sexta-feira, 31 de outubro de 2014

MAIS UM TESOURINHO DEPRIMENTE DO FISCO PORTUGUÊS

GABRIEL VILAS BOAS
Nos últimos dias, tem corrido pelos jornais e redes sociais o chocante caso duma senhora a quem o Fisco penhorou a casa, na sequência duma dívida de 1900 euros relativos ao IUC (imposto único de circulação), depois da referida senhora se ter esquecido de informar as finanças que tinha mandado abater dois carros. Em contraponto, assinalam alguns artigos de opinião que vou lendo, o mesmo Fisco resolveu perdoar três vezes Ricardo Salgado, que se esqueceu de o “informar” dos seus ganhos e não entregou ao Estado qualquer coisa como 26 milões de euros.

Ora, nada mais natural para o Fisco em Portugal. Fraco, brando, permissivo com os fortes; forte, implacável, justiceiro com os fracos. 

Em Portugal, há decisões e motivações tão óbvias que não precisam de legendas nem de traduções. São decisões como estas, desprovidas de bom senso, que fizeram tanto pela cultura de fuga ao fisco, que dura há décadas. Nos últimos anos, a população tinha ganho a consciência que os impostos eram para pagar e quem prevaricava não encontrava guarida entre o povo. 

Claro que as pessoas protestam com a carga fiscal e obviamente anotam as falhas dessa máquina predadora, mas procuravam não confundir aqueles que executam as leis com aqueles que as determinam. No entanto, as chefias das finanças têm-se esmerado por destruir esse trabalho de aculturação fiscal, cometendo injustiças atrás de injustiças, agindo com má-fé, enganando-se nas contas, não devolvendo dinheiro devido aos contribuintes em prazos razoáveis, emperrando pedidos de reavaliações, ameaçando com execuções fiscais por dívidas de cêntimos. Enfim, um fartote de prepotência, que indigna uma população a viver no limiar do impossível. Às vezes, fazem lembrar um pouco a insensibilidade da corte de Luís XVI e Marie Antoinette. 

Falar da atuação do Fisco no caso BES e da família Salgado é contar uma anedota de mau gosto. Infelizmente, todos nós sabemos que aquilo que Ricardo Salgado fez com o Fisco era proibido, mas que só ele pôde fazê-lo, porque sabia que nada lhe aconteceria. 

Felizmente, ainda há em Portugal um conjunto de pessoas providas de bom senso e humanidade e em poucas horas um grupo de contabilistas reuniu o dinheiro necessário para pagar a dívida da senhora em causa, que deixa de ter a casa penhorada. 

Para o Fisco, fica apenas um desafio – Metam-se com gente do vosso tamanho!

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

CRISE NA «INSTITUIÇÃO FAMÍLIA»

HÉLDER BARROS
Enquanto docente do terceiro ciclo do ensino básico e secundário, não posso deixar de revelar alguma perplexidade e até preocupação, com a crescente degradação, muito próxima já do precipício, da Instituição secular que se consubstancia na Família.

É sempre cómoda a desculpa da falta de tempo e da recorrente alusão ao ritmo bastante acelerado da sociedade atual, por parte dos pais que, de uma forma geral, tentam postergar e deixar para segundo plano, a tarefa nobre de Educar os seus filhos. São sempre desculpas de mau pagador...

A Família é uma Instituição que sempre foi nuclear e de grande importância, desde as sociedades pré-históricas, em que a noção de tribo se cumpria de forma plena. Por esse tempo, o sentido gregário dos humanos, começava-se a cultivar no seio familiar e expandia-se à Tribo. Saliente-se o papel preponderante dos mais velhos de então, sempre os mais ouvidos e respeitados, verdadeiros anciões do templo... 

Pelo que tenho lido e ouvido, se recuarmos aos primeiros tempos da fundação da nossa nacionalidade, torna-se possível constatar que na organização sócio-política de então, estribada numa Monarquia Tradicional, a Família era também um dos pilares mais importantes da sociedade. Repare-se que, desde que somos nação, vivemos muito tempo nesse regime político.

O modelo de organização social vigente em Portugal, com uma forte inspiração nos arquétipos seguidos pelos países do Norte da Europa e da América, privilegia o culto do individualismo, liberalismo político, económico e dos costumes. Penso que essa característica marcante vai contra a nossa maneira de ser, a da nossa Portugalidade e é, a meu ver, quase contranatura. 

A nossa forma ancestral de viver em família e em lógicas de cooperação onde prevalecia o espirito de entreajuda grupal, em que a noção de boa vizinhança, de cumprimentar quem passa, de conversar em grupos, que nem Salazar e a PIDE calaram, tem muito mais a ver com o nosso espirito latino e Português.

Este vasto introito para referir que, quando qualquer Pai ou mãe, no papel efetivo de Encarregados de Educação dos seus filhos, decidem irromper por uma qualquer sala de aulas, de uma qualquer escola portuguesa e agridem um Professor, devido a um putativo abuso deste no exercício das suas funções docentes, baseados apenas na versão que os seus educandos lhes apresentam; nem sonham o mal que lhes estão a fazer, por via do seu péssimo exemplo, da negação da Educação...

E não, não sou monárquico, afirmo-me republicano e democrata, mas consciente que todas as grandes civilizações terminaram um dia... e a nossa caminha muito depressa para a destruição, num processo autofágico, e se não arrepiarmos caminho, um dia poderá ser já tarde demais! 

Não sou é maniqueísta, procurando nas raízes da nossa história os aspetos que mais nos elevaram e os princípios que estiveram na base da sustentabilidade da nossa velha e grandiosa nação, embora pequena em dimensão territorial, mas que sempre teve um ímpeto expansionista, ao nível da conquista de novos lugares e de novos saberes, acrescentando sempre mais mundo ao Mundo!

Mas, a parte negra disto tudo, é assistirmos a inúmeros casos deste género nas Escolas Portuguesas e, não havendo recorrentemente consequências, estamos a lançar as sementes, não da Educação e da Formação integral dos nossos jovens, mas a preparar a germinação da ruína da nossa nação e da correspondente Portugalidade.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

SER PROFESSOR DE EMRC

SARA MAGALHÃES
Pensar no perfil do professor de EMRC é, sem dúvida, pensar no seu papel de cristão no mundo e na sua procura da questão do sentido da sua tarefa. Tudo o que possa ser dito ou pensado sobre o seu papel na escola, está profundamente marcado pelos 20 séculos de cristianismo. Recorreríamos num primeiro momento à memória, relativamente ao percurso da história do cristianismo no mundo, desde a sua origem como comunidade minoritária. 

O mundo actual está marcado por um conjunto de problemas que simultaneamente constituem desafios: vivemos numa época individualista, que está sujeita a aparatosos movimentos de solidariedade produzida pelos mecanismos publicitários. Estas manifestações de solidariedade de massas são bem distintas da solidariedade cristã. A solidariedade cristã não se fundamenta em movimentos de massa nem serve os interesses de cada indivíduo, mas na solidariedade concreta e extrema de Cristo, que se entregou por todos, sem acepção de ninguém. 

Esta realidade exige uma conversão que se concretiza em acção. Esta acção será a procura da justiça básica: a justiça da verdade. E procurar a verdade significa caminhar para um reconhecimento mais profundo da solidariedade: o amor, entendido como agapê, na entrega de nós próprios ao outro e pelo outro, reconhecer que, como dom gratuito e não necessário de um Deus-Amor, existimos para nos darmos aos outros e pelos outros, significa reconhecer a mais profunda verdade e justiça da nossa existência. Para isso temos que nos “saber” na história, lida na cultura.[1]

É necessário saber-se colocar diante da cultura para que esta se possa manifestar na linguagem e na memória, num processo constante de encontro e diálogo. 

Um possível perigo a que devemos estar atentos é as “adaptações” teológicas que apenas pretendem servir os desejos e gostos de todos. 

A fé cristã como produtora de cultura assume a sua responsabilidade e define o seu sentido na educação, colocando-se ao serviço do homem e do mundo em nome de Jesus Cristo. Perante esta missão coloca-se o desafio ao professor de EMRC, sendo o mesmo que é colocado ao cristianismo: o desafio da globalização, cultura global (televisiva e mediática).

Diante deste desafio acrescento duas características ao perfil do professor de EMRC: saber introduzir a escuta do silêncio, como oportunidade de surgir algo novo, criativo, quer ao nível de reflexão, quer ao nível da relação inter-pessoal, em contraposição com o ruído presente na cultura vigente e a necessária recuperação da capacidade simbólica, corporal e espiritual do ser humano, como relação total, real de si mesmo com o outro e com o mundo. Uma vez que o nosso objecto de trabalho são o outro e a sua relação com Deus e o mundo, cabe ao professor de EMRC esgotar-se no acolhimento do outro; compreendendo o seu espaço (interior e exterior), para o poder fazer dialogar com o mundo tornando-o, ao mesmo tempo agente e colaborador da história da humanidade.

