, esta, visto que, da homogeneidade inicial resultaram todas as línguas e também a multiplicidade de regiões habitadas, cada uma delas detentora de usos e costumes peculiares – ou seja, de uma cultura! E no entanto, em todas as línguas, por mais arrevesadas que pareçam a quem delas não fez aprendizagem ou uso, existem signos ou termos em comum, signos ou termos muito próximos e há famílias linguísticas, grupos etimológicos ou o que quer que lhes queiram chamar os especialistas na matéria.

Não tendo possibilidade nenhuma de saber se a narrativa bíblica encontra fundamentos históricos ou se é simplesmente uma das numerosas metáforas que esse prodigioso livro encerra, mas tomando como certa a força da parábola, daqui retiro uma simples ilação: há um tronco semiológico comum, presente na marcação linguística através da qual os homens se entendem (desentendendo-se), sendo que as diferenças resultam de uma multiplicidade de fatores, muitos passíveis de serem equacionados, outros para sempre perdidos na bruma do tempo.

Retomando o tema que aqui me traz hoje, eu afirmo que, à partida, detestei a nova grafia das palavras que o dito acordo apresentava. Como iria escrever “cético”, em vez de “céptico”, “ato”, em vez de “acto”, “concetualizar”, em vez de “conceptualizar”? Como conseguir abolir o acento de “veem”, o hífen “de há de”, a acentuação, que distingue o presente, do pretérito perfeito, em “achamos”? Nunca iria fazê-lo, decidi, não desfiguraria desse modo a minha escrita!

Acontece que fui compelida a usar o Acordo em todos os textos oficiais, quer se tratasse do livro de ponto, quer fossem actas (atas) de reuniões e outros documentos, e mesmo nas aulas, já que os manuais passaram a ser impressos com as novas regras ortográficas! A princípio, acreditei na possibilidade de alternar modos de escrita: na escola, tenho que escrever “ata”, “letivo”, “ação”? Muito bem: mas nada me obrigará a fazê-lo noutros contextos! Sou obrigada a permitir que os alunos escrevam “cético”, “ótimo”, “efetivo”? Está certo: não lhes corrijo a grafia da palavra, mas reservo-me o direito de continuar a escrever céptico, óptimo e efectivo!

Cedo percebi que uma tal alternância não era, mental e psicologicamente, viável, prejudicando o natural fluir das palavras que normalmente preside à minha escrita. Tornar-me-ia, então, duas pessoas, uma que segue o Acordo, outra que o rejeita? Pactuaria oficialmente com uma certa norma ortográfica, para a recusar no plano da escrita privada?

Decidi analisar as mudanças e as críticas, ou seja: ver quais as palavras modificadas e depois prestar atenção àqueles que, com maior ou menor veemência, contestam o Acordo.

Acto por exemplo. É verdade que deriva do latim (actus, -us) e então, manter o “c” antes do “t “ confere à palavra outra substância, dá-lhe maior elevação, mais volume! “Ato”, deste modo grafado, é um pouco insignificante e, por outro lado, pode confundir-se com a 3ª pessoa do singular do presente do indicativo do verbo “atar”…mas depois lembrei-me de outros casos similares, já usuais na língua portuguesa.

“Tratar”, por exemplo, e “trato” são palavras cuja origem latina é o verbo tractare (o “c” caiu e, aparentemente, ninguém acha esquisito); “salto” pode ser, em simultâneo, uma componente de um sapato, o ato de saltar ou a 3ª pessoa do singular do presente do indicativo do verbo saltar. O que nos permite, na prática, discernir se estamos perante o ato de saltar ou o salto do sapato ou o verbo saltar? O contexto, como é evidente! E se acaso quisermos entender a raiz etimológica das palavras trato e tratar como procederemos? Consultando um dicionário etimológico ou especializando-nos em latim!

O que dizer, por outro lado, de palavras que, no trânsito do latim para o português, se foram alterando de tal modo que só alguns especialistas poderão descrever, exatamente, (se puderem) a história das sucessivas metamorfoses?

Lembrei-me naturalmente de Rainha, pois sei que o meu nome, Regina, é latino (mas também italiano moderno) e foi ele que lhe deu origem. Reina, Raina, Reinha, Reya (com til no y), assim se foi escrevendo “rainha” consoante os tempos até, aparentemente, se fixar na palavra que usamos hoje para aludir à esposa do rei. Então, porque me chamo eu, Regina e não Rainha, sendo que os italianos ainda usam o meu nome para significar rainha?

A diversidade linguística é um fenómeno complexo, tenha sido ou não oriundo das birras do homem com Deus, aquando da construção da Torre de Babel. Cada língua, individualmente considerada, dá imenso trabalho a dominar e a compreender se é que alguém consegue fazê-lo inteiramente. Há sempre momentos obscuros na história de certas palavras, origens pouco exatas quando seguimos o rasto de alguns termos, duplicidades alarmantes quanto ao modo mais correto de utilizar adequadamente muitos vocábulos.

