quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

VAMOS CANTAR AS JANEIRAS VAMOS, ANTES QUE SE ACABE O MÊS!

Vamos cantar as janeiras
Por esses quintais adentro vamos […]
Zeca Afonso

Anabela Borges
DR
Quando eu era pequena, só os narizes gelados, só os queixos gelados, os dentes gelados, as mãos e os pés gelados podiam dizer da magia que assomava aos nossos olhos crentes de criança, num brilho especial, as bochechas coradas do entusiasmo, e o fumo que saía das bocas, bafo quente, na noite escura do fundo dos tempos, noite sempre misteriosa e fria, noite longa, interminável, a despontar da luz própria de Janeiro, enluarada, promessa de Primavera. 
A geada caía, num silêncio renovado, quebrado pelas nossas vozes, às vezes mais afinadas, às vezes esganiçadas, às vezes espaçadas em cadências incertas, desvairadas, umas vozes a seguirem outras vozes, perdidas na noite, como numa imitação incessante.
Os instrumentos eram do mais genuíno improviso que a nossa imaginação conseguisse produzir: uma guitarra de acordes desatinados, uns ferrinhos irritantes e um realejo que nenhuns beiços sabiam tocar com jeito de melodia. 
Mas o mais interessante era quando a dona Arminda nos emprestava os batuques que o seu genro trouxera de África. Isso sim, isso fazia de nós o grupo mais espantoso das Janeiras, nas redondezas. Era uma circunstância tão inusitada, que parecia que o som daqueles batuques transportava as pessoas para lugares só imaginados, e parecia que as deixava anestesiadas a olhar para nós, sem nos verem, como se olhassem para o fundo da noite, antes de soltarem as moedas que haviam de tilintar ao cair no gorro preto a fazer de saco. 
O som dos batuques a perder-se na imensidão da noite, a arrastar ventos que se sonhavam mornos, a agitar o verde de uma vegetação impossível de ser real e a provocar restolhares de bichos nunca antes vistos, o som que enfeitiçava tudo e dava às nossas Janeiras uma magia, que era como uma cisma a perdurar sobre os telhados brancos de janeiro. 
Até hoje, eu continuo a acreditar que as Janeiras têm uma magia especial, uma tradição que eu gosto que se mantenha.
Todos os anos recebo em minha casa o rancho folclórico da minha freguesia. As portas abrem-se de par em par, as luzes da casa acendem-se, e aqueles cantares ecoam na noite, rua abaixo. É sempre um cantar dedicado ao Menino e ao advento do Novo Ano. É um cantar à moda do Minho, onde as vozes esganiçadas das cantadeiras mais gaiteiras sobressai do coro corado e dos fumos que se soltam das bocas no frio da noite. 
Os meus olhos perdem-se longe, no fundo da noite, a parecer-me que ouço os batuques africanos a trazer para a rua a magia dos ventos mornos, dos verdes impossíveis e dos bichos que o nosso Janeiro não conseguiria suportar. 

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