[1] GONZÁLEZ-CARVAJAL, Luís – Ideas y creencias del hombre actual, Sal Terrae, Santander, 1999, p.17

terça-feira, 28 de outubro de 2014

O GÉNIO E O EMBUSTE

REGINA SARDOEIRA
Vivemos num tempo e num mundo – cá estão os omnipresentes tempo e espaço, sem os quais, enquanto humanos, perderíamos referências – marcados por um acirrado individualismo, sinal intrínseco daqueles que ocupam todo o lugar disponível, sem deixarem uma hipótese, sequer, de lugar para o outro. O outro só entra, no círculo que à volta deles traçaram, se acaso lhes interessar, enquanto admirador, ou dele precisar de extrair benefício. 

Cada um opina, sentencia, prescreve – e aponta o dedo para si, como se fosse o exemplo. E exibe-se em todas as montras do mundo, ostentando o que acredita serem vantagens e usando os meios disponíveis para captar um séquito de discípulos. Se o vulgo contabilizar as atenções prestadas ao dito exibicionista, e vir que são da ordem das centenas, dos milhares, dos milhões – consoante o universo exibicional – julga que deve segui-lo, pois tantos não podem estar enganados e quem é ele para se opor a cem, a mil, a um milhão de adeptos? E eis que o opinador, sentenciador ou prescritor se vê aplaudido por tantos e tão variados, que começa a acreditar no evidente e inquestionável brilho do seu génio.

Assim se explica que a mediocridade alastre e vá ganhando um território, cada vez mais extenso, a tal ponto que o pobre lúcido que devassa os feitos desse que é aclamado e elevado aos píncaros, e nada encontra, nele e na sua obra, de notável ou sequer de mediano, mergulha em profundo solipsismo e constrói para si uma fortaleza de ensimesmamento.

Esta mediocridade revestida de talento, ou grandeza, ou génio, este séquito de gurus e de estrelas e de famosos que, nada fazendo de extraordinário, ditam as regras do mundo, alastram em todos os campos possíveis.

Ali, pontifica um astro da política, um analista, um comentador. Nada diz de extraordinário, nada analisa que tenha valor, de facto, e os seus comentários mal atingem o lugar-comum. Mas dia após dia, mês após mês, entra-nos em casa e opina, analisa, comenta. E o vulgo, incauto, pensa: quem sou eu, pobre anónimo, neste aglomerado de talentos, para sequer arranhar a superfície de tão emérito palrador?

Além, perfilam-se os escritores, os ganhadores de prémios, os campeões da edição, os corredores de grandes maratonas de sessões de autógrafos e de apresentações. Mas, quando se pega nos livros para começar a ler, um enorme desgosto, uma verdadeira e triste deceção obrigam o real conhecedor a cerrar as páginas, angustiado e triste. Mas eles, todos esses, que se sentam em auditórios, bibliotecas e feiras e aplaudem, são engolidos no logro e, se acaso veem o erro estampado nas páginas, eis que consideram que não será erro, mas criatividade, que não será logro, mas engenho!

Mais adiante surge o artista plástico, o pintor, a espalhar arabescos e borrões pelas telas, a criar monstros e aberrações, deformando rostos e corpos, tecendo uma enorme confusão, mascarada de profundidade, mas sem sombra de talento ou de técnica. Expõe e faz o seu próprio panegírico. E de novo, o vulgo, distraído e pouco preparado, arregala os olhos e proclama, Deve ser bom, embora eu não compreenda! E gostam, todos esses ignorantes, de vaguear por galerias e museus, embasbacados, e, se puderem, compram o original ou a réplica e ostentam a preciosidade na sua parede principal.

Mesmo nos campos de jogo, onde meia dúzia de pontapés certeiros, muita manha, cotovelada e empurrão decidem o talento e afirmam a genialidade, feita, quase exclusivamente, de um intenso e exclusivo trabalho de treino, as reputações são erguidas ou atiradas ao chão, e a estrela do pontapé e dos músculos é apontada como exemplo a seguir e, se os houvesse ainda nas cabeças, todos os chapéus seriam tirados, quando eles passam, orgulhosos, nas avenidas do mundo!

E os modelos das passerelles? Falo, não dos homens e mulheres amaneirados, que desfilam como se, naquele ato, houvessem sido guindados à categoria de ícones, mas das roupas e acessórios que os fazem usar, dos ares sisudos ou enjoados que lhes mandam ensaiar, dos truques de sedução com que os levam a menear o corpo e a expor intimidades. Esses, nada tem de modelar, nada exibem que valha a pena copiar, mas o espectador, desprevenido, confunde aqueles lamentáveis espetáculos, com beleza, aquela triste e degradada atrocidade, com criação e mérito e não ousam revelar a plenos pulmões que, afinal, «o rei vai nu»!

Ser-me-ia possível continuar e falar dos concursos de culinária, em que os «chefs» combinam e misturam e temperam e trituram e mexem e dão conselhos e no fim autoelogiam-se, falando das suas criações, como sendo, nada menos, que produtos perfeitos, delícias para os mais refinados palatos e provam e estalam os dedos…e, do lado de cá, o espectador nunca poderá saber se o prato, acabado de fazer, sabia bem ou se o criador se enganou nas porções e prova, afinal, um repasto intragável! Ou então, referir o exemplo de todos aqueles que cantam, sem de facto cantar, que compõem música sem fazerem a menor ideia do que tal significa, dos que representam nos palcos e nas telas, retirando todo o sentido às personagens e à arte, porque nada sabem transpor de si para aquele a quem deveriam conferir uma nova vida…mas parece-me que ilustrei o tema, parece-me que bati no ponto!

Vivemos numa era de ilusão, num universo de mentira e deturpação, numa amálgama de falsos talentos e falsas obras de arte, levantados aos píncaros, vivemos horas terríveis de vazio e de ausência de critérios, em que é praticamente impossível discernir o bom e o mau, o medíocre e o genial, o que deve ser seguido e o que deve ser esquecido instantaneamente. A História – esse outro mito, mas, afinal, o repositório de tudo o que tem valido a pena no mundo – fará a sua justiça, mais tarde ou mais cedo, e dará ao génio o lugar que merece, retirando protagonismo ao embusteiro.

Não quis ser pessimista com este retrato pouco abonatório dos critérios, se é que existem critérios, com que se erguem e se afundam reputações. Sei bem que anda por aí o talento, o génio, a sabedoria, a técnica e que, no meio de tantos ardis, se ocultam os artífices supremos e os guias do nosso tempo. Conheço alguns deles, oiço-os, leio-os, vejo-lhes a obra. Mas, em simultâneo, percebo o pouco lugar que eles preferem ocupar (se acaso existisse algum!), vejo como se distanciam das pompas e das multidões, percebo como aderem à humildade e à solidão. 

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

CIDADANIA

CATARINA DINIS
A cidadania é um projecto colectivo em que devemos participar de livre e bom agrado. Ela projecta o que há de positivo na nossa sociedade, a liberdade e a escolha, nessa base nós somos os responsáveis por nós próprios e em conjunto somos responsáveis pelo nosso país e sociedade actual. Na cidadania encontramos o direito e o dever. Uma dicotomia que ganhamos graças ao sistema democrático e politico mas também como tal devemos resguardar esta dicotomia da anarquia irracional de determinadas elites que tendem a usar o poder e diminuir o direito e o dever, deixando nos sem um chão fixo para caminhar. O certo e o errado sempre estiveram presentes no nosso quotidiano, no nosso centro de decisões e da cidadania.

domingo, 26 de outubro de 2014

VENTOS CONTRÁRIOS

MIGUEL GOMES
Gosto de afagar o destino. 

De lhe dizer, no final de cada dia, que o amanhã será o que ele tiver sonhado, apenas e só, para na recursividade do sentir, ele se soltar desta matriz, complexa, e ser o que é, destino.

As tardes vão-se julgando por quanto de sonoridade convexa se expande da televisão ou do computador. 

Não sejas, materializa-te nas etiquetas do que vês, no rating das tuas (boas?) acções, rasteja sob o jugo do que te impõe quem te manieta, para poderes dar um passo da cadeia à janela gradificada que é a tua liberdade.

Enquanto não fores de vento, toda a tempestade te atirará contra o contrário.

Amanhã, pelos raiares do dia, ainda que nublado, serás marioneta dos teus sentidos, sem te despedires do teu mais alto ser, percorrerás as estradas e dirás, orgulhoso, antes de trabalhar, que vais à luta.