No último livro que publiquei – O BESTA CÉLERE – deixei passar um erro, isso mesmo, um erro, e aparentemente, nenhum leitor o detetou ou, se acaso detetou, não achou necessário informar-me! Fiquei um pouco envergonhada, confesso, quando, numa das releituras que fiz, percebi que usara inadequadamente a palavra “eminente”. Eu pretendia significar “próximo”; mas ao escrever a palavra com um “e” e não com um “i, alterei – lhe o significado e em vez de “próximo” ou “prestes” passou a querer dizer “alto” ou “elevado”! E no entanto as palavras pronunciam-se exatamente do mesmo modo, assim como as suas congéneres “eminência” e “iminência”! Se aludo a este facto, agora, é na medida em que, por mais que nos julguemos aptos, quer na escrita, quer na fala, uma pequeníssima distração pode desencadear erro lamentáveis!

Vejamos Camões. Há uma espécie de falha ou vício linguístico chamado “cacofonia”, do grego κακός (=mau) e φωνία (som), no primeiro verso de um dos seus mais célebres sonetos.

“Alma minha gentil que te partiste (…)”, escreve o poeta; e contudo a junção das duas primeiras palavras cria uma outra (maminha) que não estava, cremos, na sua intenção poética e que talvez ele tivesse evitado se acaso nela houvesse reparado.

O facto de eu ter escrito “eminente” e não “iminente”, como desejava, significa ignorância, desleixo ou, à semelhança de Camões, não dei conta do erro, a princípio, mesmo sabendo o significado exato das duas palavras?

Multiplicar exemplos tornar-se-ia fastidioso, sem dúvida, e afastar-me-ia do tópico que escolhi para hoje. O Acordo Ortográfico. Essa norma linguística celebrada entre países lusófonos (se é que foi), fruto de estudos de eminentes linguistas (creio eu) e imposta (parece-me) aos portugueses, que a utilizam, um pouco por todo o lado, desde as legendas dos filmes, aos sinais de trânsito.

A verdade é que comecei a escrever, utilizando a nova grafia, primeiro no livro de ponto, nas atas, na sala de aula e depois, quase sem dar conta, na generalidade dos textos que produzo. E deixei de perceber o antagonismo que continuo a encontrar aqui ou ali, só porque agora se escreve ótimo e não óptimo, exato e não exacto, diretor e não director!

Ouvi falar da zanga de Teixeira de Pascoaes quando, em português, deixou de usar-se o y que foi substituído por i. Lamentava-se o poeta (mais ou menos): A palavra abysmo por exemplo é muito mais profunda com aquele y no meio: o i retira-lhe dimensão!

Compreendo-o perfeitamente. Ainda me custa escrever “cético” e não “céptico” e vejo bem o poder do y a marcar o abysmo! Mas serão estas, razões válidas para antagonizarmos um modo de escrita que marca a evolução linguística (não esquecendo que, evoluir não significa, necessariamente, melhorar)?

Creio que estar contra o acordo ortográfico é, no fundo, uma atitude fútil, uma birra! Esses mesmos que se recusam a escrever, usando a nova grafia, provavelmente incluem nos seus hábitos de escrita (se os têm) termos como post (para significar publicação), postar (para significar publicar), download, querendo exprimir o ato de descarregar (em português), password, em lugar de palavra-passe… e tantos, tantos outros estrangeirismos que, tal como futebol (football) ou ecrã (écran) ou marquise ou abajur (abat jour) ou sei lá que mais…se imiscuíram na nossa língua e lá permanecerão em coabitação pacífica com o vernáculo! Esses mesmos que proclamam, por onde podem, que o Acordo Ortográfico é uma “bandalheira” não se coibirão de cumprimentar o amigo dizendo “oi” e despedir-se dele, pronunciando “xau” e, entre os dois momentos, desafiá-lo para “bater um papo”!

Pode ser que o Acordo Ortográfico seja um Desacordo ou uma Imposição ou o resultado de convénios políticos, e não decorra, necessariamente, de uma dinâmica natural da língua que, aos poucos, transforma o fortuito em regra. Pode ser que sim. Mas também pode ser que não. 

Quanto a mim, comecei a utilizá-lo, primeiro, fruto de imposições profissionais – afinal, sou professora – depois, porque me parecia estranho escrever, ora de um modo ora de outro, ora das duas formas, em simultâneo; até que creio ter assimilado a nova grafia, tal como, há muitos anos atrás, aprendi a escrever “somente” e “sozinho” em vez de “sòmente” e “sòzinho” ou “admiravelmente” e “necessariamente” em lugar de “admiràvelmente” e “necessàriamente”. Estranhei, a princípio, e hoje estranho a presença dos acentos graves.

Em resumo: escreverei à nova maneira, com segurança e sem preconceitos, evitando (como já fazia antes) certas palavras que, mesmo sendo portuguesíssimas, me parecem destoar esteticamente de alguns dos meus contextos criativos. Quem quiser criticar-me, apresentando razões válidas para permanecermos fiéis ao “óptimo” e ao “céptico”, ao “acto” e ao “directo”, ao “vêem” e ao “há-de” que o faça pois, apesar de tudo, tenho receio de que me esteja a escapar qualquer pormenor, subtil ou arrevesado, nesta complexa teia em que se transformou o ato humano de comunicar.

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