quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

ESCREVER PARA CRIANÇAS

ANABELA BORGES
Escrever para crianças é uma aventura sem fim.

Poucas actividades me dão tanta satisfação como marcar encontros com crianças, em escolas e bibliotecas.
Encontros com crianças permitem-me a partilha de histórias, de vivências e experiências, de uma forma única e completamente imprevisível. E desengane-se quem pensar que as crianças não as têm – as vivências e experiências. E quando não as têm, inventam-nas. Grande poeta é a criança, dotada de um imaginário sem limites. O diálogo com crianças é sempre um profícuo mundo de ideias. Elas conseguem trazer à conversa o mundo inteiro. À sua maneira, as crianças partilham, de forma desprendida e pura, as poucas vivências e experiências que, positiva ou negativamente, as marcam e, sobretudo, inventam concepções para qualquer situação: fazem-nos lembrar o meio mundo que trazemos esquecido (que a nossa mente não quer lembrar) e fazem-nos esquecer outro tanto – como num equilíbrio natural que fosse inteiramente realizado pela natureza. No seu mundo, uma criança permite-se encontrar soluções para tudo.

Quando as deixamos, depois de um encontro, levamos, a um tempo, a alma aquecida de afagos e um embaraçoso desassossego, do género “pedra no sapato”, incómodos de fragilidades humanas que as crianças, inevitavelmente, despertam em nós.  

Nas mãos de uma criança, uma história voa pelos imensos mundos da realidade, da ficção, da fantasia. Não é difícil pegar numa história, numa ideia, e transformá-la num turbilhão de sensações, vozes e ruídos. Um rumor. A voz das crianças é também um rumor sem fim.

Nesse jogo de vozes e ruídos, há tons que encantam as crianças: as vozes agudas, as graves, as que imitam os sons da água, do vento, dos animais, dos seres encantados. As crianças entendem muito bem essas vozes. São as vozes que cabem no seu imenso imaginário, o mesmo imaginário que vai construindo e desconstruindo toda a relação que têm com o mundo: os bons, os maus, a Natureza, os bichos, os jovens ou os velhinhos.

Quando, pela primeira vez, escrevi para crianças, senti o peso da responsabilidade. Era um peso-responsabilidade próprio de quem tem de voltar a ingressar em todo um mundo que foi ficando para trás, mais e mais para trás. Pode ser uma sensação semelhante à de tirar objectos esquecidos de um baú. É impressionante como largamos tão cedo esse mundo inteiro da infância, e ficam só pedacinhos amassados num canto do que somos.


Foram elas, as crianças, que fizeram com que eu escrevesse para crianças. Foram elas, que são as mais cândidas e exigentes leitoras que algum autor pode ambicionar, que fizeram com que eu andasse aos tombos e regressasse, ainda que não inteira (pois que me pareceu tarefa impossível), ao mundo de ser criança.   

Foi em 2012. Recebi um honroso convite para visitar a EB1 e Jardim de Infância da minha freguesia (a mesma escola onde todos nós, os quatro de casa, pai mãe e filhas, estudáramos), que, a bem dizer, fica-me a dois palmos de casa, no Dia Mundial da Criança. O objetivo era que eu falasse um pouco da minha experiência enquanto autora. Aceitei, de imediato, o convite, e fiquei seriamente a pensar nos propósitos que haveriam de me levar a visitar aquelas crianças. Pensei: falo um pouco da minha experiência enquanto autora, conto-lhes uma história que conheça bem, converso um pouco com eles. E, pouco tempo depois, pensei: mas que aborrecido! Eram crianças com idades compreendidas entre os três e os nove anos. Se eu ia lá enquanto autora, pois essas crianças mereciam, no mínimo, que escrevesse alguma coisa para elas. E pronto. Suei, fiquei amarela (não é fácil escrever para crianças); agarrei-me ao que tinha próximo – as gatas, a cadela, sardaniscas e aranhas. E assim nasceram quatro histórias em verso, com animais.

O resultado foi tão interessante que fui contando essas quatro histórias em mais e mais escolinhas, até que nasceu o livro de fábulas AS FAMÍLIAS DOS ANIMAIS (agora com um total de dez histórias).

Muito do que lá está, recolhi junto das crianças. Elas são as mentoras deste livro, que levou dois anos em experiências, dois anos a ouvir as (re)ações das crianças, depois de algumas conversas sérias e muitas gargalhadas.


É preciso ouvir as crianças. Se houvesse o maior livro do mundo (quando houver), ele seria (será), seguramente, escrito por crianças. Elas têm dentro delas um mundo sem fim. O caminho é por lá.

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