Mas a luta é o teu maior antídoto à dopagem de quem se acerca de ti com o dicionário, em riste, de folhas brancas, com apenas um significado escrito para o teu desejo de ser mais: implica consequentemente severas sanções já que significa frequentemente um risco para a segurança dos outros ou dos interesses colectivos.

A felicidade caber-te-ia na palma da mão, se soubesses que a tua liberdade, ao invés das tuas aplicações a prazo, são do tamanho da segurança de quem te deu a vida.

Dou por mim a lembrar-me de Mateus, em temos de outras pérolas, outros porcos, ou do que escreveram em nome dele: Não vos inquieteis quanto à vossa vida, com o que haveis de comer ou beber, nem quanto ao vosso corpo, com o que haveis de vestir. Porventura não é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais do que o vestido? Olhai as aves do céu: não semeiam nem ceifam nem recolhem em celeiros; e o vosso Pai celeste alimenta-as. Qual de vós, por mais que se preocupe, pode acrescentar um só côvado à duração de sua vida? Porque vos preocupais com o vestuário? Olhai como crescem os lírios do campo: não trabalham nem fiam! Pois Eu vos digo: Nem Salomão, em toda a sua magnificência, se vestiu como qualquer deles. Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã será lançada ao fogo, como não fará muito mais por vós, homens de pouca fé? ... Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará por acréscimo...

O acréscimo é a consequência terrena de abrir os olhos e sentir, para respirar basta inspirar, quando o soubermos fazer pelo olhos, será o dia em que diremos adeus ao corpo.

Felizmente a maior poesia não pode ser escrita, ou lida, por nós. 

Apenas pelas árvores. 

E essas sim, nunca mentem ou obscurecem outros, apenas por serem de outra ramagem.

sábado, 25 de outubro de 2014

O PODER DO DESEMPODERAMENTO

J. EMANUEL QUEIRÓS
Fizemo-nos humanos perante o mundo, integrando heranças e adicionando descobertas processadas diante da nossa própria solidão. Todos membros de uma só Humanidade, cada um por si com a sua experiência, fazendo a ‘via dolorosa’ em diferentes estações e em estádios diferenciados de evolução mental e consciencial. 

As humanidades estão com o Homem, são propriedades intrínsecas ou faculdades que residem em cada um. A sua descoberta e o sentido prático do seu uso cabe a cada um encontrar e não há doutrina capaz de substituir a experimentação individual, nem regra que bem conduza o indivíduo na sua liberdade de realização, sem submissão por desconhecimento. A experiência processada faz do indivíduo, simultaneamente, laboratório e cientista, se para tanto ousar operar com a dúvida como fase metodológica orientada para o esclarecimento e a descoberta cartesiana.

A vida, na forma e no contexto, não é a constância inevitável como a apreendemos. Nem a organização social e o mundo humano são senão grandes ilusões colectivas construídas no artificialismo em que se perpetuam hierarquias e poderes mundanos talhados na conveniência de uma derradeira ordem castrense e beligerante. 

Todos estamos operando como ferramentas de garimpo para algum empossado imperador, feito senhor da terra e guardador de rebanhos. Todos contribuindo para algum desígnio temporal fortuito, dominados nas crenças, nas emoções, nas tradições tribais ou nos preconceitos grupais de que ‘assim é porque assim tem de ser’. Circunstâncias formais para aceitação do indivíduo regulado pelo padrão comum e para a emissão tácita de visto à inclusão. Todavia, permanecemos quase todo o tempo distantes da realidade do mundo e desencontrados de nós mesmos.

As vulnerabilidades individuais e as fraquezas dos homens com que nos deparamos são constantes e estão generalizadas. São patentes em qualquer circunstância da vida comum em sociedade, hoje sustentada em habilidades intelectuais treinadas nos bancos das escolas desde as mais precoces aprendizagens. A constatação aponta para uma dimensão da natureza humana latente, sustentada na ausência de atendimento e em permanente estado de ocultação. Sendo susceptível de não ser atingida pelo processo de ensino/aprendizagem, faz crer que a educação que nos é oferecida em processo familiar e oficial corrente e as insistentes aprendizagens comuns serão meras artimanhas de um sistema orientado para a manutenção de uma vil hierarquia de poderes que nos tem como seus acríticos serventuários e suas convenientes vítimas.

Somos individualidades que nos reconhecemos nos meios sociais em que aportamos, nos modos de estar no mundo e nas idiossincrasias, em resultado de um contínuo e prolongado processo de aprendizagens sócio-culturais formais e informais. Neles adquirimos saberes convencionados, divulgados e comuns, onde outros são mais restritos, associados a segmentos profissionais, todos conferindo algum domínio de conhecimento, de sabedoria e de poder. 

Contudo, no nosso mundo tangível também há um lado desconhecido, fisicamente perceptível, enorme, mas que a crença e a cultura humana preconceituosamente têm feito por ocultar, por conveniência da ordem estabelecida, que as ciências ignoram ou ridicularizam por desconhecimento e que o senso comum se ocupa de escarnecer.

Se o conhecimento é um poder conquistado pelo homem em seu próprio proveito, como instrumento do seu bem-estar e da sua auto-descoberta, o desconhecido e a sua manutenção é um vastíssimo campo de poder de desempoderamento que condiciona o indivíduo pelo medo que infunde, pelo jugo da limitação e pelo modo subtil de submissão em que silenciosamente opera.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

VOANDO SOBRE UM NINHO DE CUCO

GABRIEL VILAS BOAS
DR
Há cinco dias, terminou em Roma o Sínodo dos Bispos, que entre vários assuntos discutiu dois temas
polémicos, por proposta do Papa Francisco: a aceitação dos homossexuais assumidos dentro da Igreja e a possibilidade dos divorciados acederem de novo ao sacramento do matrimónio, ou seja, permitir que um divorciado voltasse a casar pela Igreja. O Papa Francisco determinou que qualquer decisão/recomendação fosse aprovada por maioria qualificada, ou seja, de dois terços. O sínodo é composto por perto de 200 bispos.

Foi uma estrondosa derrota do Papa Francisco. Não há outra maneira de ver esta votação. Em mais de vinte meses de Papado, Francisco não tem poupado esforços para aproximar a Igreja dos cristãos, praticantes ou não, mas também aqueles que não se assumem cristãos nem católicos e olham para a intervenção do Papa argentino com esperança de mudanças profundas na Igreja. 

O Papa Francisco olhou para um dos problemas da Igreja católica e atacou-o frontalmente: a exclusão que a Igreja faz(ia) em relação a determinados grupos de cristãos não faz sentido e havia que mudar de postura. Ao propor o que propôs era evidente o que pensava. Os bispos sinodais não precisavam que Francisco o afirmasse perentoriamente, até para não ser acusado de condicionar a sua liberdade.

A verdade é que Francisco não encontrou 120 bispos que confirmassem um eixo fundamental das suas reformas na Igreja. A ala conservadora é maioritária dentro da cúria romana. Nós já o suspeitávamos, agora temos a certeza. 

Os bispos ortodoxos não têm problema nenhum em confrontar abertamente sua eminência, o Papa. A autoridade papal foi nitidamente posta em causa e alguns bispos não tiveram pejo em defender publicamente a sua divergência. 

Na minha opinião, esta clamorosa derrota do Papa Francisco foi uma afronta. Um Cardeal americano, Raymond Leo Burke, chegou a declarar que o papa tinha causado “um grande dano por não declarar abertamente qual era a sua posição.” Puro cinismo, pois toda a gente sabe a opinião de Francisco sobre o tema. 

É a primeira vez em pelo menos 50 anos, que um cardeal se opõe abertamente ao Papa. É a primeira vez também, em vários séculos, que Bispos e Cardeais não têm confiança nas propostas do Sumo Pontífice para a Igreja e as rejeitam.

Talvez alguns comecem a entender melhor por que renunciou Bento XVI. O motivo de base (os poderosos do Vaticano não estavam muito dispostos a ser firmes no castigo aos padres pedófilos), mas o boicote e o desafio à autoridade do Papa mantêm-se e reforça-se. 

Há alguns meses, comentei com um colega, o professor e escritor Luís Costa, que Francisco tinha pressa porque o mundo já tinha andado tanto para a frente enquanto a Igreja tinha ficado parada no tempo, mas que a principal luta seria dentro da própria Igreja, pois pensava (e continuo a pensar) que os poderes conservadores instalados no Vaticano boicotariam qualquer glasnost eclesial.

Francisco reagiu mal à reprovação das suas ideias vanguardistas, declarando que “A Igreja é de Cristo, não dos Pastores” e que “Cristo não tem medo da novidade”. 

Além de encurtar o enorme atraso que a Igreja leva na sua dinâmica social, Francisco tem de perceber que o Vaticano é governado por homens e entre eles fala-se de poder e muito pouco de ideologia. É por isso que não convém que o comunismo caía na China e ainda hoje Putin lamenta que Gorbatchev tenha sido secretário-geral do PCUS.

