terça-feira, 19 de agosto de 2014

O ADJETIVO

REGINA SARDOEIRA
DR
O Adjetivo. O Nome que se junta a outro. Aquele género de palavras, transversais a todas as línguas, úteis para atribuir qualidades a palavras singulares, permitindo-lhes uma clarificação superior.
Suponhamos que no nosso texto íamos falar de uma MESA. Como resulta evidente, ao lermos a palavra «mesa», somos, de imediato, invadidos mentalmente pelo respetivo conceito que, ao nível ideal, corresponde à imagem de uma mesa concreta, uma, entre as muitas que se nos apresentam à observação quotidiana, a qual pode ou não equivaler à mesa que, enquanto autores do texto, pretendíamos tornar explícita. E então, caso essa mesa específica seja relevante para a compreensão da trama textual, poderíamos recorrer a adjetivos, para retirar da mente do leitor o seu próprio modelo ideal e fazê-lo aderir ao que pretendemos que seja o nosso. E então diríamos, por exemplo, «uma mesa rectangular». Ao dizê-lo, obviamente, todos os outros formatos possíveis seriam de imediato afastados do pensamento do leitor, que se fixaria nas mesas rectangulares suas conhecidas, elegendo, muito provavelmente, aquela que, no seu entendimento de leitor, mais se ajustasse ao contexto. 

No entanto, continuemos a conjecturar. Dizer «uma mesa rectangular» ainda não nos enche as medidas, enquanto escreventes, pelo que necessitaremos de continuar a acrescentar adjectivos; e poderia nascer o seguinte: «uma mesa rectangular imponente».  De acordo com a concepção de imponência que se aloja na mente do leitor, a mesa rectangular surgirá mais ou menos pesada, mais ou menos comprida, mais ou menos trabalhada, feita de um material mais ou menos nobre, mais ou menos gasta pelo tempo. Portanto, carece ainda de objectividade. E o nosso escrevente, obcecado pela sua mesa específica, desejando ardentemente que o leitor reconheça, exactamente, a mesa de que ele quer falar, terá que adjectivar de novo, escrevendo, por exemplo assim: «uma mesa rectangular imponente, polida…» . Novas imagens ocorrerão ao leitor perante este terceiro adjectivo. Polido/a sugere, instantaneamente, brilho e, portanto, um esmero no tratamento do móvel; mas também pode a mesa estar polida pelo uso, o que empurra a imaginação para uma mesa rectangular, imponente e polida porque foi usada por gerações que lhe outorgaram essa qualidade. E então, para não haver dúvidas, já que o nosso escrevente é rigoroso e a sua mesa tem que impor-se, como ele deseja, ao leitor, eis que novo adjectivo emerge: «uma mesa rectangular, imponente, polida, antiga…» .        

Num ápice, o leitor afasta a ideia do polimento obtido na fábrica de móveis e visualiza uma mesa de um solar ou palácio, uma mesa extraordinária de qualidades supremas…mas, viciado que começa a ficar na adjetivação do escrevente, já não sabe muito bem que imagem atribuir ao móvel! Por outro lado, o autor continua a desejar que o seu leitor tenha a noção precisa da sua mesa e, dado que os quatro adjetivos ainda não a exprimem com inteira eficácia, procura outro e a frase prossegue o seu caminho deste modo: «uma mesa retangular, imponente, polida, antiga, adornada…» e logo a mesa se apresenta ao estilo barroco ou rococó ou século XVII ou renascentista ou rústico, adornada com biblelots e jarrões, ou…enfim, as possibilidades tornam-se avassaladoras, de tal modo que o leitor, esgotado, já não consegue imaginar a mesa que o escrevente se esforçou por tornar concreta, adjectivando-a cinco vezes! Se o escrevente continuar neste esforço titânico de caracterizar exaustivamente o objecto em causa, sobrepondo adjectivos, retirará gradualmente toda a concrecção à mesa que se multiplicará e desmultiplicará à medida que a adjetivação progredir. 

Como fazer então para caraterizar a MESA, à volta da qual se desenrolará o texto que começámos a produzir e que, por essa razão, necessita aparecer com absoluta objectividade?

Os métodos existem e cada escrevente deverá escolher o seu, de acordo com o estilo narrativo em questão. 

Poderá referir a MESA assim mesmo, despojada de qualquer adjetivo, compondo uma frase deste teor: «No centro do salão, iluminado por quatro janelas, a mesa refulgia, revelando, na sua textura e nos arabescos que a esculpiam, os segredos das gerações.» Nenhum adjetivo, reparem, e contudo aqui está «a mesa imponente, polida, antiga e adornada»! Falta um, bem sei, a nossa mesa é retangular e, da frase aqui produzida, não emerge a sua retangularidade. Porém, o escrevente talentoso, querendo impor essa qualidade à mesa de que está a falar, poderá continuar o texto do seguinte modo: «Eram vinte os convidados para o jantar daquela noite e o anfitrião ainda não havia decidido a qual deles daria o privilégio de ocupar o extremo oposto ao que lhe pertencia por direito, sendo que os restantes dezanove já se distribuíam harmoniosamente na mesa pelos outros dois lados que a compunham.» De novo, nenhuma adjectivação pende sobre a mesa e contudo não temos dúvidas nenhuma que estamos perante «uma mesa retangular, imponente, polida, antiga e adornada!» E entretanto o leitor começou a antever o cenário, a prever o acontecimento e, sem mesmo dar conta disso, sabe a dimensão e as características da mesa onde vinte convivas irão iniciar um repasto.

Adjetivos? São, sem qualquer dúvida, palavras com uma função imprescindível em muitas situações, podem mesmo usar-se enquanto figura de estilo (nomeadamente em poesia) e tornar belo um texto por via dela. 

Porém, todo o abuso é maléfico e conduz exatamente aos resultados opostos do que qualquer escritor pretende: transforma a sua linguagem num amontoado de palavras inexpressivas de tão profusamente qualificadas, cansa o leitor que se perde na barafunda das sucessivas caraterizações, dispersa e desqualifica, em lugar de precisar e tornar concisa, a linguagem textual.

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