Francisco tem pouco tempo. E antes que lhe apareça um Brutus pelas costas é melhor concentrar o melhor de si no rebanho, porque os pastores não vão à sua missa.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

SOCIEDADE «MORTOS-VIVOS, SA»

ANABELA BORGES
DR
Aqui há tempos, vi, num apontamento da imprensa, que o humorista Nilton andou pelas ruas de Lisboa, caracterizado de zombie, a pregar sustos a lisboetas e turistas. Isto não é mais do que a moda pegada, reflectida numa acção do humorista, de uma sociedade que valoriza tudo o que seja do domínio do fantástico e em modo quanto-mais-irreal-feioso-sangrento-e-morto-vivo-melhor.  
No desenvolvimento desse apontamento, Nilton referia que “Em Portugal, estamos mais mortos do que vivos, estamos ligados à máquina”. É claro que a afirmação leva-nos a pensar na situação socioeconómica-cultural-de-valores-e-afins que o país atravessa. Mas a associação desta sentença à figura de um zombie levou-me a reflectir sobre o modus faciendi do fascínio, tipo produção em série, que se vem desenvolvendo ao longo da evolução humana, pelo terror, o crime, o desconhecido, os mistérios além-túmulo e a existência de possíveis submundos ou extra-mundos, ambientes pós-apocalípticos e outros lugares e feitios situados muito para além do conhecimento limitado que temos da nossa humilde galáxia.
São muitos os casos em que este género, agora também fortemente disseminado em séries de TV, tem vindo a constituir o deleite dos apreciadores nas telas dos cinemas, como “Braindead”, nos anos 90 – que levou a que em alguns lugares do mundo fossem distribuídos sacos de vómito para quem assistisse ao filme –, ou, nos anos 70, com o clássico “Despertar dos Mortos”, que estabeleceu um padrão e deu origem a uma avalanche de filmes do estilo. Estes e outros filmes constam de uma lista da Forbes dos melhores filmes de zombies de sempre. 
Não é difícil percorrermos a história do cinema e da literatura para nos depararmos com inúmeros livros e filmes, em sagas ou a solo, em que o importante é abandonar o real e buscar um qualquer submundo, um qualquer “Senhor dos Anéis” que nos faça crer que noutras dimensões do tempo, em eras difíceis de imaginar, e em espaços, camadas abaixo ou acima desse mesmo real, há outros mundos e seres defeituosos que precisamos de combater para assegurar a existência humana, ou para preservar uma determinada casta de seres quase perfeitos. O mesmo se passa nos filmes de ficção científica, com a criação de extra-mundos, extra-planeta-terra, extra-tudo.     
Não precisamos de ir muito longe, bastando recordar o sucesso da saga “Twilight”, em que os vampiros e os lobisomens passaram facilmente de vilões a moçoilos queridinhos das adolescentes.

O NEGÓCIO DOS MORTOS ESTÁ BEM VIVO
Parece que o negócio dos mortos está bem vivo, afinal.
A experiência colectiva de fenómenos como este ajuda a explicar não só o fascínio das pessoas por estes temas, mas também a maneira como este tipo de literatura, filmes ou séries se tornou uma febre à escala mundial.
Antes mesmo de serem publicados os livros ou estreados os filmes ou séries, há já toda uma publicidade, uma pré-venda, uma divulgação fora do comum. Muitas vezes, a divulgação é feita por fãs, em blogues, sites e redes sociais, com traduções mais ou menos foleiras, mas todos sabemos da gigantesca máquina financeira que está por detrás destes fenómenos de atrair milhões.
É certo que, enquanto existirmos, haverá o fascínio pelo desconhecido, mas na minha cabecinha, continuará a fazer-se uma enorme confusão, um “brainstorming”, quando leio que a série mata-mortos, sangue-com-sangue, “Walking Dead”, é uma das mais pirateadas em todo o mundo, distinguida com inúmeros prémios, vista por milhões de espectadores e já está na 5.ª temporada. É uma indústria que rende milhões, a moda dos mortos-vivos, fenómeno televisivo e cinematográfico de enorme popularidade.

Mas como? O que faz com que as pessoas apreciem o género?
Talvez, emocionalmente, as pessoas se vejam com necessidade de rever os seus dilemas e escolhas morais – espero que sim! É urgente que o façam e não se lembrem de andar por aí à cata de sangue. 
Talvez certas personagens dessas carreguem a promessa de um amor capaz de superar a morte, quando as pessoas são constantemente confrontadas com a finitude da vida – a esperança do amor eterno e da imortalidade, causas empreendedoras sempre acalentadas pelo ser frágil que somos.
Talvez os segredos dessa faceta humana permaneçam desconhecidos para sempre. Mas uma certeza parecem trazer: que são um inequívoco alimento para o espírito humano que aprecia o género. Falta saber que consequências nefastas daí advirão.

Afinal, quais de nós são os mortos-vivos?

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

VIVER COM PARALISIA CEREBRAL

Lembrem-se que nem tudo o que desconhecem é mau e nem tudo o que parece é... Há nomes que dizem tanto e não dizem nada, são verdadeiramente vazios de sentido, como é o caso de "paralisia cerebral"... 

Fátima Ferreira

À data em que escrevo esta prosa (20 de outubro), comemora-se pela primeira vez, o Dia Nacional da
PAULO SANTOS SILVA
DR
Paralisia Cerebral, instituído pela Resolução da Assembleia da República n.º 27/2014 e aprovado a 7 de Março. 

Contextualizando, “a paralisia cerebral traduz-se numa perturbação que afeta os movimentos do corpo e a coordenação motora. É causada por uma lesão de uma ou mais zonas do cérebro em desenvolvimento, que compromete a transmissão de informação que controla e organiza o movimento e a postura. Duas pessoas com Paralisia Cerebral não são afetadas da mesma forma; para alguns indivíduos as sequelas podem ser quase impercetíveis, enquanto que para outros são severas ou profundas, com grandes variações neste intervalo” (retirado da página web da Associação do Porto de Paralisia Cerebral). Embora tenha uma maior prevalência no sexo masculino, pode afetar pessoas de ambos os sexos e acontecer em qualquer família, uma vez que as causas para o seu surgimento são variadas. Algumas das mais comuns são:

- A prematuridade do bebé;

- Malformações do cérebro do bebé, sem razão aparente;

- Anóxia antes, durante ou após o parto;

- Infeção da mãe durante a gestação:

- Infeção contraída após o nascimento (ex: meningite)

- Lesões cerebrais resultantes de acidentes nos primeiros anos de vida.

Finalmente importa referir que a Paralisia Cerebral é, normalmente, diagnosticada até aos 3 anos de vida, não é progressiva (ou seja não piora com o passar dos anos) e, embora por vezes pareça, não é contagiosa. Estima-se que em Portugal mais de 20 mil pessoas sofram de Paralisia Cerebral. Segundo a presidente da Federação das Associações Portuguesas de Paralisia Cerebral, Eulália Calado, o que se passa neste momento é que estão "retirar toda a dignidade" à população de pessoas afetadas por paralisia cerebral com os cortes orçamentais que têm sido aplicados nas várias áreas implicadas, desde a Segurança Social à Saúde. "Não se pode ir ao sabor de políticas. Tire-se de onde se quiser, dos gabinetes dos ministros, tire-se dos carros, podem andar com carros de mais baixa cilindrada. São estas [as pessoas com paralisia cerebral] que necessitam mais. O Dia da Paralisia Cerebral dá para nós falarmos e os ecos talvez se reflitam nos outros 364 dias em que as pessoas se debatem com problemas tremendos"

De entre as várias iniciativas que se realizaram, destacaria o lançamento do livro “Por acaso…” da autoria da jornalista da RTP Fátima Araújo, com prefácio do Prof. Dr. João Lobo Antunes, uma das maiores autoridades, ao nível da Neurocirurgia. Este livro, é uma reportagem jornalística onde se relata as histórias de vida de cinco jovens que sofrem de Paralisia Cerebral. Segundo a autora, pretende-se mostrar que estes jovens “não obstante as suas limitações físicas, são casos de sucesso, de empreendedorismo social e laboral, de integração social bem-sucedida, de autoaceitação e de auto superação”, apresentando-os ao mesmo tempo como “exemplos de interação para desmistificar clichés e preconceitos que a sociedade continua a ter em relação aos deficientes, jovens exemplos de perseverança e exemplos de pessoas úteis e válidas”. Um euro da venda do livro reverte a favor da Associação do Porto de Paralisia Cerebral (APPC). Este destaque justifica-se porque tenho a honra e o orgulho de conhecer pessoalmente um destes cinco jovens – a Fátima Ferreira. 

A Fátima tem 38 anos e, tal como eu, é professora. Além de dedicar a sua vida ao ensino, é escritora e foi várias vezes campeã nacional de natação adaptada, tendo ganho inúmeras medalhas de ouro. Os nossos caminhos cruzaram-se no Ensino Superior. Ao pensar no tema a abordar nesta primeira crónica, deparei-me com a frase com que dou início à mesma, da autoria da Fátima e partilhada no seu perfil de uma rede social. Não que eu não conhecesse o percurso da Fátima e a sua luta ao longo dos anos contra o preconceito e as suas limitações, impondo a si própria novos objetivos a cada meta alcançada. De alguma forma ao lê-la, tornou-se muito claro algo de que nunca me tinha apercebido – eu nunca a tinha visto de forma diferente. Por outro lado, fez-me refletir. Refletir enquanto cidadão de uma sociedade que deveria proteger os que mais precisam e que insiste em fazer precisamente o contrário. É dramático ler que está a aumentar o número de crianças com paralisia cerebral que não vão às consultas por falta de dinheiro para o transporte. É dramático perceber que, em última análise, aquilo que estamos sonegar a essas pessoas é o primeiro e mais importante direito de qualquer ser humano – a dignidade. É urgente acordar as consciências. É urgente dar voz a estas pessoas e ouvir o que têm para nos dizer. Que este dia, seja o primeiro de muitos outros em que casos como o da Fátima Ferreira e dos outros quatro jovens relatados no livro, deixem de ser exceções, para passarem a ser a regra e, acima de tudo, exemplos de como a nossa sociedade se tornou mais justa, evoluída e solidária.

Fontes:

terça-feira, 21 de outubro de 2014

O PARADOXO DO TEMPO

REGINA SARDOEIRA
DR
Habituámo-nos a considerar que o tempo se organiza de um modo linear, vindo do passado – esta manhã – fixando-se, efemeramente, no presente – agora, segunda-feira, dia 20 de outubro, 14:58 horas – caminhando para o futuro – logo à noite. Supomos ter nascido um certo dia – que, paradoxalmente, não somos capazes de recordar – e que durante uma parcela de tempo – que não conseguimos determinar, a priori – estaremos vivos para, por fim – numa data que jamais conheceremos, mas que sucederá um dia, sem que disso tomemos consciência – a morte nos apanhar. Lemos a história dos homens e dividimos o tempo, numa inexorabilidade de acontecimentos e de datas, em que uns são a causa de outros, e sempre as consequências são, temporalmente, posteriores àquilo que, no passado, as engendrou.

Passado, presente, futuro, assim mesmo. E, a uma tal sequência, adaptamos as eras do tempo, os calendários, os relógios, os múltiplos horários com que nos regulamos, vivendo na convicção absoluta de que as épocas não se intersectam, muito menos fluem de diante para trás, muito menos se amalgamam num único patamar.

Porém, e começando pelo mais óbvio, é ou não verdade que lá à frente, no futuro (supomos nós), um certo ano, dia, hora, minuto e segundo nos trará, irrefragavelmente, a nossa própria morte? E essa é uma certeza absoluta, na qual nos obstinamos em não pensar muito, sob pena de experimentarmos grandes desequilíbrios no fruir desta nossa existência cronometrada e sequencial. No entanto, a evidência, muitas vezes palpável – porque vemos os outros morrer – outras, anunciada – porque certos acidentes nos fazem rondar, vividamente, essa hora temida – condiciona-nos o presente e lança suspeitas sobre o passado. Logo, a morte futura, como horizonte da nossa finitude, condiciona toda a nossa atitude existencial, senão à luz de uma consciência omnipresente, ao menos nos subterrâneos mais ocultos do nosso psiquismo.

Vemos então, claramente, de que modo o tempo perde a sua trajetória regular, em que somos recém-nascidos e depois crianças e logo jovens e adultos e, em breve, substância em deterioração orgânica, nos limites da corrupção corpórea, para nos darmos conta da coexistência de todos estes tempos, perdida a memória do parto que a todos aconteceu, impossibilitada a tomada de consciência da morte que ainda há-de vir. 

Nascimento e morte são dois marcos existenciais: pelo primeiro, arremetemos para o mundo, enquanto seres já assinalados pelo segundo, a que acederemos um pouco mais à frente, mas para o qual o nosso organismo trabalha, incessantemente. Embalados na ilusão civilizacional das metas, dos projectos, das missões, do sentido, cremo-nos vivos, cremo-nos eternos, cremo-nos dignos da imortalidade individual.

Parecerá todo este discurso um arrazoado filosófico, sem qualquer suporte credível, porque é assim que o vulgo vem tratando a filosofia ao longo dos tempos. E no entanto, desde o início do século XX, com a teoria da relatividade de Einstein e mais tarde com a física quântica de Max Planck e a indeterminação de Heisenberg, que a questão da imponderabilidade do tempo e do espaço é considerada a base de ciências tão respeitáveis quanto a Física e a Química. Newton considerava o universo perfeitamente ordenado e determinado, e uma sucessão de causas e de efeitos conduziria o cosmos, e os indivíduos presentes nesse cosmos, numa única direção: do passado para o presente e deste para o futuro. Porém, a descoberta das partículas quânticas e do seu percurso aleatório, lançou por terra essa pretensa ordem, e ficamos a saber que, subjacente ao macrouniverso que podemos pesar, medir e, de certo modo, controlar, existe todo um microuniverso cujas ondas, partículas, fotões, eletrões etc. escapam, de todo, a qualquer controlo determinístico.

Invisível, esse mundo microscópico, ou nem tanto, move-se à revelia de qualquer organização determinável e dirige, de modo silencioso, todo o universo. Mas apenas a matemática avançada levantou uma ponta desse véu e nenhuma espécie de experimentalismo poderá exibir, perante os nossos olhos, qualquer evidência que nos demonstre a sua fiabilidade. Porque nós, humanos, precisamos de ver, de medir, de pesar, temos necessidade de controlar, de fazer listas, de provar, sem percebermos que, ao fazê-lo, estamos a impor aí a nossa marca subjetiva e, nessa medida, a tecer ilusões.

Desse modo é pertinente a questão: existe, isso a que chamamos tempo, ou será uma mera criação do nosso cérebro, finito e circunscrito, programador e programado? Há uma linha temporal, vinda dos primórdios – do universo ou de nós mesmos, indivíduos – uma linha reta na qual se inscrevem, como rotas e marcas, as respetivas histórias? É, aquilo a que chamamos passado, a origem e a causa dos fenómenos que o presente nos patenteia, tornando-se constantemente futuro ou, numa suposta retroação que repugna à nossa racionalidade, somos condicionados por aquilo que achamos que ainda há-de vir e que pode já ter vindo ou coexistir num só momento, em osmose indiscernível?

Se assim for, a indeterminação é a nossa única lei e estamos presos entre dois momentos – o nascimento e a morte, nossas únicas certezas e afinal nossos perpétuos enigmas.

Mas se, por debaixo desse jogo de xadrez, em que o aleatório é afinal uma ordem, da qual não logramos estabelecer as leis ou unir as pontas, se alinhar um imenso tabuleiro de damas, apenas com dois valores – o preto e o branco, o 0 e o 1, o V e o F das equações binárias – e estivermos, de facto, presos num destino já traçado, predestinados a viver de acordo com essa matriz que, de modo nenhum, poderemos sondar ou alterar?

Indeterminação e livre arbítrio, ou determinismo e fatalidade? Possibilidade de escolha num universo de imponderabilidades ou prisão perpétua a um destino inscrito no disco rígido do universo?

Porque nos convém a liberdade, e logo a possibilidade de criar regras e definir opções – sem as quais a moral que nos suporta, enquanto seres sociais, seria desmoronada por completo – obstinamo-nos em crer, nos parâmetros limitados da nossa racionalidade, que o tempo existe, tal como os calendários, os relógios, os padrões cronométricos estabeleceram, e confiamos nessa ordem que conseguimos absorver e equacionar, no mundo confinado do nosso cérebro. Mas se tudo estiver previamente estabelecido num certo carrilhão para nós obscuro e o tempo não tiver a substancialidade que lhe atribuímos, de nada podemos ser responsabilizados, porque as escolhas que fazemos não o serão, efetivamente. Poderá a humanidade subsistir, caso a ciência prove, iniludivelmente, que não passamos de títeres de forças superpoderosas e que, o que chamamos de livre-arbítrio, não passa de uma ilusão que fabricamos?

Eis a grande e, decerto, jamais resolvida questão.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

ALIMENTAÇÃO

CATARINA DINIS
No passado dia 16 de Outubro, celebrou-se o dia Mundial da Alimentação. E eu não podia deixa –lo em branco.

A sua primeira celebração foi no ano de 1981 e é tão importante pelo facto de procurar consciencializar a opinião pública sobre os alimentos e a nutrição. Ainda mais com todos os sérios problemas de fome e má nutrição.

O fundamental deste dia é a celebração de uma alimentação cuidada e equilibrada, em todas as etapas da vida.

Para essa alimentação ser equilibrada, deve ser rica em frutas, legumes e verduras, grãos e cereais integrais, para garantir ao nosso organismo vitaminas, minerais e fibras.



NOVA PIRÂMIDE ALIMENTAR
DR GOOGLE IMAGES

A Pirâmide é a representação de como deve ser feito o consumo de cada alimento, sem esquecer o consumo de água e da prática de atividade física.

Consequentemente não poderia deixar de escrever sobre a escassez de alimentos e o desperdício do mesmo, uma cruel dicotomia do nosso mundo real. Onde metade do nosso mundo deita fora toneladas de alimentos, a outra metade simplesmente não tem com que se alimentar…

Esta escassez tem várias abordagens, desde a diminuição da oferta de alimentos para o consumo, já que há tendência a direcionar como matéria -prima dos biocombustíveis como é o caso do milho e do trigo, existe um colapso social devido ao aumento dos preços dos alimentos, houve um aumento da população, em ascensão social, como é o caso da china, que começou a comer de modo semelhante a Ocidental, aumentando a procura de alimentos… de todas estas razões o único certo é que não irá terminar.

Um dado que achei intrigantes “três bilhões de pessoas- quase metade da população mundial – sofrem com a insegurança alimentar. E não é por falta de comida mas sim o numero de pessoas que não podem pagar pelo alimento que necessita”- Jomo Kwame Sundaram, economista.

Quantas imagens nos vêm a cabeça, desde os pequenos de olhar escuro, verdadeiro esqueleto, nos braços de sua mãe, em países africanos, as idas aos contentores do lixo de cidadãos das cidades Europeias, ondem a determinadas horas ganham uma vida diferente, de novo encontramos uma fila a hora do almoço e jantar nas casas Abrigo…interminável pintura.

E por outro lado temos o desperdício de alimento…Segundo dados da FAO, cerca de 1.3 bilhões de toneladas de alimentos são desperdiçados anualmente. 

Há uma necessidade de consciencializar cada vez mais o povo, os políticos, as crianças, para um trágico futuro que nos esperasse não dermos um grito de revolta… há que celebrar verdadeiramente este dia Mundial da Alimentação com consciência da dualidade de situações.

domingo, 19 de outubro de 2014

703

MIGUEL GOMES
DR
Foco-me nas nuvens que se vão integrando na paisagem. Já lá tinha chegado o Sol, um matizado de cores derramou-se e escorreu pelo encortinado céu, cheio de pregas e rugas de énios e, depois, a luminosidade deixou-se arrefecer enquanto, juntos, se encolhiam no meu campo de visão. 

A minha poltrona faz-se plateia, hoje estou cá eu, tenho casa cheia. Instalo-me comodamente, um ligeiro movimento de ombros e estou moldado às costas, da cadeira e às minhas. A nuca encontra o seu lugar na ligeira saliência que se faz encosto. Os braços pousam nos braços, meus no inanimado, o tecido está puído e nunca lhe soube a textura, o meu corpo sempre quis ter raízes, ser terra, dura. Cruzo as pernas. Descruzo as pernas. Não encontro posição para o prolongamento dos meus caminhos. Finalmente deixo-me ficar, relaxado, esquecendo músculos, fixo o olhar no tecto abobadado, calculo rapidamente o volume semi esférico daquilo que penso e, se existo, deixo-me obliviar para baixar o olhar, rapidamente, para o palco.

Não existem cortinas para descerrar, timidamente bato três vezes com o calcanhar no chão (seria útil estar calçado) e dou sinal para que entre em cena o principal actor da minha vida, eu.

Vi o céu impaciente, as nuvens ameaçam-se subindo de tom e cinzento, o colorido derramou-se por trás do Sol e este esvanece a claridade com que o olhei. A cena da minha vida é feita de múltiplos filmes de um só frame, cada sequência um piscar de olhos, pela mais sobranceira amplitude do que me esforço há sempre uma nova janela, uma oportunidade, um quadro mais velho que a própria idade. 

Já o céu se pôs, o Sol, sentindo-se sozinho, segue-lhe as pisadas e vai descendo caminho até se sobrepôr ao horizonte de outro hemisfério. Que seria de si se fôssemos planisfério?

Gostava de me ver acordado, percorrer os canteiros em busca de um sentido aveludado, mas apenas a obiquidade das palavras se faz presente quando não estou ausente. 

Em palco um vidro de um autocarro que se cruza com o horizonte de uma criança por trás de outra janela, outro autocarro. Há ruídos de fundo, mas não cabem no mesmo palco, remete-os para nova cena, um latejar que se há-de marejar, um latir dimensionado ao fundo de um torpe degrau a fugir. A criança, o puto, eu. Eu o puto. A criança, criança. Chove, antes e depois da cena, mas, de momento, apenas precipita em mim o culto da autonomia, eu, puto, sorria.

Várias gotas descem o vítreo cortinado e nós, ali, lado a lado, separados por centímetros e anos de distância, eu chuva e ele, inocente, a tentar parar as gotas que escorregam graviticamente com os dedos, cada um sua gota. Há nuvens por onde chove. Há crianças por onde a vida brota.

“Fim de linha”

Não me apercebi, passou-se a eternidade de um minuto e eu, levantando-me, cambaleio até à porta que se abre esbaforidamente e surgo na rua como vômito de um autocarro. Alguém sopra sobre mim um suspiro de impaciência. 

Não demoro mais e abro o guarda-chuva já fora, sobre os paralelos submersos de uma rua diluviada pelas lágrimas de quem se quer gente e lamenta, alimenta, a vicissitude de ser pasto.

Abrigo-me junto a uma loja, vende artigos que nunca precisarei, todos a saldo, eu a soldo. A chuva passa, eu passo, a passadeira transforma-se em teclado de piano que nunca soube tocar, eu e ela, um pacote de leite abandonado que se pensa caravela.

Encosto-me à paragem transparente e tento fazer com que ninguém me veja. Algumas gotas escorrem em direcção ao solo, chão, são. Com um dedo tento, do lado de cá da transparência, suster a sua queda numa espécie de poder, super.

Há vitórias, como céus, que se vêem apenas junto de quem com um dedo tudo alcança. 

Como um puto, criança.

sábado, 18 de outubro de 2014

DIA DA POBREZA DO MUNDO

J. EMANUEL QUEIRÓS
DR
A ONU proclamou a erradicação da pobreza como meta a ser atingida por todos os países até ao final de 2015. Mais de duas décadas após o promissor objectivo ter sido estabelecido no Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza (17/10) o mundo reflecte um mais agravado estado de insanidade colectiva, menos consideração pelas diferenças e pelo próximo, maior concentração de fortunas pessoais e disseminação da pobreza, provando do desrespeito generalizado pela indiferença das orientações da ONU, da dignidade do Homem e desconsideração pelas mais elementares necessidades existenciais. 

As soluções para a erradicação da pobreza, em Portugal e em qualquer outro território subordinado a uma bandeira, são uma prerrogativa que ao próprio homem compete e está nas suas mãos e na sua vontade cumprir. Contudo, não só não se cumpre como também não se vislumbram orientações políticas nem se perspectivam decisões específicas, em concreto, que atendam a esse desiderato humano global, tratando-se de uma chaga aberta pelos homens sobre a Terra. Em contraste, algumas vozes mais influentes sobre a especificidade deste problema social que se escutam em Portugal dissertando sobre a pobreza padecem de afectação de casta, de alguma síndroma ocular de natureza sócio-ideológica ou de enviesada e tendencial orientação programática, dominada pelo preconceito de colocar os mais desprotegidos numa subcategoria social de indigentes que a adoptam como forma de satisfação pessoal ou de realização profissional, como se tratando de uma subespécie humana que envergonha os demais bem sucedidos e os afortunados. 

No actual estado convulsivo em que o mundo se encontra e na instabilidade repercutida em Portugal com a degradação das condições sociais dos mais débeis é perceptível, que a Organização das Nações Unidas se assemelha a um sofrível biombo internacional onde se movimentam sombras chinesas de belo efeito estético, cujas encenações não têm repercussões visíveis nos ‘teatros das operações’ ao nível de cada país. Doutro modo, as deliberações tomadas por todos na Assembleia-Geral seriam recebidas com entusiasmo em cada país, passando a figurar nas prioridades de cada Estado e alinhadas no plano da execução das políticas, do plano nacional ao local. 

Portugal vai no sentido de ficar mais apetecível para os empresários internacionais que tanto fixam suas tabancas em Marrocos, na China, no Vietname ou no Bangladesh. Tudo se encaminha para que os horários de trabalho aumentem, se reduzam os direitos laborais, se despeça por justa causa a mulher grávida e se possa esmifrar o esforço individual do trabalho pelo tutano até à doença. Podem vir as matilhas internacionais ávidas de lucros fáceis e ciosas de acumulação de riquezas rápidas que o país está mais moderno, o povo domesticado e perfeitamente conformado com as novas ordens dimanadas da pirataria internacional que, se for preciso, põem-se à míngua para salvar bancos fraudulentos e cobrir burlas de milhões. 

Que se vão os jovens para outras paragens, que se virem os velhos quanto mais depressa melhor, que o país entre em inversão demográfica, que ganhem menos os que trabalham. Os compromissos não são com quem cá está mas com os grandes senhorios que mandam em nós, na sociedade e no Governo. Para esses isto está cada vez melhor e em estado de situação assim as notícias que dão conta que quem recebe o salário mínimo ganha menos 12 euros do que em 1974 são muito esperançosas.

Ao invés, do que a ONU proclamou, por todo o mundo se vê cada vez mais gente a passar da situação remediada para a condição de pobreza e da pobreza para a indigência, tudo à custa do aumento das fortunas dos mais abastados, do interesse proteccionista proxeneta de uma perversa lógica de crescimento económico dos Estados com que se promove o amontoado de descomunais fortunas pessoais que têm vindo contribuir para o esgotamento acelerado dos recursos naturais e para a subvalorização da Vida na Terra e no homem.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

O TERRÍVEL SOM DO SILÊNCIO

GABRIEL VILAS BOAS
DR
Hoje, somos uma sociedade imediatista e consumista, onde as solicitações permanentes não deixam tempo para parar, refletir, decidir com critério. À nossa volta há excesso de ruído e muitas vezes sentimos desejo de silêncio. 

O silêncio é necessário Como a noite ou a luz. É o irmão gémeo das palavras. Habituados que estamos ao turbilhão das frases, dos discursos, dos debates, das ideias luminosas, o silêncio inquieta. Que significará aquele silêncio? Muitas vezes, apenas cansaço físico, noutros casos, não. 

É curioso pensar que o silêncio pode ser usados pelos tolos, pelos sábios ou pelos políticos. Para uns será o puro vazio, para outros, oportunismo ou covardia e para um grupo mais reduzido, a mais eloquente resposta. 

Reconheço necessidade, valor, sabedoria ao silêncio, todavia prefiro as palavras. O silêncio é tolo quando somos sábios, mas é sábio quando somos tolos. 

Não gosto do silêncio tático e medroso da classe política, que tem opinião sobre tudo o que é fútil mas se fecha em copas sobre o essencial. Não compreendo o silêncio dos jornais, rádios e televisões perante a aldrabice de muitos discursos. Não entendo o silêncio covarde da falsa cidadania perante a penosa velhice duma grande parte dos nossos reformados. 

Não gosto do silêncio com cara de politicamente correto. Essa é a ação daqueles que nunca saem da sua zona de conforto, nunca arriscam uma opinião. Claro que ter opinião tem um preço e comporta riscos, mas o prazer da vida é mesmo esse. Não temos de ter sempre razão nem temos de ter sempre opinião, mas devemos estar disponíveis para dizer o que pensamos sem pensar naquilo que ganhamos ou perdemos. 

Ainda que não tenhamos consciência disso, o silêncio, por vezes, faz mal, especialmente no mundo das relações, pois pode significar ausência, indiferença, desprezo. Há muita tristeza que começa no silêncio daqueles que amamos. Depois transforma-se em solidão, azedume, infelicidade. E tudo seria bem diferente com uma palavra, um carinho, um afeto. É impressionante o tamanho dos muros que construímos com o silêncio. O silêncio esvazia as relações, cria angústia e desconfiança. Uma família habituada a conversar ou a trocar confidências é normalmente mais feliz. 

O silêncio só é sábio quando é sensato. No entanto não devemos confundir sensatez com falta de coragem. 

Quando a ignorância alastra e a injustiça triunfa, preciso dum exército de palavras certeiras e decididas que derrote o silêncio comprometido.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

TECNOLOGIA VERSUS DESENVOLVIMENTO COGNITIVO

HÉLDER BARROS
DR
Cada vez mais aparecem estudos científicos internacionais que dão conta de que o ser humano não está a desenvolver e aumentar as suas capacidades cognitivas. Pelo contrário, referem uma preocupante paragem no tempo, no nosso processo de desenvolvimento cognitivo, começando a lançar axiomas que visam mesmo provar uma possível involução do mesmo.

Neste sentido, o geneticista da Universidade de Stanford (EUA), Gerald Cabtree, acredita que os humanos “perderam a pressão evolutiva”, o que levou à perda de capacidades intelectuais e emocionais, porque já não precisamos de inteligência para sobreviver e tudo nos é facilitado com smartphones, GPS, motores de busca na internet, etc..

Claro está que, a minha perspectiva visa apenas a sociedade contemporânea, enquanto que a teoria deste cientista, abrange milhares de anos, pois, segundo ele, os Gregos que habitaram a Terra mil anos antes de Cristo, deviam ter uma inteligência ao nível daqueles que se consideram génios, hoje em dia. 

A hipótese polémica defendida por Gerard Crabtree é que a evolução fez com que o ser humano se tornasse menos inteligente, com o passar do tempo. A sua tese consiste na crença de que ao longo de milhares de anos de evolução, o ser humano foi perdendo e alterando os genes que o tornam inteligente.

Até agora, pelo que registo enquanto docente, quem sou eu para dizer que, em termos globais, as pessoas estejam a ficar mais ou menos inteligentes. No entanto, posso constatar a tendência para uma certa “preguiça intelectual”, como tendência generalizada.

Embora a marca google já tenha sido ultrapassada pelo facebook, pelo menos é isto o que o mercado nos revela, não posso deixar de registar que, no domínio académico e não só, se tende a considerar o primeiro como que a resposta para todas as nossas dúvidas, a panaceia com todas as respostas, à velocidade de um clique.

Eis então, como uma poderosa fonte de conhecimento, nos trai pela amigabilidade do seu uso. Não deixa de ser paradoxal, mas a facilidade de utilização, tende a que usemos as coisas com menos cuidado e critério, menor atenção aos resultados das pesquisas e a darmos sempre como certos, os primeiros resultados devolvidos pelo potente motor de busca, pelo menos em quantidade de informação.

Experimente-se solicitar um trabalho qualquer a um aluno e incluo aqui também os do ensino superior, e, não raras vezes, deparamo-nos com trabalhos de “copy” + “paste” descarado. E esta é uma prova evidente da tal preguiça mental, que pode ou não degenerar em processos de involução cognitiva.

Sou um otimista por excelência e por muito que veja os jovens a teclar desabridamente nos seus smartphones, numa linguagem muito própria e no mínimo, muito redutora, penso que desenvolvem outras competências que os menos jovens não possuem: destreza manual, linguagem simplificada e codificada, rapidez de comunicação e de pensamento, etc.

A quantidade de informação com que lidamos é incomensuravelmente superior à que qualquer civilização foi sujeita até á data. Quantidades de informação, cada vez maiores, rapidez cada vez mais superior, faz com que, fazendo o paralelo com as máquinas, o hardware tenha que ter mais capacidade, para suportar o desenvolvimento do software. É nisto que quero acreditar, penso que estamos ainda a desenvolver a nossa capacidade cognitiva e a adaptar-nos ao rumo dos dias que correm, embora de uma forma cada vez mais acelerada.

Nem o volume craniano médio da classe humana me parece que esteja a crescer, tal como previam alguns que imaginavam homens de corpo pequeno e de cabeças predominantes, nem iremos, por certo, perder capacidades cognitivas. Penso que o nosso destino passará pelo desenvolvimento da nossa capacidade de adaptação a novas ecologias humana, científica e tecnológica.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

O PAPÁ DÁ

RAUL MINH´ALMA
DR
Certamente todos nós conhecemos um ou outro caso em que um certo jovem abdicou de estudar medicina, engenharia, advocacia ou outra área qualquer para se dedicar ao seu verdadeiro sonho. Isto de facto é muito bonito de se ouvir, mas é importante vasculhar um pouco o cerne da questão antes de elogiarmos até à morte a atitude “corajosa” destes sonhadores. 

É fácil sonhar quando se é parte de uma família avantajada, onde o dinheiro não é problema. É fácil sonhar quando sabemos que se cairmos vamos ter lá o papá e a mamã para nos dar tudo o que nos falta. A todos estes a quem nunca pesou a responsabilidade, não custa sonhar, e o que custar o papá paga, e o que faltar o papá dá. Nunca tiveram de trabalhar, nunca tiveram de se esforçar muito mais que um beicinho ou um simples pedido para terem o que queriam. Não devíamos, de todo, colocá-los no mesmo saco de todos aqueles que arriscaram verdadeiramente carreiras com mais garantias ou abdicaram de títulos mais “bem cotados socialmente”, para seguirem os seus sonhos, quando sabiam que, se de facto falhassem, o chão iria lembrá-los o quão dura é a vida. Mas a verdade é: se pode ter, porque não haveria de ter? Quem de nós trocaria o caminho fácil pelo difícil só para crescer enquanto pessoa, só para “saber o que é a vida”? Certamente alguém, mas muito pouca gente. Contudo, o que quero ressalvar é que a humildade não fica mal a ninguém, seja ele rico ou pobre. 

O mal não é ter as coisas dadas, é vangloriar-se de as ter, é exibi-las como troféus de um esforço que não saiu do seu corpo nem do seu bolso. O mal não está em mostrar, mas na vaidade com que se o faz. E depois dizem os pais: “eles não dão valor ao que têm”. Queridos papás, vou contar-vos um segredo, os vossos filhos dão o valor às coisas que têm, equivalente ao esforço que fizeram para as conseguirem. 

Um dia, quando se acabarem as nuvens de algodão, quando os bolsos já não forem tão fundos, quando as pedras começarem a aparecer no caminho e quando a “papinha” já não estiver toda feita, é que muitos olhos irão abrir-se e ver o mundo como deveria ser visto. Mas até lá, desfrutem do iPhone que o vosso beicinho conquistou.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

O GOVERNO DO POVO

REGINA SARDOEIRA
DR
Não acredito na democracia. Já no século V a.C., tempo de Sócrates e de Platão, o regime, inventado e posto em prática pelos gregos, apresentava todos os sinais da decadência, a saber: corrupção (os sofistas acorriam à cidade-estado de Atenas porque ali podiam, à vontade, vender sabedoria, espalhar sofismas, formar demagogos e enriquecer por essa via), extrema movimentação nos tribunais (dado que era permitido discursar na ágora e qualquer um podia dizer o que bem entendesse, ofendendo outros com frequência, os processos afluíam; e, de novo, os sofistas – esses proto-advogados – apareciam em cena para defender o acusado); descontentamento e ânsia pelo tirano que organizasse a confusão de palradores e escrevinhadores de todos os géneros; enriquecimento desmesurado de uns em detrimento de outros; defesa do esclavagismo como condição inalienável do florescimento dos cidadãos privilegiados a todos os níveis e muito mais, que não julgo necessário expor, na íntegra. Esses dois grandes símbolos da filosofia – Sócrates e Platão ( um, implicitamente, pois não escreveu qualquer livro, muito embora tenha sido executado pela democracia, por força da sua ação libertadora junto dos espíritos juvenis, outro, explicitamente, pois produziu obras plenas de atualidade onde apresenta as grandes utopias da sociedade perfeita, por oposição à democrática e a outras estruturas políticas) não aderiram ao regime, criticaram-no e detestaram-no pelos efeitos nefastos que a elevação brusca do povo à categoria de governo, sem a necessária catarse cultural, gera necessariamente. E, de facto, a decadência atingiu essa grande potência cientítica, artística, poética, filosófica, linguística, esse universo onde o ocidente bebeu tudo o que ainda hoje é digno de apreço e a Grécia poderosa da antiguidade nunca mais se levantou da queda. Entretanto, a modenidade recuperou o regime democrático, se bem que o tenha feito pela via burguesa, esse povo ressentido, essa massa humana chegada à riqueza e todavia privada de poder político, esses sanguinários da Revolução Francesa capazes de cortarem as cabeças dos aristocratas, sem julgamento de qualquer espécie, apenas porque desejavam ocupar os seus postos de governação. Napoleão, o pretenso libertador da França, o herói da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, bastiões da democracia, não resistiu ao orgulho, não teve a capacidade de respeitar a liberdade de que era o mensageiro e pela qual se tornou o ídolo da Europa e fez-se…imperador! 

O que hoje temos como regime político, tido como fiável, generoso, capaz de engendrar cidadãos livres e aptos a decidir quem deve ter o poder para nos governar a todos é a democracia, ainda! Não conseguimos inventar nenhum outro sistema capaz de reabilitar a Grécia de Sócrates e de Platão ou de repor os ideais humanitários da Revolução Francesa. Continuamos apegados a um pretenso governo do povo e a assistir, com uma espécie de indiferença ofendida ou de sarcasmo estulto, a um espectáculo lamentável de jogo de cadeiras em que, cegos e tontos, meia dúzia de homens/mulheres, com idade mais ou menos avançada, se atropela numa correria ridícula a ver quem, no final, empurrando os outros, difamando-os, passando-lhes rasteiras, e por aí adiante, ocupa o almejado trono. 

O povo?! Esse não entende absolutamente nada do que está a passar-se com ele – exatamente, com ele! – o povo assiste a esta corrida ridícula com resignação: ou nem sequer assiste, incapaz do sentido crítico, demitido da sua função suprema de intervenção na vida pública, preferindo fechar os olhos e tapar os ouvidos e ir, depois, no dia designado para tal, qual rebanho de carneiros humanos, pôr a cruz no boletim de voto e permitir que o jogo de cadeiras tenha, por fim, novo desenlace.

Quando utilizo a palavra «povo» estou a designar «toda a gente». A antiga divisão tripartida das classes sociais – clero, nobreza e povo – hoje não se aplica, e logo todos somos povo, queiramos ou não admiti-lo, tentemos ou não definir classes e alimentar preconceitos elitistas. Quando nos deslocamos a caminho da mesa de voto é como povo que o fazemos e não como intelectuais, ou polícias, ou arquitectos, ou engenheiros ou escritores ou vagabundos ou funcionários públicos…porque, no plano estrito da formação política e na consciência avalizada do procedimento correto e certeiro no momento de traçar a cruz no boletim de voto, pouco ou nada distingue um intelectual de um analfabeto! Existem, efetivamente, os homens cultos e letrados e os homens incultos e iletrados; existem os trabalhadores manuais e os licenciados ou mestres ou doutores; porém, quer uns quer outros revelam, à saciedade, serem absolutamente idênticos, quando executam esse gesto, não só pelas maiorias que engendram ou pelas percentagens que desencadeiam, mas também pelas específicas e secretas razões de cada um: secretas, mas fáceis de adivinhar, uma vez conhecido o sujeito votante. Mesmo aqueles que conseguem juntar letras e aderir ao sentido das palavras, mesmo aqueles que vão mais longe e lêem livros ou até os que, não só os lêem, mas também os escrevem, os que fazem mestrados e doutoramentos e se consideram muito importantes, por isso, quando vão eleger os governantes, no sentido lato da palavra governante, procedem como analfabetos funcionais! 

Como estou tão certa disto que afirmo? 

Tenho observado, com atenção e cuidado, as personalidades, as perspetivas, a cultura, a capacidade dialética, a eficácia prática dos que têm sido avaliados na cerimónia eleitoral. Tenho também analisado os resultados e as percentagens dos atos eleitorais próximos e passados. Tenho levado em conta as atuações de ministros e primeiro-ministros, presidentes da república ou das câmaras ou das juntas. Tenho avaliado o progresso do país, liderado por toda essa gente, ao longo destes anos em que somos governados democraticamente. E sei que o povo nunca fez e vai continuar a não fazer, ao que tudo indica, a escolha acertada! Quer dê a liderança governativa a um ou a outro – pois foi numa esquizofrenia política que caiu a democracia portuguesa – o povo vai escolher mal; quer eleve ou abaixe as percentagens relativas dos partidos menores, presentes no jogo, o povo vai cometer vários e irreversíveis erros. 

Esta reflexão não é pessimista se por pessimismo entendermos ver o pior, onde, certamente, estará o melhor; esta reflexão é o espelho da realidade e qualquer um que decida acordar neste preciso instante – por exemplo, lendo o texto aqui presente e procurando perceber o que lhe é subjacente – mesmo que não seja um génio ou sendo-o, saberá compreender e (quem sabe?) encontrar o modo certo de agir no futuro, quando for altura de eleger o parlamento português e, consequentemente, determinar os futuros governantes do país.

Entretanto, é necessário estar atento, muito mais atento do que antes: os sinais do declínio estão todos aí, a nossa sociedade já se esfrangalhou por completo (porque nós, O Povo, demitimo-nos), os salvadores habituais não serão de modo nenhum capazes de salvar seja o que for. Prestemos atenção a todos os sinais e comecemos já, agora mesmo, a exercer os nossos direitos e a cumpriur os nossos deveres, ressuscitando esta democracia moribunda e regressando à sua ancestral e etimológica definição.